versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.6 Rio de Janeiro 2019 Epub 04-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00157918
La discapacidad múltiple en niños, presente en diversos síndromes, es una condición que acarrea problemas de orden físico, económico y social que afectan a los padres de esos niños y sus familias. Con el fin de conocer mejor esta problemática, desde la perspectiva del análisis cualitativo, se decidió realizar este estudio, que identifica y sintetiza lo que la literatura científica aborda acerca de las repercusiones del nacimiento y del cuidado de un hijo con discapacidad múltiple en la familia. Se trata de una metasíntesis cualitativa, realizada en las bases de datos Scopus, PsycInfo y SciELO, utilizando los descriptores: cualitativo; niños con discapacidad; relaciones padres-hijos; relaciones familiares; y cuidadores. Los datos se analizaron en tres etapas, según el método adoptado por Noblit & Hare: extracción de conceptos de primer orden; producción de conceptos de segundo orden; y síntesis interpretativa. Después del proceso de búsqueda y elegibilidad, se incluyeron ocho estudios, de estos, surgieron seis conceptos de segundo orden: restricción social; desgaste en las relaciones familiares; sentimientos que afligen; inestabilidad financiera; cambio en la dinámica familiar; y estrés en la salud y bienestar. En base a estos conceptos, se elaboraron tres síntesis: discapacidad y parentalidad ideal; el coste del cuidado; y (re)significaciones y adaptaciones de la familia. Los estudios señalaron que los padres y la familia pasan por dificultades procedentes de las representaciones sobre la discapacidad múltiple y de la responsabilidad del cuidado (problemas de salud, limitación para otras actividades, aumento de los costes financieros, cambio de rutina). Muestran, también, que estos elementos irrumpen y pueden interferir en las relaciones familiares y sociales.
Palabras-clave: Análisis Cualitativo; Niños con Discapacidad; Relaciones Padres-Hijo; Relaciones Familiares; Cuidadores
No Brasil, entre os anos de 2015 e 2016, principalmente na Região Nordeste, houve um aumento significativo do número de crianças nascidas com microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central (SNC) associadas a infecções congênitas. Em novembro de 2015, o Ministério da Saúde confirmou a associação do surto de microcefalia à epidemia do vírus Zika, subsidiado por informações da vigilância epidemiológica nacional e pela identificação do RNA viral em amostras do liquor de recém-nascidos. Até maio de 2018, já haviam sido confirmados mais de três mil casos, segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde 1.
Desde o ocorrido, muitos estudos clínicos e epidemiológicos têm sido publicados sobre a microcefalia e as alterações no crescimento e desenvolvimento relacionadas à infecção pelo vírus Zika, porém pouco se encontra, na literatura, sobre o impacto social e emocional, a carga financeira das famílias e o preparo das equipes de saúde para encararem o desafio de cuidar das crianças acometidas e de suas famílias ao longo do tempo 2. Para minimizar o vazio que essa lacuna produz, adotou-se, aqui, a estratégia de realizar uma revisão de literatura tomando situações de adoecimento cujas deficiências (mental/visual/auditiva/física) se assemelhassem às provocadas pela microcefalia e que tratassem das repercussões familiares do cuidar de crianças acometidas por tais deficiências. Nesse sentido, o conceito de deficiência múltipla nos pareceu bastante apropriado para essa empreitada.
De acordo com a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), a deficiência múltipla é uma associação, no mesmo indivíduo, de duas ou mais deficiências primárias com comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa 3. O impacto da deficiência múltipla é muito variável e depende de diversos fatores como os tipos e a quantidade de deficiências primárias associadas, a amplitude ou abrangência dos aspectos comprometidos, a idade da aquisição das deficiências, os fatores ambientais e familiares, a eficiência das intervenções educacionais e de saúde, entre outros 4.
Segundo Brunoni et al. 2, a convivência diária com uma criança com um quadro crônico, como as que são acometidas por deficiência múltipla, altera o funcionamento familiar e repercute diretamente nas condições de vida de seus cuidadores. Os autores acrescentam que o ônus do cuidado recai fortemente sobre a genitora. Nesse sentido, Marcon et al. 5 explicam que o cuidado materno dispensado à criança com uma condição crônica configura-se como uma tarefa exaustiva e geradora de sobrecarga, devido às inúmeras necessidades advindas da condição da criança. Porém, essa sobrecarga não está relacionada somente às demandas de cuidado, mas também aos sentimentos que acompanham a mãe constantemente, como a preocupação com a sobrevivência da criança, o sentimento de culpa, a impotência e o desconhecimento sobre como cuidar da criança. Mais do que isso, advoga-se que as dificuldades também se dissipam no seio familiar e demandam a produção de conhecimento a respeito dos elementos constitutivos dessa problemática.
Castro & Piccinini 6, em um estudo de revisão, concluíram que as relações familiares são fundamentais para se enfrentar adequadamente doenças crônicas e o prolongado tratamento que comumente é necessário nessas condições. Por isso, o acompanhamento familiar para se verificar indicadores de saúde mental, além de suporte social e qualidade de vida, é fundamental no atendimento a crianças com transtornos do desenvolvimento, especialmente quando associados ao déficit intelectual 2.
