versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.3 Rio de Janeiro mar. 2020 Epub 06-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020253.15802018
A Prevenção Combinada (PC) consiste em um conjunto de tecnologias acessíveis aos indivíduos que apresentem vulnerabilidade à infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), podendo combiná-las entre si para garantir maior eficiência na ampliação da cobertura da saúde. Possibilita identificar precocemente indivíduos infectados e, por consequência, melhorar a qualidade de vida e de prevenção1.
Com vistas a trazer reflexões para a área da enfermagem e saúde, para além da produção de conhecimentos predominantemente marcados pelo modelo biomédico, consideramos relevante analisar as campanhas de prevenção à Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (AIDS) e ao HIV, pois podem suscitar discussões a respeito da evolução dos sentidos da prevenção conforme tendências epidemiológicas e diretrizes programáticas, bem como suscitar outras formas de educar-cuidar em enfermagem e saúde nesse contato.
A PC compreende três eixos de intervenções no âmbito do cuidado integral a saúde, a saber: os biomédicos, os comportamentais, os estruturais. O eixo de intervenções biomédicas visa reduzir as chances de infecção pelo HIV em pessoas expostas ao risco e classificam-se em dois grupos: intervenções biomédicas clássicas - como a distribuição de preservativo masculino e/ou feminino que empregam métodos físicos de bloqueio ao vírus e atualmente distribui e recomenda o uso associado de géis lubrificantes e oferta a testagem sorológica - e intervenções biomédicas baseadas no uso de Terapia Antirretroviral (TARV) e tratamento para todas as pessoas diagnosticadas; inclui a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), por exemplo1,2.
A PEP consiste em utilizar o tratamento antirretroviral com quimioprofilático, após qualquer situação em que exista o risco de contato com o HIV1,2. Os antirretrovirais foram adicionados aos programas de AIDS para uso pós-exposição de grupos específicos e no combate à transmissão vertical, envolvendo: profissionais de saúde que sofreram acidentes ocupacionais com materiais perfurocortantes contaminados com material biológico de pacientes soropositivos e pessoas vítimas de violência sexual. Além disso, após 2010, a PEP destinada às relações sexuais consentidas foi instituída no Brasil, pois se questionava sobre uma maior exposição de risco, como o não uso de preservativo nas relações sexuais de forma indiscriminada3.
Por outro lado, a PEP consiste na utilização dos medicamentos antirretrovirais por pessoas que não estão infectadas pelo HIV, porém estão suscetíveis ao risco de infecção, como casais sorodiscordantes e populações-chave2. Nesse caso, é necessário o uso de fármaco antirretroviral cotidianamente, impedindo a síntese viral. Ressalta-se que, no Brasil, a PrEP encontra-se em fase de implementação.
No que tange às intervenções dos eixos comportamentais, são estratégias voltadas para a informação e percepção de risco à exposição e infecção pelo HIV4. Esse tipo de intervenção, por exemplo, envolve a educação pelos pares, que visa uma mitigação das vulnerabilidades, por meio de sensibilizações e incentivos à mudança de comportamento do indivíduo e da comunidade a qual “o par” pertence. Promove-se incentivo ao uso de preservativos masculinos e/ou femininos; aconselhamento sobre o HIV/Aids e outras IST e promoção da realização de testes sorológicos para HIV; adesão ao tratamento antirretroviral; vinculação aos serviços de saúde; redução de danos para as pessoas que usam álcool e outras drogas; estratégias de comunicação, informação e educação entre indivíduos e entre comunidades; realização de campanhas de prevenção em HIV e outras IST1.
Já o eixo das estratégias de intervenções estruturais, compreende ações de enfrentamento dos fatores e condições sociais e culturais que podem determinar a vulnerabilidade de um sujeito e/ou de grupos sociais com risco para HIV, em detrimento de preconceito, estigma, discriminação ou qualquer outra forma de alienação dos direitos e garantias à dignidade humana. Dessa maneira, movimentos de luta contra a homofobia, sexismo, racismo e de garantia à educação como prevenção devem fazer parte fundamental desse eixo de intervenção1.
