Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.28 no.2 São Paulo Mar./Apr. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201500018
Todas as etapas do Processo de Enfermagem (Avaliação, Diagnóstico de Enfermagem, Planejamento, Implementação e Avaliação) devem estar integradas no sistema de registro do paciente, permitindo a comunicação entre os profissionais da equipe de saude. O diário dos cuidados de enfermagem aos pacientes é uma tarefa essencial tanto para oferecer qualidade sanitària adequada quanto para o desenvolvimento da profissão.(1)
Os Registros de Enfermagem podem ser definidos como “documentação de apoio, onde são coletadas todas as informações sobre a atividade de enfermagem referente a uma pessoa em particular e sobre sua avaliação, o tratamento recebido e a evolução”. (2) Além de servir como um registro documental, tais registros podem ser usados para o benefício do centro de saúde e do pessoal, bem como na defesa contra uma ação legal e em um sistema de avaliação para a gestão dos cuidados de enfermagem.
O registro da prática de enfermagem no histórico clínico do paciente envolve a atualização contínua do conhecimento teórico e metodológico da profissão, e o intercâmbio de informações padronizadas para todos. Tal registro também assegura o planejamento e alocação dos cuidados através de taxonomias padronizados de NANDA, NIC e do diagnóstico NOC e facilita a aplicação do processo de enfermagem em todas as suas etapas. Entretanto, apesar dessa ser uma maneira eficaz de influenciar a pràtica de enfermagem, ela continua a ser deficiente e escassa.(3)
Entre os vários registros gerenciados pelos enfermeiros vale mencionar o mais moderno, conhecido como relatório de alta de enfermagem ou, mais recentemente, o Relatório de Cuidados Continuados.
O Relatório de Enfermagem na Alta hospitalar (REA) é o documento elaborado e redigido no momento da alta pelo enfermeiro que atendeu o paciente durante a internação.(4) O relatório inclui os fundamentos do processo de enfermagem para admissão do paciente,(5) garante a continuidade dos cuidados,(6,7) facilita o acompanhamento de pacientes(8) e clarifica o papel dos enfermeiros na população servida por eles.(9) Outra definição descreve o relatório como “o documento que finaliza o processo de cuidado em enfermagem iniciado no momento da admissão do paciente a um hospital, pois comunica as informações sobre o referido paciente entre os dois níveis de apoio existentes em nosso sistema de saude”.(10)
A importância deste relatório foi determinada desde que a Lei Geral de Saúde de 1986 estabeleceu na Espanha os cuidados de saúde em dois níveis assistenciais interligados: atenção primária (funcionando como porta de entrada dos usuários no sistema) e atenção especializada (apoio e complemento à atenção primária e necessária nos processos em que a complexidade exija).(11) Desde então, a continuidade de cuidados entre os dois níveis continuou a ser um dos principais desafios que os vários serviços de saúde vêm enfrentando rotineiramente, com resultados bastante discretos até agora. Dentre as estratégias específicas propostas por especialistas, o relatório de enfermagem aparece como um instrumento de intercomunicação, junto com a criação de profissionais como os enfermeiros de ligação, também chamado de enfermeiros domiciliares, enfermeiros gestores de casos ou enfermeiros de continuidade, enquadrados em programas de gestão de casos.(11) Esses profissionais são as figuras responsáveis por garantir a continuidade dos cuidados entre os vários segmentos (médicos, serviços sociais, outros enfermeiros) e níveis de cuidado, portanto, podemos dizer que fazem o papel de agentes dos pacientes quando estes necessitam de serviços sociais e de saúde.(12)
Estas circunstâncias influenciam diretamente o fato de que a enfermagem na Espanha é referência na Europa desde os anos 70 do século passado, o que incentiva os enfermeiros gestores a investigar sobre o conteúdo, as aplicações e a formação que os profissionais têm sobre tal documento, a fim de continuar desenvolvendo a disciplina.
Por isso, é necessário analisar o desafio inicial de enfermeiros clínicos nos hospitais da Região de Múrcia para a implementação imediata do relatório de Enfermagem na alta hospitalar. Os objetivos estabelecidos neste estudo são, inicialmente, conhecer a sua opinião profıssional (elaboração, segurança e adequação ao paciente) e focar na identificação das barreiras que os gestores de saúde encontrarão quando chegar o momento de trabalhar com o documento (formação, carga de trabalho, falta de tempo e as relações profıssionais com outras equipes de saúde).