Em uma pesquisa qualitativa sobre as concepções de pais e professores acerca da inclusão escolar de crianças com deficiência múltipla, os pais relatam sentimentos ao saber do diagnóstico (choque, tristeza, angústia, susto, medo, insegurança) e dificuldades de entendê-lo, já que causa mudanças na participação social como alterações no âmbito do trabalho, na vida religiosa e no lazer 7. Para Santos 8, os principais desafios para se entender a deficiência como uma restrição à participação social consistem em compreender as barreiras e os fatores ambientais que possibilitam vê-la como um tema na esfera da promoção da justiça e da igualdade social, e não apenas no campo da clínica e da terapêutica.
Compreender as repercussões do nascimento e do cuidado na vida dos pais e na família de crianças com deficiência múltipla pode se traduzir em informação útil aos profissionais e gestores da saúde para se pensar em estratégias de prevenção para a saúde do cuidador, para ações e políticas de apoio à família e, por fim, auxiliar no deslocamento da atenção dos profissionais de saúde para aspectos que transcendem o tratamento clínico da deficiência. Desse modo, confere-se, assim, à assistência um caráter de cuidado integral para a criança e a família, que pressupõe ações articuladas e intersetoriais.
Diante desse contexto, o objetivo deste estudo foi o de identificar e sintetizar o que a literatura científica tem abordado sobre as repercussões do nascimento e do cuidado voltado para crianças com deficiência múltipla na família.
Trata-se de uma metassíntese qualitativa cujo propósito foi o de criar traduções interpretativas ampliadas de todos os estudos examinados em determinado domínio, de modo que seu resultado seja fiel à tradução interpretativa de cada estudo em particular. Portanto, refere-se à interpretação do pesquisador - synthesis - sobre os resultados dos dados primários (estudos originais qualitativos) 9.
As metassínteses oferecem uma descrição coerente ou explanação sobre determinado evento ou experiência, e sua validade não está em uma replicação lógica, mas sim numa lógica integradora cujas conclusões são acomodadas num processo criativo e coerente exposto no produto final 10.
Foi realizada uma busca sistemática, entre o período de setembro a outubro de 2017, nas bases de dados SciELO (https://www.scielo.org/), Scopus (https://www.scopus.com) e PsycInfo (https://www.apa.org/pubs/databases/psycinfo/), utilizando os seguintes descritores do Medical Subject Headings (MeSH; https://www.ncbi.nlm.nih.gov/mesh), e seus correlatos, nos idiomas português e inglês: (parent-child relationships OR parent-child relations OR relations, parent-child OR family relations OR family dynamics OR family relationships) OR (caregiver OR caregiver, family OR caregiver, spouse OR caregivers) AND (children with disability OR handicapped children OR disabled child OR children with disabilities) AND (narrative analysis OR content analysis OR discourse analysis OR semi-structured interviews OR interviews OR qualitative method OR qualitative study).
Foram selecionados estudos qualitativos com textos completos, publicados em revista/jornal e revisados por pares, entre os anos de 2013 e 2017, que abordavam as repercussões para a família do nascimento de uma criança com deficiência múltipla ou do cuidado dispensado a ela.
Uma primeira leitura de títulos e resumos foi feita para selecionar artigos potencialmente relevantes para a questão da pesquisa. Em seguida, realizou-se uma segunda leitura do texto completo dos artigos pré-selecionados, levando, em consideração, os critérios de inclusão e exclusão da amostra. Nos casos onde houve dúvida, outro avaliador leu o artigo para fins decisórios de inclusão. O processo de busca, elegibilidade e inclusão seguem ilustrados na Figura 1.
Todos os artigos selecionados foram submetidos ao modelo de avaliação de qualidade Critical Appraisal Skills Programme (CASP) 11. Foram considerados artigos de qualidade no CASP estudos que contemplassem o maior número de itens pertencentes a cada um dos dez temas dessa avaliação (que são: objetivos, método, seleção dos participantes, desenho de estudo, coleta de dados, relação pesquisador-participante, objetivos éticos da pesquisa, análise dos dados, apresentação dos resultados e validade do estudo), como demonstrado no Quadro 1.
Quadro 1 Análise da qualidade dos estudos segundo o Critical Appraisal Skills Programme (CASP) 11.
Encontram-se descritas, na literatura, três estratégias para sintetizar resultados de estudos qualitativos. A primeira envolve a integração de resultados de múltiplos caminhos desenvolvidos em um programa de pesquisa por um mesmo investigador. A segunda consiste na síntese dos resultados de pesquisas de diferentes investigadores, integradas por técnicas como análise comparativa qualitativa, tradução recíproca de metáforas-chave (categorizando a informação obtida dos dados individuais em “variáveis-chave”), análise de conteúdo, entre outras. E a terceira envolve o uso de métodos quantitativos para reunir resultados qualitativos de diferentes estudos, de modo a transformá-los em dados passíveis de análise estatística (metassumarização) 9,10,12,13. Nesta revisão, adotou-se a segunda estratégia, pois os estudos investigados apresentam muitas similaridades entre si, razão por que se recomenda que sejam aferidos pelo movimento constante de escrutínio e comparação das ideias e dos conceitos contidos nos estudos originais 14.