Nesse âmbito dos três eixos da PC, o Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), do Ministério da Saúde (MS), lançou, em 2016, uma campanha específica, denominada “Aids, escolha sua forma de prevenção”, sobre a abordagem da PC. Entretanto, não foi a primeira vez que essa abordagem esteve transversalizada em outras campanhas de prevenção da Aids5.
Foram eleitos para essa campanha, como público-alvo prioritário, homens e mulheres jovens, haja vista que são considerados como uma das populações-chave2 para a infecção pelo HIV. De acordo com o Boletim Epidemiológico, indivíduos na faixa etária entre 20 e 34 anos corresponderam a 52,3% dos casos de infecção pelo HIV, notificados entre os anos de 2007 a 20166.
As peças para realização da campanha eram constituídas de dois curtas-metragens: um, de 90 segundos, para as redes sociais; e o outro, de 30 segundos, para os canais televisivos abertos; spot de rádio; cartazes voltados para gestantes, casais homoafetivos, heterossexuais e mulheres trans5. Neste artigo, elegeu-se como objeto de análise o curta-metragem (curta), de 90 segundos, que tem o mesmo nome da campanha oficial, ou seja, “Aids, escolha sua forma de prevenção”. O outro filme, de 30 segundos, não foi disponibilizado para domínio público. O interesse por esse curta justifica-se pelo fato do MS tê-lo produzido para ser amplamente veiculado nas redes sociais. No curta, além de informações de raciocínio científico sobre a PC, são apresentados papéis de relações de gênero e sexualidade nas redes sociais, em especial entre homens e mulheres jovens.
As redes sociais têm feito parte do cotidiano de diversas faixas etárias. Nesse sentido, o MS pode ter visado, nessa campanha, associar o raciocínio científico de modos de prevenção da Aids às práticas da vida cotidiana dos jovens. Considera-se, portanto, que as tecnologias de informação e comunicação não são apenas ferramentas para obtenção de informações e ampliação da comunicação, mas também constituem mecanismos estruturantes de novas formas de pensar, fazendo convergir linguagens e mídias que potencializam os processos de comunicação7. As redes sociais não se restringem à difusão incremental entre os usuários, mas também ao tipo de relações sociais que se estruturam no seu interior e, sobretudo, na naturalização que se produz entre os membros de determinada rede social8.
Para análise desse delineamento, considerou-se relevante a abordagem das representações sociais9. Para Bourdieu9, as representações sociais são entusiasmadas pelas ideias, crenças, valores e ideologias existentes anteriormente em uma sociedade, e que se fazem presentes na linguagem para se comunicar no chamado senso comum que compõe o habitus de cada agente, que é o processo de socialização, caracterizado pela competência prática adquirida na e para a ação; e também as concepções que circulam entre os participantes dos campos sociais, grupos profissionais e classes sociais, como é o caso das campanhas de prevenção do HIV/AIDS.
As representações sociais “[...] são categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a”10 (p.89). Essas representações manifestam-se em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam; portanto, podem e devem ser analisadas com base na compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais. Sua mediação é privilegiada pela linguagem, tomada como forma de conhecimento e de interação social7. Assim, as masculinidades não estão marcadas e limitadas ao corpo físico e cultural, mas são formadas por um conjunto de mediações culturais, sociais, econômicas, étnicas, políticas e históricas.
A linguagem é assim, absolutamente importante no modo como as masculinidades são expressas e dão sentido e significado às suas relações. A sua dimensão comunicativa não é apenas de mediação entre locutor e receptor, mas possui mais que informação a ser repassada e entendida, pois, na medida em que o conteúdo dessa informação tem objetivos específicos de um agente (locutor) ao outro (receptor) é necessário tornar a mediação inteligível das representações sociais aí presentes7.