Apresentamos um estudo descritivo - exploratório e incidental com abordagem transversal. Na sequência, foi realizada a primeira fase da revisão da literatura, seguida por um estudo de campo, onde foi feita uma análise das variáveis qualitativas e quantitativas através de um questionário validado pelos hospitais objeto de estudo, e adaptado para a amostra após a análise utilizando pré-teste.
A população do estudo é formada por enfermeiros da atenção especializada da região de Múrcia, localizada em hospitais em nove ãreas de saúde CCAA Múrcia (Tabela 1). A amostra foi selecionada aleatoriamente entre os profıssionais dos nove hospitais da Região de Múrcia, pertencentes às nove áreas de saúde da região escolhidas para o estudo.
Tabela 1 Hospitais estudados e número de enfermeiros pesquisados
Áreas de saúde/Múrcia | Hospitais | Pesquisas | Pesquisas nulas (não respondidas corretamente ou não devolvidas) | Enfermeiros pesquisados |
---|---|---|---|---|
I: Múrcia/Oeste | Hospital Virgen de la Arrixaca | 180 | 62 | 118 |
II: Cartagena | Hospital Santa María Del Rosell | 40 | 18 | 22 |
III: Lorca | Hospital Rafael Méndez | 40 | 21 | 19 |
IV: Noroeste | Hospital Comarcal Del Noroeste | 40 | 5 | 35 |
V: Altiplano | Hospital Virgen del Castillo (Caravaca de la Cruz) | 40 | 0 | 40 |
VI: Vega Media del Segura | Hospital General Universitario Morales Meseguer | 50 | 0 | 50 |
VII: Múrcia/Leste | Hospital General Universitario Reina Sofía | 50 | 0 | 50 |
VIII: Mar Menor | Hospital Los Arcos | 50 | 18 | 32 |
IX: Vega Alta del Segura | Hospital de la Veja Lorenzo Guirao (Cieza) | 40 | 6 | 34 |
Total | 530 | 130 | 400 |
O questionário final foi desenvolvido após a realização obrigatória de um piloto durante o mês de junho de 2010, com uma amostra de 100 prétestes em nove hospitais da região, fundamentados nos conteúdos metodológicos utilizados na plataforma SELENE,(13) com base nos padrões de Gordon.(14) Os métodos e ferramentas foram utilizados em todos os hospitais na região de Múrcia para a conclusão do registro médico e de enfermagem e gestão de cuidados. Após coleta e análise dos dados, foi elaborado o modelo final do questionário, adaptado para a população-alvo de nosso estudo. A versão final inclui 46 questoes numéricas, escala do tipo Likert ou respostas dicotômicas nominais (sim/não), divididos em blocos que incluem perguntas sociodemográficas, de trabalho, sobre formação universitária/educação continuada e quatro questões específıcas relacionadas ao conhecimento e uso da nomenclatura profıssional padronizada, objeto de estudo deste trabalho.
O programa GRANMO foi usado para calcular o tamanho da amostra, com um nível de confiança de 95%, chegando a uma amostra final de 400 questionários. Durante os meses de novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011 foram distribuidos 530 questionários, junto com uma apresentação geral do caráter do estudo em nove hospitais das correspondentes áreas de saúde da Regiáo de Múrcia. Junto aos questionários foi anexada uma apresentação do estudo de caráter geral, garantindo em todos os momentos o sigilo e anonimato dos dados coletados, e para isso, contando com a colaboração de profissionais responsáveis de cada uma das unidades dos centros de saúde. Os critérios de inclusáo foram os seguintes: enfermeiros ativos nos centros estudados na época da pesquisa e com funçoes assistenciais. O critério de exclusáo foi ser enfermeiro inativo no momento do preenchimento do questionário. As variáveis objeto de estudo compreenderam ainda independentes sociodemográficas e sociolaborais, além da aplicação de variáveis dependentes, que medem as dimensoes permitindo o alcance dos objetivos do estudo: a opiniáo dos profissionais de enfermagem sobre o Relatório de Enfermagem na Alta hospitalar e as potenciais dificuldades para a sua implantação.
Para a anàlise descritiva, foram utilizadas medidas de tendência central e percentual de frequência. A associação das variàveis quantitativas foi realizada através do teste t de Student, utilizando a distribuição Qui-quadrado para a medição de variàveis qualitativas. As anàlises univariada e multivariada foram realizadas ajustando o modelo por antiguidade no posto de trabalho.