Como é proposto por Noblit & Hare 14, para as metassínteses, os dados desta revisão foram organizados e analisados em três etapas. Na primeira, foram identificados os conceitos de primeira ordem contidos nos principais achados dos artigos originais que são extraídos de acordo com sua pertinência para responder às questões da pesquisa. A segunda etapa correspondeu ao processo interpretativo comparando-se e agrupando-se os conceitos de primeira ordem, extraídos de, pelo menos, dois estudos originais, fazendo surgir os conceitos de segunda ordem. E a terceira etapa originou a síntese, que consiste em reinterpretar os conceitos de segunda ordem com base em teorias que ajudam a explicar os achados.
Depois de feita a fusão dos resultados obtidos nas bases de dados, procedeu-se à leitura de títulos e de resumos e à retirada das duplicadas, o que resultou em 161 artigos. Desses, oito foram selecionados segundo os critérios de inclusão e exclusão previamente adotados. As principais características e os conceitos de primeira ordem identificados nos artigos estão representados no Quadro 2.
Com base nas questões de investigação, a partir da segunda ordem de análise dos dados, foram gerados seis conceitos de segunda ordem que se seguem:
A restrição social se expressou nos artigos por meio da tentativa dos pais de protegerem a si mesmos e aos seus filhos do embaraço social e da humilhação, devido ao estigma e ao preconceito por causa dos padrões de aceitação social que são frequentemente definidos por pessoas sem deficiências 15,16,17,18. Porém, o nível de restrição social depende de como o comportamento, a compreensão e as crenças dos outros sobre a deficiência afetam o protagonismo dos pais quanto à sua socialização e à de seus filhos 15,17,18.
Outro fator que implica na restrição social é a sobrecarga advinda do cuidado dispensado a crianças com deficiência múltipla. Os déficits apresentados requerem mais assistência, supervisão e, portanto, mais ocupação por parte dos cuidadores. Muitas vezes, para se adaptar às necessidades da criança, eles precisaram abandonar algumas atividades, sejam profissionais ou de lazer, que favorecem a interação social 15,16,18,19,20.
A falta de apoio, seja comunitário ou da família, também surgiu como uma dificuldade para a vida social dos cuidadores de crianças com deficiência múltipla. Isso se manifesta nos artigos quando as mães relatam sentir que não têm tempo para a participação social, porque sempre precisam cuidar do filho com deficiência. Já as que recebem apoio de seus maridos, familiares, vizinhos ou amigos podem participar com mais facilidade 16,17.
A insegurança em relação ao comportamento do filho e os sentimentos e as emoções dos pais sobre as crianças também se apresentam como aspectos que desafiam sua participação social 15,16,17. Muitos vivenciam um conflito interno ao passarem algum tempo longe da criança. A sensação de culpa, ansiedade e insegurança por deixar a criança aos cuidados de outra pessoa para realizar atividades do convívio social, geralmente, acompanham esses cuidadores. Além disso, para evitar chamar atenção e causar constrangimento, eles abrem mão de ir a alguns eventos sociais devido a algum comportamento inesperado da criança.
Os estudos evidenciaram que os pais de crianças com deficiência múltipla sofrem com a instabilidade financeira, que surge devido aos custos adicionais do cuidado com seu filho e a necessidade de fazer adaptações ou de abandonar suas ocupações profissionais. As despesas com a reabilitação e com a saúde da criança envolvem gastos com transporte, medicamentos, consultas que, muitas vezes, extrapolam a renda familiar 16,18,20.
A falta de apoio financeiro de familiares ou do Estado e a escassez de serviços públicos que garantam assistência adequada para essas crianças são outros fatores complicadores para a estabilidade financeira da família, pois os pais são obrigados a pagar pelos serviços de que seus filhos necessitam 21. Em alguns casos, um dos cônjuges, geralmente o pai, passa a trabalhar em período integral, fazer hora extra ou desenvolver outra atividade lucrativa informal, na tentativa de melhorar a situação financeira da família 22. Observa-se, também, que o abandono do trabalho, mais frequente por parte da mãe, apareceu nos estudos como um fator agravante e/ou causador das dificuldades financeiras 15,17,19,21.
Cuidar de crianças com deficiência múltipla também implica em dificuldades no relacionamento familiar, tanto nuclear quanto expandido. Os estudos apontam que os pais acabam enfrentando problemas conjugais pela indisponibilidade para dedicar tempo ao seu relacionamento, em função dos encargos do cuidado ou por terem que trabalhar mais para garantir o sustento da família. Além disso, dividir as responsabilidades do cuidado da criança também surgiu como fator gerador de conflitos conjugais, que enfraquecem a relação 17,19,22. A vergonha, a sensação de fracasso e a insegurança do pai em relação ao nascimento de um filho com deficiência foram apontadas como agente causador da separação dos cônjuges nos artigos 16,22. A não aceitação pelos demais membros da família, devido ao estigma que envolve a deficiência, acaba gerando atritos e distanciamento entre os pais da criança e seus irmãos, mãe, pai, tios etc. 16,19.