Adotou-se ainda, neste artigo, a categoria de masculinidades (no plural), entendida como os modos sociais e culturais convencionados em torno da identidade de gênero masculina construída na sociedade11. Estudo11 pontua que é importante considerar que as masculinidades são processos de construção, mutáveis em face dos contextos sociais em que as experiências de meninos e meninas vão ocorrendo; para falar de masculinidade e/ou feminilidade é preciso compreender que são conceitos relacionais de gênero.
Nessa acepção, o conceito de gênero aqui está baseado na formulação de Joan Scott, que o explica como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e o gênero como uma forma primeira de significar as relações de poder12. O gênero, como descritivo, implica nos atributos culturais valorados socialmente, já enquanto categoria de análise nos permite apreendê-lo no sistema de relações sociais face às estruturas de poder na sociedade. O que nos permite compreender as relações de gênero abordadas aqui como as interações de ordem social entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens, ao longo da vida. Nesse âmbito, se entende “[...] a masculinidade como uma configuração de práticas organizadas em relação à estrutura das relações de gênero”13(p.259).
Essa abordagem tem sido uma preocupação muito frequente no campo da literatura feminista e cresceu também a necessidade de uma compreensão em relação às masculinidades13,14. No campo da saúde pública e coletiva, tem sido impulsionada por meio de pesquisas sobre modos de cuidado de si realizado pelos homens15,16 e, na enfermagem, essa abordagem tem surgido de maneira muito tímida17,18 no que diz respeito a considerar o aspecto social e cultural no âmbito curativo e do cuidado, para além da perspectiva biomédica.
É nesse aspecto que se delineou este estudo, que tem como objetivo compreender as representações sociais de masculinidades reveladas no curta-metragem “Aids, escolha sua forma de prevenção”.
Foi realizada uma pesquisa do tipo exploratória, com abordagem qualitativa, no website denominado “Portal sobre aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais”, do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, do MS, cujo endereço virtual é: www.aids.gov.br. Apesar da existência de outro link de compartilhamento de vídeos por meio do YouTube, a escolha do Portal justifica-se por este ser, atualmente, o website com maior concentração de campanhas do MS sobre HIV/Aids no Brasil. Portanto, o pesquisador teve acesso à fonte de forma direta, à peça da campanha, que é o curta-metragem de 90 segundos, elaborado para ser veiculado nas redes sociais e disponível para acesso desde dezembro de 2016.
O intuito deste estudo foi estabelecer relações entre o conceito de masculinidades adotado como central, entrelaçando-o à abordagem das teorias sociais de gênero e sexualidade e às representações veiculadas nas campanhas de PC da Aids no Brasil. As teorias sociais de gênero aqui referidas o compreendem como construções sociais que podem incluir o sexo e a sexualidade, mas não como determinantes das relações de desejo entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens11-13.
O estudo foi desenvolvido em duas etapas. Na primeira, foi realizada a coleta de dados, que ocorreu em abril de 2017 no portal supracitado, seguindo os seguintes passos: acesso à aba Notícias e Mídias; acesso à aba “Campanhas”. É nessa aba que se tem acesso às “peças de campanhas”; selecionamos nesse momento o curta-metragem sobre PC.
Na segunda etapa, o curta foi submetido a análise de conteúdo, conforme a proposta de Thiago et al.19, para posterior construção de categorias temáticas, identificação dos principais temas referentes às representações sobre masculinidades, e associação às abordagens das teorias sociais de gênero e sexualidade.
Por meio da análise pretendeu-se identificar e promover uma discussão em torno das representações de masculinidades existentes na campanha de PC do MS, considerando que, muitas vezes, essas campanhas podem tornar-se referências técnicas para a atuação do profissional da saúde e, em especial, da enfermagem, principalmente na abordagem da PC durante as práticas educativas de prevenção em saúde. Emergiram cinco categorias temáticas: “Trouxe a camisinha, né? A sutileza da dominação masculina nas relações de gênero”; “Estigma e masculinidade homossexual: transei sem camisinha”; “Masculinidade hegemônica e responsabilização da mulher-grávida na infecção da Aids”; “Masculinidade subalterna e naturalização da AIDS?”; “Masculinidade heterossexual como a norma social correta”.
