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Réplica: Governança, redes sociais e saúde: caminhos interpretativos

Réplica: Governança, redes sociais e saúde: caminhos interpretativos

Autores:

Breno Augusto Souto Maior Fontes

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.20962018

Em missão de pesquisa, visitando um Hospital Psiquiátrico em Luanda, Angola, causou-me espanto um fato: as pessoas lá internadas estavam acompanhadas pelos familiares (pais, mães, esposos, filhos), que montavam barracas em um grande pátio no interior da Instituição asilar e lá permaneciam durante o período de internamento hospitalar de um dos seus. Buscavam cuidados especializados, dispensados por médicos e enfermeiros, mas não renunciavam àquele tradicional, exigido a partir de uma complexa relação de trocas que se imiscuem nas relações familiares. Deve ser acrescentado o fato de que as famílias, diante da crônica escassez das Instituições públicas de cuidado, proveem àqueles internados o suporte necessário: comida, roupa lavada, às vezes remédios.

Este fato se torna mais claro quando comparo com uma experiência pessoal: a minha filha nasce em Paris, em uma noite de outono europeu. Acompanho minha esposa à maternidade, sendo dispensado pela equipe médica logo após o parto. Revejo minha esposa e minha filha somente no dia seguinte à tarde, quando o horário de visitas é aberto. Fato que na época me deixou um pouco consternado, pois o parto e o nascimento é acontecimento da família no Brasil: mesmo que não tenhamos mais partos em casa, as famílias se deslocam à maternidade, aguardam a chegada do novo membro, confraternizam-se. E é comum que alguém fique no hospital acompanhando a parturiente. Em hospitais públicos, onde os locais para acompanhantes são precários (normalmente, uma cadeira mais confortável), ou nos hospitais-hotéis da nossa classe média, sempre as famílias se fazem acompanhar. Alguém sem acompanhante é visto com pena, assinalando a ausência do desvelo no suporte familiar.

Neste ponto, concordo inteiramente com Silvia Portugal: que o paradigma do cuidado é estratégico para compreender as diversas formas de atenção à saúde. Mas acrescento, ainda, que a compreensão plena da ideia de cuidado só é possível a partir de uma sociologia reticular. Os modelos da medicina biossocial não são suficientes para a compreensão da complexa articulação social envolvendo atores diversos inscritos em campos de sociabilidade específicos (o Estado, o mercado, as redes familiares os campos de sociabilidade inscritos em laços fortes, mas não necessariamente oriundos da teia familiar...), enfim, ainda segundo Silvia Portugal, colocando o sujeito (aquele que necessita de cuidados) no centro, e os desdobramentos das inscrições reticulares de sua biografia – inclusive aquelas de que não participa diretamente, mas enquanto produto de um momento histórico onde vive, a sociedade do Estado de Bem Estar Social, por exemplo.

Um fato interessante e que merece ser explicado: porque as diferenças? Que campos complexos de sociabilidade produzem sociedades, como no norte europeu, onde o campo do cuidado se desloca quase que exclusivamente para o espaço institucional; ou, inversamente, sociedades onde, mesmo com espaços de mercado e de Estado relativamente bem desenvolvidos, o espaço da família e das sociabilidades primárias – como é o caso dos países do sul da Europa, e também, diria com algumas particularidades, os da América Latina – são importantes? Sociedade onde a marca do Estado e mercado é a dominante, e outras onde os campos de circulação não estatais ou mercantis se revelam estratégicos. Há uma importante literatura que inscreve estas sociabilidades no fenômeno da dádiva, inicialmente trabalhado por Mauss1 para sociedades menos complexas, mas agora também aceito para explicar fenômenos de sociedades contemporâneas.