Outra dificuldade encontrada foi a mudança no relacionamento com os outros filhos que também foi associada à falta de tempo dos pais devido à necessidade de maior atenção à criança mais vulnerável. Os pais demonstram profundo pesar por não conseguirem participar, de maneira mais efetiva, da vida de seus outros filhos 17,19,22. Para aqueles que contavam com o apoio do cônjuge, dividir as tarefas para que fosse possível dar a atenção necessária aos outros filhos foi uma estratégia de enfrentamento para amenizar essa dificuldade.
Quando os pais recebem o diagnóstico de um filho com deficiência múltipla, eles passam a lidar com um sentimento de fracasso e frustração pessoal relacionado à perda do filho ideal projetado. Isso se justifica porque o diagnóstico de uma deficiência representa a quebra dos planos e das expectativas dos pais para a educação da criança, acompanhada de um processo de negação, sentimentos de tristeza, decepção, desespero e, em longo prazo, autocensura e contabilização de perdas em relação a oportunidades de carreira, vida social e vida familiar mais ampla. A aceitação da nova realidade e o foco em suprir as necessidades do seu filho ajudam os pais a dissiparem esses sentimentos 15,19. Os pais apontam, ainda, que a crença numa melhora ou cura dos filhos, reforçada pela omissão de informações por parte de alguns profissionais, causa posterior decepção e passa a ser mais um agravante ao sentimento de frustração 19. A consciência de que seus filhos provavelmente nunca experimentarão marcos chaves, como viver sozinhos, trabalhar, casar-se, ter filhos, também foi manifestada nos estudos como motivo de frustração para os pais 17.
Outro sentimento que aflige os pais é a culpa, que aparece nos estudos em três perspectivas. A primeira vem do fato de ter gerado um filho “diferente” e “incapaz” e, como tal, percebido como inferior às demais crianças. A segunda é a sensação de impotência para aliviar o sofrimento do filho, mesmo em ações inerentes ao cuidado, como, por exemplo, submetê-lo a procedimentos dolorosos 15. Por fim, o sentimento de culpa surge também em resposta ao não cumprimento das expectativas da sociedade sobre o papel de ser Mãe e Pai segundo os padrões de normalidade. O imaginário social da “mãe perfeita”, do “amor incondicional” que envolve a maternidade e dita o que é ser uma “boa mãe” é um desafio ainda mais desgastante para as mães de crianças com deficiência múltipla 18.
O medo e a ansiedade também surgiram como sentimentos que angustiam os pais de crianças com deficiência múltipla e que são causados pela percepção da vulnerabilidade e necessidade de proteger seus filhos. Além disso, saber que podem morrer primeiro deixa os pais temerosos pela sobrevivência e o bem-estar dos filhos 15,17.
As mudanças na dinâmica familiar também foram apontadas nos estudos como repercussões no cuidado de uma criança com deficiência múltipla. Os desafios logísticos que surgem da necessidade de gerenciar ajuda externa, recursos econômicos e cronogramas médicos complexos requerem adaptações na rotina da família 17,19. Para alguns pais, a complexidade de tais adaptações veio acompanhada da dificuldade de estabelecer seus papéis como pais-cuidadores e negociar responsabilidades com outros membros da família. A mudança de rotina e de comportamento dos pais também surgiu como mecanismo de defesa para evitar situações de constrangimento por causa do estigma social 17.
A exaustão física e mental causada pela sobrecarga do cuidado de uma criança com deficiência múltipla foi a principal consequência apontada para o estresse à saúde e ao bem-estar do cuidador 15,20. Distúrbios osteomioarticulares, dores incapacitantes, fadiga crônica, distúrbios do sono e problemas de saúde mental foram associados à repetitividade e ao fardo do cuidado com a criança, em diversos artigos, no relato de mães e pais 19,22. Um fator citado como agravante à saúde e ao bem-estar do cuidador principal foi a necessidade de “batalhar” para garantir acesso aos serviços de apoio para a criança 15.
O cuidado em tempo integral exigido pela criança com deficiência múltipla faz com que os cuidadores principais abandonem suas atividades de lazer e autocuidado. A “falta de tempo para si” surgiu como uma dificuldade frequente dos pais e de outros familiares nos estudos 15,16,19,22, o que afeta diretamente a autoestima e a saúde mental.