Diálogo na cena:
Personagem feminina heterossexual: Trouxe a camisinha, né?
Personagem masculino heterossexual: Claro!
Personagem feminina heterossexual: Ai, que garoto prevenido!
Personagem masculino heterossexual: Mas tem outras formas de prevenir da Aids.
Personagem feminina heterossexual: Como você sabe?
Personagem masculino heterossexual: Se liga aí!
A primeira cena (Figura 1) do curta dá ênfase a uma ação considerada masculina e à sensibilização do homem para a prevenção, mas por outro lado, reforça alguns papéis e estereótipos discutidos nas teorias sociais de gênero sob dois aspectos; primeiro, enquanto uma relação binária e, segundo, da masculinidade cúmplice. Esta é uma das características não fixas de masculinidades11 que identifica atitudes de acomodação em face do sistema das estruturas de poder das relações de gênero. Homens e mulheres podem desfrutar das vantagens que percebem para si nessa estrutura, sem questionar a relação assimétrica nela estabelecida. No primeiro aspecto, a relação de gênero representada reforça uma relação de dominação masculina em relação à mulher, uma vez que ela está posta como sujeito passivo na relação sexual em que o uso da camisinha aparece como uma decisão do homem. É ele que “é o garoto prevenido”, enquanto que dela não se espera que possa possuir uma camisinha feminina em casa, por exemplo.
As representações sociais hegemônicas de gênero têm no homem o poder de decisão sobre o uso ou não da camisinha. Nesse sentido, consequentemente, a masculinidade cúmplice é reforçada nessa relação assimétrica entre homens e mulheres que oculta uma relação de poder. Uma vez que eles levam a camisinha sem esperar que elas possam ter uma em casa, ele é o garoto prevenido, que respeita a menina, mas também que não questiona, em nenhum momento, essa estrutura que mantém a relação de dominação na qual ambos permanecem.
A representação social de masculinidade hegemônica desvelada no curta pode ser considerada como resultado dos preconceitos construídos no pensamento social mediante a produção de esquemas de percepção, avaliação e apreciação, oriundos de uma sociedade historicamente patriarcal. Conforme um autor20: “[...] as representações dos agentes variam segundo sua posição (e os interesses associados a ela) e segundo o seu habitus como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de uma posição no mundo social”20(p.158). Ou seja, a masculinidade está associada a formas de poder e privilégios oriundos do patriarcalismo, e as diferenças são construídas ali, entre as posições de contraste entre homens e mulheres e entre homens e homens; é sustentada politicamente, conforme pode ser evidenciado nessa cena21.
As Representações Sociais “[...] não são o somatório das representações individuais, da mesma maneira que a representação individual não se reduz à atividade cerebral que a fundamenta”22(p.504). Tal aspecto é político e funciona como um processo estruturante para a relação de subordinação das mulheres e de alguns grupos de homens em relação à masculinidade hegemônica; as representações sociais são elaboradas frente a uma realidade que se impõe ao indivíduo. As representações incidem diretamente sobre o habitus do agente, definido como um “[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações”9(p.60), ou seja, trata-se de um processo de “[...] interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade”9(p.61).
Nesse sentido, as quatro formas de masculinidade identificadas por Connell e Messerschmidt13 são: a hegemônica, a subordinada, a cúmplice e a marginalizada. As formas distintas de masculinidade têm como referência o modelo hegemônico; daí a relação de poder que esta possui como mecanismo de manutenção da sua disposição como “normalizadora” do que é ser homem. As formas de masculinidade hegemônica nem sempre recorrem à violência para usufruir dos dividendos. Elas fazem valer os seus propósitos, através do medo e da ameaça constante que está subjacente ao seu poder21. Essa compreensão leva-nos a observar que as representações sociais hegemônicas da masculinidade encontram-se além dos estereótipos mais explícitos e são reforçadas por diferentes mecanismos sutis de poder, como é o caso da decisão da prevenção na relação sexual nessa campanha.