Há um fato a assinalar, aparentemente distante, mas fundamental: o espírito de um povo, suas características de temperamento e as formas como se relaciona, embora sejam categorias talvez muito próximas da ideia de um zeigeist, conceito antigo e de uso mais frequente entre os filósofos idealistas alemães dos séculos XVIII-XIX. Como assinala Simmel, os povos do norte da Europa, principalmente aqueles habitantes das grandes metrópoles apresentam uma distância e reserva nas suas relações, que resulta em contatos superficiais, ocasionais, precisos em suas finalidades2. O mesmo fenômeno, aqui classificado como reserva moral – campo de controle das emoções, do cuidado com a distância social em ambientes públicos – visto de forma diferente, é descrito em Elias3. Características típicas das práticas de sociabilidade secundárias, e bastante funcionais às práticas ancoradas na racionalidade instrumental, como bem demonstra Habermas4, mais adiante.

As práticas de sociabilidade acima descritas se inscrevem em um campo mais amplo, onde principalmente as diversas camadas da população se encontram em posições bastante diferenciadas. Assim, em sociedades complexas é comum encontrarmos importantes diferenças socioculturais, que envolvem aquilo que Rawls5 designou de overlapping consensus, fórmulas de convivência muitas vezes envolvendo complexas negociações de conflitos. Ainda poderíamos acrescentar a diversidade no consumo de bens simbólicos, tratada por Bourdieu6 em uma perspectiva diversa da análise liberal de Rawls. Também é importante assinalar padrões estruturais constituídos historicamente que praticamente “sedimentam” importantes diferenças e desigualdades sociais. É o caso de países que viveram a escravidão – Brasil e Estados Unidos, por exemplo – onde enormes assimetrias entre os povos de descendência africana e aqueles europeus são registradas. As diferenças, desta forma, são importantes variáveis para pensar a governança e a formulação de políticas públicas.

Os espaços de sociabilidade orientados para a sociedade civil, para as práticas de solidariedade ancoradas nas redes de laços fortes, família e território, são importantes para a organização da vida cotidiana dos povos da América Latina, em especial os pobres urbanos. Pobreza, já dizia Alain Touraine7, é uma categoria que permite compreender parte importante das populações urbanas das grandes metrópoles da América Latina. Inscrita nesta ideia, vem o fato de estas populações se organizam de forma particular, estendendo os vínculos sociais primários para além dos espaços da família nuclear, construindo ao lado uma ampla rede de vizinhos, amigos e parentela. Este importante tecido reticular é um anteparo estratégico no enfrentamento das adversidades da vida: busca por empregos, segurança, e cuidado em saúde. A obra de Larissa Lomnitz8 é fundamental para compreendermos como os pobres se organizam, e como constroem redes de proteção.

Desta forma, categorias clássicas para a construção de identidade, como classes sociais e grupamentos étnicos, se tornam supérfluas para compreender os pobres urbanos, relativamente homogêneos, e construindo suas biografias tendo por pano de fundo as adversidades da vida urbana: precarização das moradias e do habitat, precariedade do emprego, precariedade de direitos. O que os une é o destino, a fatalidade no enfrentamento das dificuldades em sobreviver.

Aqui faremos um détour para outro campo de atenção entre os cientistas sociais, aparentemente distante da temática que vimos tratando até agora, mas como veremos, transversalmente atravessando os campos das redes sociais, saúde e cuidado. O norte destas considerações tem origem no texto de Deslandes9, sobre o lugar da internet da produção de sociabilidades.

Cabe colocar como primeira questão a dimensão real do fenômeno. Colocada enquanto importante revolução tecnológica, potencializadora das capacidades de comunicação e desta forma construindo novas formas de sociabilidade, as redes sociais mediadas pela internet têm dois campos importantes de reflexão, salientados no texto de Deslandes: (a) importante instrumento na promoção de práticas de gestão participativa e de construção de uma nova esfera pública; (b) instrumento cada vez mais utilizados para acessar recursos de saúde (informações, apoio, mobilização).