Os conceitos de segunda ordem descritos na sessão anterior nos levaram a dois conceitos que serviram de guias para embasar a síntese que se segue. O primeiro é a resiliência familiar, definida como o processo dinâmico fundamentado no sistema de crenças, padrões organizacionais e processos de comunicação familiares que envolvem forças e recursos que as famílias desenvolvem nas circunstâncias estressantes a que são submetidas 23. O segundo é o conceito de representações sociais de Moscovici, entendidas como conjunto de percepções, sentimentos, normas e valores presentes nas experiências individuais e coletivas, que intervêm na definição da identidade social e concretizam-se nas práticas permeando atitudes e visões de mundo 24.
Assim, foi possível compor uma síntese com três temas: a deficiência e a parentalidade ideal; o ônus do cuidado para os pais da criança com deficiência; e as (re)ssignificações e adaptações da família.
Os estudos analisados mostraram que as repercussões na família por se ter um filho com deficiência múltipla são provenientes das dificuldades impostas pela incapacidade inata da criança, mas parecem se relacionar também ao abalo que a deficiência gera nas crenças dos pais a respeito da parentalidade, termo utilizado na literatura psicanalítica francesa, a partir dos anos 1960, para marcar a dimensão de processo e de construção no exercício da relação dos pais com o filho, antes e depois do nascimento 25.
Com base nos conceitos extraídos dos artigos, percebe-se que, em uma sociedade em que as diferenças são tidas como uma falta ou uma incapacidade, o senso de parentalidade é permeado pela exigência de se produzirem e desenvolver indivíduos sadios, cooperativos e eficientes, afinal, na lógica do capitalismo vigente, o corpo que não gera lucro é considerado como inválido 26. Portanto, ser pai ou mãe de uma criança com deficiência é uma experiência desumanizadora, na medida em que retira, desses homens e mulheres, a condição de igualdade com os outros, qualificando-os como inferiores 27.
Na busca por cumprir essas exigências que envolvem o papel de pai e mãe ideal, os pais idealizam o “filho perfeito” e tendem a mostrar, por meio da criança, o melhor de si, buscando reconhecimento do sucesso e autoafirmação de seu papel parental 28. Nenhum casal, ao planejar um filho, espera ou se programa para ter um filho fora dos padrões considerados normais. Eles projetam um filho independente e produtivo, desde o princípio da gravidez, fantasiam sobre o sexo do bebê, o desempenho na escola, a carreira e a orientação sexual que irá ter 29. Essa expectativa do ser humano em relação à sua prole é uma característica própria de sua natureza, contudo, os resultados do presente estudo nos levam a concluir que o nascimento de um filho com deficiência múltipla põe, em cheque, essa expectativa e as crenças dos pais adquiridas conforme sua experiência ao longo da vida, o que pode afetar as relações parentais com a criança e, consequentemente, todo o processo de aceitação dela.
Pinker 30 observou que as crenças dos pais estão implícitas nas decisões que são tomadas e direcionam, entre outras coisas, a maneira de criar os filhos, os objetivos e os valores parentais. Outro estudo, desenvolvido por Biasoli-Alves 31, mostrou que os valores e as crenças compartilhados pelos pais sobre o desenvolvimento do filho influenciam o comportamento e as práticas parentais, além de afetar as interações que são estabelecidas com as crianças.
Com o objetivo de entender as relações parentais em famílias de crianças com desenvolvimento atípico, Sá & Rabinovich 28 também concluíram que as experiências e as crenças de cada um dos membros da família encaminham como vai ser interpretada a deficiência e, quanto mais o entendimento da deficiência em uma família tiver caráter negativo, mais complexas serão as relações parentais com o filho. Pinquart 32 realizou um estudo com o objetivo de comparar a qualidade da relação entre pais e filhos, assim como os comportamentos e os estilos parentais entre famílias de crianças com desenvolvimento normal e famílias de crianças com doença física crônica. O pesquisador encontrou que a relação entre pais e filhos tendia a ser menos positiva nas famílias que tinham uma criança com doença física crônica, o que corrobora com a interpretação dos resultados do nosso estudo.
Os resultados da presente metassíntese também nos levam a concluir que, quando os valores parentais são consonantes com as construções socioculturais hegemônicas sobre a deficiência, ou seja, arraigadas de estigma etc., as relações parentais são infiltradas por sentimentos e sensações de frustração pessoal, culpa, decepção e fracasso. Esses sentimentos são ligados ao luto pela perda do filho perfeito idealizado e à impossibilidade de cumprir com as expectativas sociais sob o papel da paternidade e maternidade. Os artigos analisados mostraram que, em um contexto histórico no qual o papel da mulher é definido biologicamente e caracterizado prioritariamente pela maternidade, o simples fato de ter gerado um filho que não está entre os padrões ditos normais de nossa sociedade é suficiente para gerar distorções da autorresponsabilidade, que se manifesta nos sentimentos anteriormente mencionados 33.
Diversos autores encontram essa mesma relação ao investigarem as repercussões do nascimento de uma criança com deficiência na vida dos pais. Sentimentos, tais como choque, ansiedade, tristeza, culpa, incertezas e insegurança, negação, estresse, maior probabilidade de dificuldade de ajustamento psicológico e depressão, são frequentemente associados ao luto pela perda da criança idealizada no relato dos pais cuidadores 32,34,35,36,37,38,39,40,41,42,43,44,45.