Estudos23 sobre masculinidades e vulnerabilidade ao HIV de homens heterossexuais revelam que a decisão de onde, quando e com quem usar o preservativo ainda tende a ser exclusivamente do homem, principalmente no contexto dos relacionamentos estáveis, em que ocorre o não uso do preservativo, pois se atribui o valor de “mulher de casa” - as esposas e namoradas - com base na ideia do privado, do conforto e da segurança. Já em detrimento da decisão do uso do preservativo que ocorre nas relações casuais com prostitutas, desconhecidas e outros, atribui-se o valor de “mulher do mundo”, que está vinculado com a ideia do espaço público que oferece a impessoalidade, a insegurança e o não familiar24,25.
Diálogo na cena:
Personagem masculino - primo: Ontem à noite saí com um carinha. E pá! Transei sem camisinha. Fiquei boladão. Mas aí fui ao médico e ele me passou a PEP. E já tô tomando a parada.
Personagem “o carinha”: Caraca, mano. Verdade. Eu vou no posto de saúde fazer o teste de Aids, tá ligado?
As cenas (Figuras 2 e 3) tentam ser explicativas, no que se refere às tecnologias de prevenção combinada que devem ser utilizadas. Destacam a PEP e a testagem sorológica disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
A representação social (re)produzida nas cenas anuncia as múltiplas formas de expressões da sexualidade ainda sob o aspecto do estigma, e pode reforçar, por exemplo, a prática homossexual como “arriscada” e, desse modo, legitimar a relação de homens que vivenciam a sexualidade em relações homossexuais, como estigmatizada e “perigosa”. Isto, por sua vez, exprime uma masculinidade subalterna.
Múltiplos modos de relações de gênero e sexualidade são difundidos em filmes/curtas que apresentam masculinidades consideradas legítimas, subordinadas, hegemônicas, subalternas, desviantes, entre outros termos. Tais posições são representadas por imagens dentro da lógica da dominação, subordinação ou desvio, de forma mais indireta, pelo cinema enquanto um produto cultural26.
Nesse contexto, “[...] os campos são espaços de produção de bens simbólicos permeados por relações de poder expressas em conflito, lutas, consensos entre os diversos agentes que, dispostos hierarquicamente, disputam o domínio destes bens como forma de autoridade, legitimidade e prestígio”27(p.99) - pode ser considerado como construtos teóricos ou representações da realidade, em que forças simbólicas e relações de poder manifestam-se em condições objetivas, como é o caso da heteronormatividade (saudável) presente no curta.
A ideologia popular representa o gênero como “natural”, como aquilo que não muda. Na verdade, tornar-se heterossexual envolve um aprendizado complexo - como lidar com potenciais parceiras, o que pensar sobre si, e também o aprendizado de técnicas sexuais. Tornar-se heterossexual demanda que outras possibilidades sexuais sejam marginalizadas, principalmente o erotismo homossexual28.
Lançando mão da perspectiva de um estudo29 o poder simbólico pode ser compreendido como uma força invisível existente em todo o campo (da promoção e prevenção à saúde), sem que seus agentes identifiquem que estão a ele submetidos. Todavia, são coniventes com ele. No caso dessa cena, assim como em todo decorrer do curta, evidencia-se uma atuação no aspecto da preocupação com a infecção mais acentuada entre as pessoas que manifestam a sua vivência da sexualidade para além da heteronormatividade, o que se coaduna com a representação de masculinidade subalterna. É, portanto, um investimento traduzido como prevenção, mas que impõem as representações sociais dominantes de um único modelo de masculinidade hegemônica por meio da heternormatividade.
