versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 supl.1 Botucatu 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0183
The study analyses the perception of the players involved in the Integrated Residency with an emphasis on Family and Community Health (RISSFC-ESP) for strengthening the Family Health Strategy (FHS). The method applied was the analytical case study, whereas 42 interviews with managers, workers, tutors, and residents from seven cities of Ceará state, Brazil, from July 2015 to August 2016, were carried out. In the perception of the respondents, the RISSFC-ESP, through the education in work dynamics, implemented multidisciplinary teams of residents in FHS and in Family Health Support Centers (NASF), promoted the health situational diagnosis of the communities; and the planning and operationalization for promoting activities and health care; thus contributing to improve health care access, integration, and coordination for users in the covered regions. Infrastructure deficits were overcome with the redefinition of the practices and the coordination of social networks in the communities.
Key words: Lato sensu postgraduate program; Family and health strategy; Interdisciplinary relations
El estudio analiza la percepción de los actores envueltos sobre la contribución de la Residencia Integrada con énfasis en Salud de la Familia y Comunidad (RISSFC-ESP) para el fortalecimiento de la Estrategia Salud de la Familia (ESF). La metodología utilizada fue un estudio de caso analítico, realizándose 42 entrevistas con gestores, trabajadores, preceptores y residentes de siete municipios de Ceará, Brasil, de julio/2015 a agosto/2016. En la percepción de los entrevistados, la RISSFC-ESP, por medio de la dinámica de la educación por el trabajo, implementó equipos multi-profesionales de residentes en la ESF y en el NASF, promovió el diagnóstico situacional de salud de las comunidades; y la planificación y puesta en operación de acciones de promoción y de atención a la salud, habiendo contribuido en la mejora del acceso, de la integralidad y de la coordinación del cuidado de los usuarios en los territorios incluidos. Fue posible superar deficiencias infraestructurales con resignificación de prácticas y articulación de las redes sociales en las comunidades.
Palabras-clave: Programa de postgrado lato sensu; Estrategia salud de la familia; Relaciones inter-profesionales
Os processos de formação com caráter de Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS)1 têm se expandido, fortalecendo a estratégia de Educação Permanente em Saúde no Brasil. Entre 2010 e 2015, as bolsas ofertadas pelo Ministério da Saúde para Residências Multiprofissionais ou em Área Profissional passaram de 599 para 5.5022.
Em 2013, foi implantada a Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública (RIS-ESP) do Ceará, constituindo modalidade de pós-graduação lato sensu3. Com a implantação do programa, houve considerável aumento nas vagas de RMS no Estado, com uma oferta total de 222 vagas, sendo 119 na ênfase de Saúde da Família e Comunidade. Atualmente, este programa está encerrando sua 3ª turma, em trinta municípios e em sete hospitais de referência do Estado3.
As diretrizes nacionais relativas à RMS preconizam que o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação (MEC) financiem bolsas para residentes durante dois anos e, em contrapartida, as instituições formadoras e executoras viabilizem a formação em serviço3. Assim sendo, as bolsas dos residentes da RIS-ESP são financiadas pelo MS; a instituição formadora é a ESP, autarquia ligada à Secretaria de Saúde do Estado e Instituição de Ensino Superior credenciada pelo Conselho Estadual de Educação4, sendo responsável pelo direcionamento pedagógico da residência e pelo corpo docente; e acompanhando o processo formativo de residentes e preceptores. As instituições executoras são municípios e hospitais em que a RIS-ESP se desenvolve, responsáveis por viabilizar os contextos de prática para a atuação dos residentes, selecionando preceptores do seu quadro de profissionais3.
O diferencial da RIS-ESP é a interiorização da residência, uma vez que, no caso das ênfases comunitárias, a maioria dos contextos de prática é no interior. Como objetivos do programa, estão definidas a descentralização da formação em saúde para diversos contextos do Estado e a melhoria da qualidade dos serviços em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), contribuindo para o atendimento das necessidades de saúde da população.
Fazem parte do corpo docente da residência: coordenação geral, coordenação das ênfases, tutores de campo e núcleo, orientadores de serviço (articuladores) e preceptores de campo e núcleo5,6.
O regime didático da residência visa ao desenvolvimento do saber (conhecimentos), do fazer (habilidades) e do ser (atitudes) dos profissionais residentes. Para tanto, o currículo compreende as seguintes vivências de aprendizagem: prática (pelo trabalho), teórico-prática e teórico-conceitual6.