Concordando com nossos achados, Buscaglia 46 aponta a relação entre o estigma social sobre a deficiência e o sofrimento de mães cuidadoras e afirma que atitudes ignorantes e preconceituosas causam, diariamente, sofrimentos incalculáveis para as crianças com deficiência e suas famílias. O horror e o constrangimento de ser observado, ridicularizado ou discriminado foram descritos repetidas vezes pelas mães, e essas atitudes com relação ao filho considerado anormal refletem direta e significativamente nelas. Em consonância com a afirmação anterior, Krinski 47, ao explicar como a compreensão social sobre a deficiência afeta as mães de crianças com deficiência múltipla, afirma que toda depreciação da criança é sentida pela mãe como depreciação de si mesma, e toda condenação do filho é uma sentença de morte para ela.
Por fim, nesta análise, também se constatou que a influência das construções socioculturais sobre a deficiência nas crenças e no comportamento dos pais os impele ao isolamento e à restrição social como uma tentativa de proteção contra o preconceito. Green 48, em uma pesquisa qualitativa com mães de crianças com deficiência, descobriu que o ônus da prestação de cuidados está mais relacionado à rejeição social e ao estigma social do que a direcionar questões de cuidado e adaptação em torno da deficiência da criança. Esse efeito é preocupante, porquanto o isolamento da família implica na retração das redes de apoio social. Coelho & Coelho 49, estudando o impacto psicossocial em pais de crianças com deficiência, também encontraram resultados semelhantes aos do corrente estudo e concluíram que essas famílias, designadamente os pais, são pressionados pelas necessidades imediatas e pelos preconceitos sociais, desenvolvendo uma tendência a se isolar, em especial a mãe. Esse isolamento reduz progressivamente a rede e os recursos por ela potencializados, num ciclo negativo de necessidades crescentes e recursos decrescentes, reduzindo também os papéis sociais dos pais que se centram quase exclusivamente no seu filho.
As representações sociais sobre a criança com deficiência múltipla não se manifestam somente na criança, mas também nos pais e nos familiares, pois afetam as relações entre as crianças e seus pais, mediadas pelas consequências do ideário do filho perfeito, bem como afetam também as relações entre os pais e familiares com o conjunto da sociedade por intermédio do estigma e de outras formas de preconceito social. Mais do que isso, produzem práticas (isolamento social, reforço da desvantagem produzida pela deficiência, dentre outras) que se colocam como barreiras a serem enfrentadas para que as relações parentais não se fragilizem e para que as redes de apoio se mantenham fortes e operantes em prol do cuidado integral da criança e da família.
Diversos estudos têm sido publicados sobre os significados e os impactos do cuidado de crianças com deficiência na vida de seus cuidadores 28,38,50,51,52,53,54. Em conformidade com os achados descritos nos conceitos de segunda ordem, a literatura também aponta que o cotidiano dos cuidadores de crianças com deficiência é permeado de conflitos familiares, agravos nas condições de saúde, transtornos e privações intimamente relacionadas às condições que lhes possibilitam exercer sua autonomia, participação social e econômica que causam sofrimento a esses indivíduos 15,16,45,51,55,56.
Compreendeu-se, aqui, que as repercussões do cuidado dispensado à criança com deficiência múltipla, oriundas da sobrecarga física imposta ao cuidador como: dores articulares, fadiga física, distúrbios do sono etc., não são as maiores fontes do sofrimento dos pais e familiares no que concerne às atribuições do cuidado, apesar de essas alterações de ordem física serem apontadas frequentemente em outros estudos sobre o tema 19,22,54,56,57. O impacto maior do cuidado parece advir das restrições que o cuidador sofre para suprir as necessidades da criança. Os estudos analisados demonstraram que a exigência de atenção integral à criança com deficiência múltipla culmina, em última instância, com a perda de identidade do cuidador devido ao comprometimento do tempo para realizar seus projetos pessoais, profissionais, atividades de lazer e autocuidado, como também têm apontado outras pesquisas 16,58,59,60,61,62.
Além do exposto acima, a dificuldade financeira devido ao abandono do trabalho e aos custos adicionais com a saúde do filho com deficiência múltipla, assim como em outros estudos 40,41,57,61, é referida nos artigos como um ônus do cuidado, mesmo quando se trata de famílias que vivem em países desenvolvidos onde o estado de bem-estar social é realidade prática 15,16,18,22. Em países de contexto político e econômico mais vulnerável, como o Brasil e outros países do hemisfério sul, as dificuldades financeiras experienciadas pelas famílias de crianças com deficiência múltipla podem se tornar ainda mais agravantes e geradoras de sofrimento. Segundo Diniz et al. 63, a combinação de uma estrutura social pouco sensível à deficiência e à inclusão da pessoa com deficiência com um quadro de extrema desigualdade e com a pouca valorização do cuidado como um princípio coletivo de bem-estar facilita a saída das mulheres do mercado de trabalho, vulnerabilizando-as e expropriando delas a possibilidade de adquirir, por meio do trabalho, outros benefícios sociais de médio e longo prazos, como é o caso da previdência social, e o incremento da renda familiar.