A outra forma ainda de masculinidade que pode ser verificada é a marginalizada. A marginalização está sempre relacionada com a “autorização social” da masculinidade hegemônica do grupo dominante. As relações de marginalização ou autorização podem também existir entre formas de masculinidades subordinadas30.
Nesse contexto, as relações homossexuais, por exemplo, estão fortemente estigmatizadas como um grupo de risco, por mais que a concepção médica tenha descaracterizado esse termo de grupo para a expressão “comportamento de risco”; ainda assim, há uma representação social que relaciona os gays e a Aids de maneira muito automática.
Portanto, essa passagem do curta, ao trabalhar a ideia de comportamento de risco nos dois personagens, jovens, masculinos, que tiveram uma relação sexual entre si, reforça a representação social que resulta no estigma para aqueles que subvertem a lógica heteronormativa, em que se encontram propensos à Aids, como veremos nas próximas cenas em que destaca a homossexualidade.
Diálogo em cena:
Personagem “O cara que tem” : Bom, com o tratamento a contagem do vírus fica tão baixa que reduz muito a chance de passar HIV pra você. Mas ô, camisinha sempre pra prevenir contra outras DSTs, tá ligado?
A cena (Figura 4) evolui para a intencionalidade de informar que as pessoas portadoras do vírus HIV, que aderem ao tratamento e realizam o controle da contagem de carga viral tornam o vírus indetectável ao exame, o que diminui as chances de transmissão. A cena destaca a importância do uso do preservativo associando-o à PC. Todavia, ao que este estudo se propõe, partindo do ponto de vista das representações de masculinidades, emerge a questão da escolha de um casal homossexual sorodiscordante.
O boletim epidemiológico6 apresenta “[...] os casos de infecção pelo HIV registrados no Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan), de 2007 a 2015, em indivíduos maiores de 13 anos de idade, segundo a categoria de exposição. Entre os homens, em 2015, verifica-se que 50,4% dos casos tiveram exposição homossexual, 36,8% heterossexual e 9,0% bissexual; entre as mulheres, nessa mesma faixa etária, observa-se que 96,4% dos casos inserem-se na categoria de exposição heterossexual”6(p.2).
Diante desses dados, a vinculação da relação homossexual com o risco da Aids, de modo mais evidente, conflui para uma representação de masculinidade (aidética) marginalizada. Em 2015, foram notificados 31.811 casos, sendo 9.639 casos entre mulheres e 22.172 casos entre os homens. Deste quantitativo geral, afirmaram serem heterossexuais, entre homens e mulheres, 17.275 (54%) indivíduos, enquanto os que afirmaram serem homossexuais são 11.174 (35%) indivíduos. Seguindo esta análise, observa-se que 1.995 (6,27%) declaram-se bissexuais, e outros 346 (1,08%) indivíduos, o boletim não informa sobre as suas práticas sexuais. Vale ressaltar que esse documento afirma não ter dados suficientes em outros anos para este tipo de análise. Quando se faz a leitura da execução de exposição heterossexual entre homens e mulheres, de maneira global podemos observar que este sobrepõe o quantitativo do grupo de exposição homossexual.
Nesse sentido, o estigma é o que marca, baseado em certos atributos que impõem um controle de posição social que diferenciam os indivíduos e delimitam uma posição marginal na sociedade. E, não distante, as políticas de saúde acabam sendo permeadas por esses estigmas. As representações sociais que identificavam os homossexuais como vilões e/ou como vítimas da Aids, durante a década de 1980, ainda se sustentam e produzem os estigmas e preconceitos decorrentes da associação Aids e sua ligação com a homossexualidade e pela possibilidade de vir a infectar-se com o HIV, caso não sejam adotadas práticas sexuais consideradas seguras31.
Ao escolher pela segunda vez consecutiva um casal do mesmo sexo que realiza prática sexual para falar sobre a PC para HIV/Aids, acaba-se reforçando novamente a associação histórica entre homossexuais e Aids, cumprindo um papel inverso ao que realmente se pretende.