A análise estatistica foi feita com o uso do software SPSS (Statistical Package for Social Sciences) versão 19.0 para Windows e com a criação de um banco de dados de nossas variáveis.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Com relação a dados sociodemográficos e sociolaborais, a idade dos enfermeiros pesquisados situa-se entre 25 e 61 anos, com idade média de 37,24 anos. Hà um predominio do sexo feminino (76,8%) em comparação com o masculino (23,2%).
O serviço mais representativo é a unidade de medicina interna com 30,3% (n = 121) do total, seguido pelas unidades cirurgicas com 24,8% (n = 99) e por ultimo as consultas com pacientes externos, com 0,5% (n = 2).
Em relação à variável carga de trabalho, 64,8% (n = 259) dos enfermeiros consideram que o pessoal de enfermagem no serviço onde trabalham não é adequado.
O conjunto de questóes relacionadas com a opinião profıssional sobre a realização de um Relatório de Enfermagem na alta hospitalar revela em primeiro lugar, que 71,8% (n = 287) dos enfermeiros inquiridos expressaram “estar de acordo” com a elaboração do relatório de Enfermagem na alta hospitalar e para 89,8% (n = 359) da amostra, o documento permite a continuidade dos cuidados aos pacientes. Além disso, em 92% dos casos sua realização influenciaria um melhor acompanhamento do paciente por enfermeiros, para futuras intervençóes de enfermagem. Quando o paciente recebe a alta de seu médico, 56,5% dos profissionais (n = 226), informam reportà-la por escrito. No entanto, 74,8% (n = 299) dos enfermeiros pesquisados afirmam não reportar por escrito quando um paciente é transferido para outro departamento no mesmo hospital.
Em relação ao fato de, uma vez escrito, se entregam ou não o documento em papel, 42,3% (n = 169) dos entrevistados afirmam que o entregam ao paciente ou à sua familia e 27,8% (n = 111) não entregam. Uma parcela de 30% (n = 120) da amostra não respondeu.
Sobre a demonstração de nivel acadêmico no documento, 60% (n = 240) dos profissionais pesquisados relatam que a realização do relatório de Enfermagem na alta hospitalar serve para realçar o nivel acadêmico atual da enfermagem. E 89% (n = 356) da amostra considera o documento como um indicador de segurança do paciente, com o qual evitar futuras complicações e efeitos adversos.
A comparação das distribuições feitas pelo teste do Qui-quadrado mostra diferenças significativas entre as seguintes variáveis: análise do relatório de Enfermagem na Alta hospitalar e a unidade de trabalho (X2 = 50,145; p = 0,012), e também com a relação (razão) enfermeiro/paciente (X2 = 17,142; p = 0,000).
O bloco de questões focadas nos aspectos que dificultam a implementação do Relatório de alta de enfermagem na Região de Múrcia mostra primeiramente, que 68,8% dos profıssionais entrevistados acreditam precisar de treinamento especifico sobre o relatório de Enfermagem na Alta hospitalar.
Para 81% (n = 324) da amostra, a carga de trabalho em unidades hospitalares difıcultaria a conclusão do Relatório de enfermagem na Alta hospitalar, e 86% dos entrevistados considerariam difícil completar o documento se tivessem tempo para realizar o restante de suas atividades de enfermagem em seus turnos de trabalho.
Segundo os enfermeiros entrevistados, a relação entre a enfermagem e outros profıssionais de saúde não seria um inconveniente para a realização do relatório. Para 69% (n = 276) dos entrevistados, a relação profıssional existente entre os enfermeiros e os médicos não difıcultaria a realização do relatório, e em 92% dos casos (n = 368) não seria impedida pela relação profıssional com os auxiliares de enfermagem. Para 82,8% (n = 331) dos entrevistados, a relação com outros profissionais de saude (assistentes sociais e fisioterapeutas) não seria um aspecto dificultador para a realização do relatório.
Também foram encontradas diferenças estatisticamente significativas usando o teste do Qui-quadrado entre as variàveis ‘treinamento em REA’ e a unidade de trabalho (x2 = 27,282; p = 0,027), e entre as variàveis dificuldade temporal para completar o REA e unidade de trabalho (X2 = 42,666; p = 0, 000). O cruzamento das variàveis faixa etària e a dificuldade de escrever o relatório de Enfermagem na Alta hospitalar mostra que 82,8% dos profissionais reconheceu que teria dificuldades para realizar tal relatório, especialmente aqueles com idades entre 21 e 34 anos (88,3%).