Outro fator apontado nos artigos como uma repercussão negativa proveniente da necessidade de se dedicar, em tempo integral, à criança com deficiência múltipla é o desgaste das relações familiares, com o cônjuge, com os outros filhos ou até mesmo com membros da família expandida. Confluindo com nossos achados, outras pesquisas com famílias de crianças com deficiência, também, concluíram que, por consequência da sobrecarga do cuidado, as famílias podem tornar-se desorganizadas e conflituosas e se fragmentarem com a separação dos pais ou com a falta de cuidado com os outros filhos 27,64,65.
As representações sociais sobre o papel do cuidador também foram mencionadas por alguns autores 58,66,67, como um ônus do cuidado na medida em que também suscitam sentimento de culpa, frustração e medo nesses indivíduos, porém, essa perspectiva não apareceu nos artigos analisados neste estudo.
A representação de cuidador familiar, segundo Hedler et al. 67, vincula-se ao imaginário do vocacional/obrigacional, representado como uma forma altruística de se dedicar, doando-se e abdicando de outras aspirações para cumprir esse papel, o que, às vezes, implica em sofrimento. Reforçando a mesma ideia, Azevedo & Santos 58, ao analisar os significados do cuidar para familiares que compartilham o cuidado domiciliar de pessoas com deficiências físicas, encontraram, nas falas dos cuidadores, forte sentimento de culpa pela deficiência, o qual, aliado à crença de que não se deve abandonar uma pessoa com deficiência à sua própria sorte (o senso de dever e responsabilidade), determina uma forma de cuidar que pode se apresentar como um ajuste de contas, um chamado à expiação da culpa, entendida como pecado, por sentimentos antigos redescobertos e reconstruídos a partir da memória. No mesmo estudo, a ambivalência de sentimentos, como amor/ódio, alegria/sofrimento, euforia/depressão, aceitação/rejeição, também foi frequente nos discursos dos cuidadores e é justificada pelo contraponto do desgaste físico e emocional e da satisfação em realizar um dever.
Silva et al. 61, em seu estudo sobre o impacto do cuidado de uma criança com deficiência múltipla, também verificaram, nos relatos das mães, que o cuidado com a criança é um misto de sofrimento, renúncia, mas, sobretudo, de devotamento compensado pelos ganhos neurológicos decorrentes de sua reabilitação. Concluíram que a dedicação dos familiares à criança exigiu adaptação a uma gama de sentimentos que se expressaram por reações ambivalentes, em forma de tristeza, alegria, conflitos, gratificações que, com o passar do tempo, culminou com a superação das dificuldades e o estabelecimento do vínculo amoroso entre mãe e filho.
Alerta-se para a necessidade de se problematizarem, entre pais e familiares, essas representações e suas consequências, para que o cuidado com a criança com deficiência múltipla não seja entendido como um sofrimento adicional em vez de um processo natural da vida, que, como tal, deve ser conduzida com base em outros valores que podem ser socialmente aprendidos, como solidariedade e compromisso com a vida.
Tendo nos ombros a responsabilidade social de prover um cuidado e um ambiente adequado para as necessidades do filho, os artigos apontam uma série de mudanças no cotidiano da família que caracterizam o processo de adaptação desenvolvido conforme a capacidade de resiliência dos pais. Segundo Greeff & Aspeling 68, a resiliência é o conjunto de processos que, em situações de adversidade, conduzem a resultados tão bons ou, até, melhores do que se preveria nessas situações. Gradner & Harmon 69, ao investigarem a resiliência familiar por meio de uma análise qualitativa fenomenológica, concluíram que essa capacidade dos pais estava relacionada a uma atitude positiva em relação à vida, ao fato de serem organizados e confiantes, ao reconhecimento de suas forças e limitações, à existência de parceiros apoiadores, ao forte senso de sentido na vida e crenças religiosas, fatores que também encontramos nos artigos desta revisão.
Observamos, por meio da nossa análise, que a flexibilização de papéis, o compartilhamento de tarefas e a divisão das responsabilidades concernentes ao cuidado da criança são considerados, pelos pais, negociações importantes para o ajustamento da rotina da família. Concordando com esse achado, Walsh 23,70, em pesquisa com pais de crianças com déficit de desenvolvimento, também constatou que negociar conjuntamente as obrigações referentes ao cuidado entre os membros da família, planejar novas possibilidades, opções e recursos para superar as adversidades são atitudes cruciais para o processo de adaptação.
Outro processo importante encontrado para que a família se adapte ao diagnóstico de uma criança com deficiência múltipla foi a ressignifição da parentalidade que possibilita aos pais deslocarem o foco da frustração e do luto pelo filho perfeito idealizado para a satisfação das necessidades da criança. Isso se manifesta, nos artigos analisados, pela dedicação que os pais empregam na busca por serviços de reabilitação e pela própria abdicação de seus projetos pessoais para se dedicar ao cuidado com o filho. Concordando com esse achado, Chacon 44 também afirma que, durante o processo de adaptação, a família real ocupa o lugar até então ocupado psiquicamente pela família idealizada no entendimento dos pais. E essa mudança se mostra importante para que cada membro da família desempenhe seu papel com flexibilidade suficiente para ressignificar valores e padrões de relacionamento e encarar as adaptações necessárias ao cuidado com a criança.