No âmbito da representação da masculinidade (aidética) marginalizada, presente na cena do curta, nota-se a visão socio-histórica da homossexualidade vinculada à Aids. O que se produz enquanto condição estigmatizante ou não, é a representação que possui no contexto das relações e dos diferentes grupos nos quais o indivíduo estigmatizado circula e mantém relações32. Ressalta-se que é a representação da homossexualidade-Aids que circula nas redes sociais por meio dessa campanha, mesmo os dados epidemiológicos indicando a prevalência da Aids entre mulheres heterossexuais.
Nesse âmbito, as representações que os agentes sociais possuem das divisões da realidade, fomentam a realidade das divisões9. Por sua vez, classificar uma pessoa ou grupo social por meio de um conceito científico ou estereótipo consagrado pela cultura popular como raça, etnia, nacionalidade, “família” ou “sexo”, “negro”, “pobre”, “índio” elucida a capacidade de impor significações.
O estigma, na realidade, torna-se um tipo especial de relação entre atributo, apontando o que é essência e peculiar a alguém; e é um estereótipo que sustenta uma lógica classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultando em expectativas, hábitos de julgamento ou generalizações32. Nesse sentido, um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outros. Portanto, o estigma da naturalização da Aids entre pessoas homossexuais torna-se evidente nessa cena de campanha da PC e pode eliciar uma produção normativa de gênero e sexualidade, numa perspectiva heteronormativa.
Diálogo na cena:
Personagem feminima grávida: Se liga! Quando engravidei, já comecei logo com o pré-natal e fiz o teste de HIV. Porque se tivesse, já começava a tratar pro moleque não pegar, sacou?
O intuito da cena (Figura 5) é abordar a importância da realização do teste sorológico no pré-natal, como vistas a iniciar o TARV e evitar a contaminação vertical. Por outro prisma, a cena em que o foco é uma mulher grávida e sozinha, suscita a responsabilização da mulher-mãe pela infecção transversal da Aids.
A representação social exposta está baseada na relação de gênero na perspectiva da masculinidade hegemônica porque a paternidade é construída pelo desígnio do provedor das necessidades econômicas, bem como, as desigualdades de gênero masculino e feminino e entre as masculinidades. Tornar-se homem é também tornar-se pai. Na divisão social de gênero, o homem deve se responsabilizar pelas finanças em detrimento do cuidado que está para as mulheres33. Nessa acepção, os estigmas e estereótipos utilizados no cotidiano como princípios de classificação e de juízo de valor empregados na prática com o outro, possuem como conteúdo um conjunto de representações sociais já aceitas como verdadeiras ou válidas, sem questionamento. São modos de classificação simbólica do outro9.
A personagem feminina afirma a importância do teste de HIV, tendo como justificativa a gravidez, contexto em que se reafirma um comportamento de gênero, pelo qual as mulheres vivenciam a sua sexualidade na submissão no ato sexual. Por que não fazer o teste independente da condição de gravidez? Por que não está também o homem-pai presente para fazer o teste de HIV?
Nos últimos anos, valorizam-se os direitos do pai a acompanhar o desenvolvimento dos filhos e demonstrar afeição, ao passo que este distancia-se do modelo de masculinidade hegemônico do homem branco, forte e viril34. Assim, o homem-pai encontra dificuldades nesses processos devido às contradições de um desejo de abertura de expressão da afetividade, por exemplo, e teme ver diminuído seu prestígio como homem, visto que a maior expressão de afeto e cuidado é atribuída às mulheres diante do papel social de gênero.
Esse modo como inicia o curta, também é como segue a sua finalização, sustentada por meio da dominação/superioridade masculina. A lógica da superioridade masculina sobre as mulheres produz regras aos homens, pois legitima a sexualidade masculina como a heterossexual e homofóbica, ou seja, o homem dito “normal” deve ser viril, ativo e dominante. As masculinidades, com perfil distinto da masculinidade hegemônica, são relegadas aos grupos dominados, assim como as mulheres, crianças e todos os que diferem do “normal”, pois esses não teriam o status de “homens de verdade”35. A seguir apresenta-se a cena que finaliza o curta com a representação de dominação masculina.