Para a primeira questão, um ponto importante que deve ser destacado, já trabalhado por mim e Ferreira em outra ocasião: “temos que ser cautelosos em relação à potência reformadora de uma ágora virtual: democracia não é uma mera conquista técnica, mas um chamado político – e por isso assustam-nos aqueles que procuram cancelá-la numa distopia, numa utopia técnica ou econômica, ou ainda numa resposta pronta10”. Temos aqui algo inteiramente novo e com potência revolucionária ainda não completamente dimensionada. Estudiosos em redes tem advertido que, a contrário do que Erdös pensava – refletindo sobre a teoria dos grafo de Euler – não há horizontalidade nas teias reticulares, e o imperativo que os ricos ficam sempre mais ricos reflete o fato de que, neste labirinto de conexões, é possível encontrar hubs, atores centrais, que controlam e organizam o fluxo de informações11. O que significa que a democracia participativa, a partir das redes mediadas pela internet, pode significar um simulacro, um campo midiático que efetivamente não resulta nas promessas que faz, da mesma forma que os críticos têm advertido sobre os processos clássicos de participação na gestão.

O segundo ponto igualmente assinalado por Deslandes, o das sociabilidades engendradas pela internet, que resultam em recursos mobilizados para o cuidado. Este tema já foi por mim trabalhado em outro texto, onde, a partir da ideia de “círculos virtuais da loucura”, procuro investigar os processos de mobilização de recursos para o cuidado com pessoas com transtorno mental. Recursos que são de diversos tipos: apoio, informação, serviços. São redes não ancoradas territorialmente, mas que possuem características próximas àquelas resultantes de interações face a face. Assim, os chamados círculos sociais (independentemente se originados de interações face a face ou mediados pela internet), são “fluxos de sociabilidade, ao mesmo tempo em que moldam o indivíduo, único em suas escolhas e experiências, o inscrevem em um campo de reconhecimento. Estas sociabilidades têm um conteúdo ‘prático’ direto, são locus da reprodução, onde recursos são mobilizados, distribuídos12”.

Aqui, como também nas considerações de Silvia Portugal, a temática central são as redes sociais, as sociabilidades enquanto produtoras de cuidado, ou veículo para a construção de práticas de gestão participativa. Fenômenos inscritos em espaços micro ou macro, mas que bem compreendidos quando utilizamos a metodologia de análise das redes sociais; e, vale destacar este ponto, que, independentemente de estarmos lidando com interações face a face ou mediadas pela internet, o fenômeno reticular apresenta as mesmas configurações estruturais – guardadas as especificidades de cada um dos campos de análise – o que nos permite afirmar da potência analítica desta ferramenta teórica e metodológica.

REFERÊNCIAS

1. Mauss M. Ensaio sobre a Dádiva. In: Mauss M. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosaf & Naif; 2003.
2. Simmel G. Philosophie des Geldes. Frankfurt an Main: Suhrkamp; 2003.
3. Elias N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1994.
4. Habermas J. Theorie des Kommunikativen Handels. Frankfurt an Main: Surkamp; 1981.
5. Rawls J. A Theory of Justice. Harvard: Harvard University Press; 1971.
6. Bourdieu P. La Distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Editions du minuit; 1979.
7. Touraine A. La parole et le sang: politique et société en Amérique latine. Paris: Éditions Odile Jacob; 1988.
8. Lomnitz L. Redes sociales, cultura y poder: Ensayos de antropología latino-americana. Mexico: Flacso; 1991.
9. Deslandes SF. O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Cien Saude Colet 2018; 23(10):XXX.
10. Ferreira J, Fontes B. Ágora eletrônica: algumas reflexões teórico-metodológicas. Estudos de Sociologia 2012; 2(19).
11. Barabási AL. How Everthing is connected to everything else, and what it means for Business, Science and Everyday life. New York: Plume; 2003.
12. Fontes B. Tecendo redes, suportando o sofrimento: sobre o círculo social da loucura. Sociologias 2014; 16(37):112-143.