A espiritualidade e a crença em um ser superior também foram apontadas nos artigos da presente revisão como fatores que ajudaram os pais e familiares a encontrarem sentido para a realidade que enfrentam e a encontrarem forças para enfrentar a nova condição (deficiência) que se impõe como um estressor à organização da família. O mesmo encontra-se em outros estudos 71,72, que afirmam ser a religiosidade uma estratégia eficaz de enfrentamento para a família se adaptar à condição de deficiência do filho, não só no momento do diagnóstico como também durante as tarefas de cuidado desse filho ao longo da vida.
Li-Tsang et al. 73 acrescentam ainda que os pais que apresentam uma adaptação bem-sucedida à presença de uma criança com diagnóstico de deficiência congênita têm uma estrutura familiar estável e são geralmente extrovertidos e confiantes, têm atitudes abertas, são eficientes na gestão do tempo e estão altamente motivados para procurar uma rede local e de apoio social para seus filhos, tentando resolver seus problemas de forma realista. Esses aspectos também foram encontrados nos estudos analisados nesta revisão. Nossas análises indicaram que o apoio dessas redes é de extrema importância para a adaptação da família e saúde do cuidador, tendo em vista que proporciona suporte às necessidades de cuidado da criança e possibilita ao cuidador tempo para fazer atividades importantes de sua vida, diferentes daquelas concernentes ao cuidado à criança, como apontam outros autores 23,74,75,76.
Por fim, observa-se que, apesar dos problemas que perpassam a questão da deficiência na família, reagir à adversidade, adaptar-se, criar soluções e empenhar-se em otimizar o desenvolvimento de suas crianças, com passar do tempo, também se tornam uma repercussão do cuidado, quando essa realidade é encarada com otimismo, persistência, solidariedade, criatividade e, principalmente, amor.
A literatura apontou diversas mudanças na vida pessoal e cotidiana dos pais relacionadas ao nascimento e ao cuidado de crianças com deficiência múltipla. Grande parte delas está associada ao choque que a deficiência gera nas crenças e nas expectativas dos pais e da sociedade, bem como à sobrecarga advinda das atribuições do cuidado. Essa sobrecarga, além de repercutir negativamente na saúde física, limita as atividades do cuidador e causa dificuldades nas relações familiares e na participação social, o que culmina em problemas de identidade pessoal e saúde mental dos cuidadores. Além disso, o nascimento e o cuidado de uma criança com deficiência afetam também a vida cotidiana dos pais, pois cuidar de um filho com deficiência múltipla exige uma reorganização da rotina familiar, e isso altera a dinâmica familiar.
O estudo apontou, ainda, que a chegada de um filho com deficiência na família frustra as expectativas baseadas em representações sociais da parentalidade e gera sentimentos de fracasso, culpa e tristeza relacionados ao luto pela perda do filho perfeito idealizado. A compreensão e o comportamento social relativos à deficiência também alteram o cotidiano da família na medida em que os cuidadores assumem uma postura de defesa contra o estigma para evitar situações do convívio social. Esse isolamento afeta a vida pessoal dos pais e retrai as redes de apoio social, o que pode comprometer o desenvolvimento da criança com deficiência múltipla.
Diante do exposto, chama-se à atenção para a importância de incentivar a criação de programas de intervenção centrados na família que favoreçam o processo de resiliência familiar e do fortalecimento e da ativação das redes de apoio social, criando-se e apoiando-se associações, grupos etc. como estratégias primordiais na assistência à saúde de crianças com deficiência múltipla. É imprescindível que não só a criança, mas também a família sejam alvos da abordagem dos profissionais de saúde e da seguridade social.
Como limitações, percebemos que, embora tenhamos escolhido bases consideradas robustas no meio científico e de ampla abrangência em termos de publicações na área da saúde e das ciências humanas e sociais, não descartamos o fato de que a inclusão de mais bases pode trazer algum incremento na quantidade de artigos originais e elementos conceituais que agreguem ao que foi exposto nesta pesquisa. E, apesar de termos incluído a base de dados SciELO, nenhum estudo foi encontrado que representasse a realidade da América Latina. Portanto, a maioria dos estudos incluídos nesta revisão foi de países desenvolvidos e do norte. Por essa razão, entendemos que são necessários estudos empíricos que tratem da questão central discutida aqui, com foco, sobretudo, no recorte de classe e de raça em países emergentes. Outro aspecto interessante a ser investigado com mais afinco são os impactos para o pai e para a mãe da criança com deficiência múltipla, visto que os estudos analisados aqui não se debruçaram tanto sobre as diferenças na perspectiva de gêneros.