Os resultados do nosso estudo mostram a opinião e os vieses profissionais sobre a aplicabilidade deste documento no acompanhamento e feedback do cuidado. Estudos locais em diferentes áreas da saúde incluídas nos diversos sistemas de saúde espanhóis (Serviço de Saúde espanhol de Valência, Serviço de Saúde espanhol da Cantábria, etc.) também obtiveram resultados semelhantes. Mais de 90% dos entrevistados sempre acham necessário elaborar o documento, frente a uma pequena porcentagem que discorda dessa opinião, e que também geralmente coincide com profissionais veteranos em seus postos de trabalho.(15) Números semelhantes são encontrados ao considerar a sua utilidade e relevãncia e além disso, o fato de que 24% dos profissionais expressam estar em concordãncia é um resultado compativel com as diversas dificuldades mencionadas na literatura,(16,17) quando os rumos da Enfermagem decidem iniciar a obrigatoriedade desse documento.
Outro ponto a salientar é que, em unidades onde hà uma relação desproporcional enfermeiro/ paciente, os profissionais não redigem a RAE. Sendo ao contrário a UTI (Unidade de Terapia Intensiva), o serviço onde se está experimentando com os conteúdos, formatos e modelos de documentos.(18)
É importante ressaltar que a segurança do paciente exige cumprir certos indicadores de boas práticas, dentre as quais està ‘a adoção de normas padronizadas pelo pessoal de enfermagem,(19) o que náo está sendo cumprido, conforme revelado por nossos dados.
A partir de janeiro de 2010, a continuidade dos cuidados na Região de Múrcia atinge seu nível máximo com o lançamento do projeto ‘Gerenciamento Único’. O atendimento ao paciente é considerado um processo longitudinal, sem divisoes e com prestação de cuidados de saúde de forma integrada, caracterizando-se pelo desaparecimento das até entáo existentes barreiras entre atenção primária e atenção especializada.(20) O projeto piloto começou inicialmente na área de saúde de Yecla, posteriormente em Lorca e chegando logo ao restante das áreas de saúde da Região de Múrcia. No próprio ano de 2010 foi aprovado o Real Decreto 1093/2010, de 03 de setembro, em que foi estabelecido o mínimo de dados dos relatórios clínicos no Sistema Nacional de Saúde, com o relatório dos cuidados de enfermagem detalhadamente desenvolvido no anexo VII.(21)
Desde junho de 2012, o Sistema Único de Saúde espanhol assume que a qualidade dos cuidados envolve o uso adequado dos recursos e tecnologias de saúde, e para garantir a sustentabilidade, segurança, continuidade do cuidado, equidade e participação social, os gestores têm focado sua estratégia na abordagem da cronicidade.(22) Esta medida é justificada por mudanças nas necessidades de atenção de saúde e sociossanitárias ocasionadas pelo envelhecimento da população, pelo aumentando das condiçoes crônicas de saúde e pelas limitaçoes de atividade na sociedade de hoje.
A Região de Múrcia está em processo de implementaçáo do documento a nivel regional, para posteriormente expandi-lo a todo território nacional, com cada área de Saúde utilizando um modelo próprio do relatório. Para tanto, é essencial que a equipe de enfermagem inicialmente preencha esse relatório no momento da alta hospitalar para todos os pacientes atendidos, não se concentrando apenas em completá-lo no caso de pacientes com certas condições médicas crônicas. Cometer este erro pode implicar em consequências negativas para o desenvolvimento da gestáo clínica em enfermagem. Um dos primeiros enganos encontrados é a nomenclatura do documento, que continua sem padronizaçáo até este ponto. Após revisáo da literatura, encontramos várias denominações para o documento, que foi citado como Relatório de cuidados na alta hospitalar, Relatório de alta de enfermagem, Laudo de avaliação da alta de enfermagem, Relatório de recomendaçóes da alta de enfermagem ou Relatório de Continuidade de Cuidados (RCC). Optar pelo RCC ao invés do Relatório de Enfermagem na Alta hospitalar pode supor certa confusão na busca pelo desenvolvimento da profissão.
O próximo elemento a ser melhorado e padronizado é a sua estrutura, tema para pesquisas futuras.
A profissão de enfermagem na Região de Múrcia manifestou não estar preparada teoricamente nem metodologicamente para concluir o Relatório de Enfermagem na Alta hospitalar, reconhecendo ser necessário um treinamento especifico para utilizar o registro de cuidado no documento. Além disso, as variàveis identificadas que dificultam de forma direta a realização do relatório são o centro de saúde, a unidade hospitalar onde é desenvolvido o trabalho rotineiro e a formação universitária dos enfermeiros.