O personagem masculino heterossexual ao explicar a PC.
A personagem feminina heterossexual responde: da hora isso.
O personagem masculino heterossexual responde: Ah, prevenção tem várias! Mas agora é só eu, você e a mais simples delas: a camisinha. (Figura 6).
O curta tem por objetivo informar as diferentes tecnologias de prevenção da Aids, podendo ser combinada de acordo com as escolhas de cada jovem. O enredo se desenvolve com personagens representativos entre a população, procurando estar mais próximo possível da realidade experimentada pelos jovens, aparentemente sem julgamentos. No entanto, o desfecho reforça tal intencionalidade ao finalizar com o casal de jovens heterossexuais que vivenciam sua sexualidade.
As representações sociais de masculinidades estão direcionadas pela perspectiva hegemônica do heteronormativo. Lançando mão das reflexões sobre violência simbólica36, é muito significativo o modo como operam as representações sociais fortemente referenciadas pelos estereótipos e pela visão essencialista das expressões da masculinidade presentes no senso comum e, no caso do curta, na formulação de políticas de saúde.
O simbólico não é meramente o oposto do real, pois essa compreensão simplória não capta o sentido em que a violência é sim, real e presente onde não se faz ver, se oculta. Além disso, busca demonstrar que se trata de estruturas de dominação que historicamente vêm sendo reproduzidas entre as relações específicas de agentes e as instituições sociais37. “Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até de autodesprezo sistemáticos [...]”37(p.46).
Desse modo, a dominação da masculinidade hegemônica sobre as outras formas de masculinidade (subordinadas e marginalizadas) podem ser implícitas ou declaradas no contexto de prevenção de HIV/Aids no Brasil. Nas sociedades ocidentais, a masculinidade hegemônica está fortemente conotada com a heterossexualidade e a homossexualidade, caracterizada pelas práticas de subordinação dos homens homossexuais, em que, para além do estigma social incluem-se várias formas de violência e exclusões sociais13,21.
Tendo em vista que a saúde coletiva tem por objeto o cuidado integral do ser humano, em um contexto interdisciplinar, refletir sobre uma perspectiva que relaciona as questões de gênero, sexualidade e Aids podem influenciar no agir-cuidativo-educativo dos profissionais da saúde pública e coletiva, que têm se destacado no âmbito de práticas de prevenção ao HIV/Aids.
Por sua vez, faz-se necessário estranhar as políticas públicas de saúde que naturalizam práticas de comportamentos e estruturas sociais, como as de gênero e sexualidade; e muitas vezes essas políticas chegam como um “pacote” a ser reproduzido nas unidades para a atenção e cuidado em saúde.
Assim, essas formas de representações sociais podem produzir efeitos sociais na prática do profissional de saúde, revelando a conexão entre representações e realidade, podendo contribuir para produzir o que aparentemente elas descreveram ou designaram no curta, a heterossexualidade como a norma e o sexismo. Concluiu-se que as representações sociais de masculinidades no curta-metragem reproduziram valores hegemônicos do papel social masculino.
Portanto, analisar criticamente a comunicação em saúde, frente à manutenção das relações de poder entre gênero e sexualidade, pode orientar discussões sobre as representações de masculinidades difundidas nas tecnologias educativas de prevenção em saúde, e portanto, propiciar que os profissionais de saúde passem a ter novas possibilidades de intervir na realidade da prevenção em saúde para além dos modelos hegemônicos de masculinidades.
Estudos desta natureza podem problematizar sobre o modo como as masculinidades são representadas na campanha de prevenção da Aids, bem como nortear novas implicações desse contexto. Assim, consideramos que uma das conclusões aqui é afirmar a necessidade de aprofundar a compreensão das masculinidades como um condicionante social importante nos estudos em saúde.