Dentro da proposta da RIS-ESP, a ênfase de Saúde da Família e Comunidade (RISSFC-ESP) possui o objetivo de formar profissionais com papel técnico-científico-político para qualificar a função de coordenação do cuidado da Estratégia Saúde da Família (ESF) junto com as redes de apoio, com vistas à promoção, proteção e recuperação da saúde, por meio da colaboração interprofissional6.
Os contextos de atuação da RISSFC-ESP são os serviços da rede de saúde de cada município, tendo como base os Centros de Saúde da Família (CSF) e todas as atividades correlatas, envolvendo equipamentos públicos e comunitários6.
As equipes de residentes são compostas por profissionais de referência (enfermeiro e dentista) que atuam na perspectiva das equipes de referência de ESF; e profissionais de apoio (assistente social, fisioterapeuta, nutricionista e psicólogo), que atuam no Nasf6.
A ESF, cenário de educação pelo trabalho dos residentes e preceptores, é um modelo de organização da atenção primária à saúde (APS). Na maioria dos países, a APS passou a configurar um conjunto de práticas integrais centradas nas pessoas de forma individual e coletiva que levam em consideração os contextos de vida das pessoas, visando ao acesso mais democrático aos serviços de saúde e à promoção de formas mais saudáveis de viver7-9.
Partindo das perspectivas de autores7,9-11 que adotaram Starfield8 como referência, este estudo trabalha com os atributos essenciais da ESF: serviço de primeiro contato; longitudinalidade; integralidade do sujeito e das ações; e coordenação.
Os serviços de primeiro contato são a porta de entrada do sistema de saúde, procurado cada vez que o paciente precisa de atenção ou para acompanhamento rotineiro de saúde o mais próximo possível do seu local de moradia, garantindo o acesso da população. A longitudinalidade, princípio relacionado ao anterior, trata do cuidado que a equipe desenvolve com as famílias ao longo dos anos, acompanhando os ciclos de vida dos usuários, garantindo vínculo. A integralidade busca viabilizar os serviços adequados às necessidades de saúde da população, reconhecendo o sujeito como um ser inteiro. A coordenação implica na articulação das diversas ações e serviços essenciais na medida das necessidades de cada usuário e sua família, de forma a resolver situações mais complexas7,8,10.
Outra característica importante na RISSFC-ESP e da própria ESF, a multiprofissionalidade, tem repercussões positivas na APS, sobretudo quando a colaboração interprofissional (CI) é efetiva12,13. A CI ocorre quando dois ou mais profissionais de diferentes categorias trabalham em equipe, tendo os usuários e a comunidade como centro de suas atenções. Vários autores14,15 têm destacado a importância da CI nos serviços de saúde em geral12,13 e na ESF14,15.
Percebendo a complexidade e o elevado grau de dificuldade para alcance das metas traçadas pela equipe da RIS-ESP e considerando a variabilidade qualitativa na organização da rede de atenção básica à saúde nos diversos municípios onde o programa desenvolveu suas atividades, foi estabelecido como objetivo principal do estudo analisar a percepção dos atores envolvidos sobre a contribuição da RISSFC-ESP para o fortalecimento da ESF nas equipes de saúde nas quais se desenvolvia.
Elegeu-se como modalidade de abordagem compreensiva o estudo de caso16, que, em se tratando da RISSFC-ESP, classifica-se como caso único revelador, dado constituir-se em um programa de RMS que, apesar de encontrar similares em vários estados do país, possui um desenho específico e ousado de descentralização para vários municípios do interior e de gestão efetuada em parceria por órgãos vinculados às três esferas de governo responsáveis pela implementação do SUS.
Foram selecionados inicialmente como contexto do estudo os nove primeiros municípios a implantar turmas da RISSFC-ESP. Posteriormente, um município foi excluído por ter havido transferência das equipes de residentes para outros municípios, em virtude de problemas na gestão municipal. Outro município não foi incluído pelo limite de tempo e recursos para execução da pesquisa. No fim, portanto, foram investigados sete municípios, aqui denominados de Município 1 a 7. Todos os municípios foram contatados por meio de ofício solicitando a anuência do gestor municipal para realização do estudo.
Entre as semelhanças destes municípios, estão: localizar-se no semiárido nordestino; e terem a maioria da população em extratos de baixa renda e uma rede com equipes de saúde da família. Entre as características específicas, estão o contexto social e histórico singular de cada um, diferentes portes populacionais e localização geográfica, a organização das políticas públicas adotadas por cada governo municipal e, em especial, a estrutura e o processo de gerência das unidades de saúde onde os residentes em Saúde da Família atuam. A Tabela 1 apresenta informações gerais sobre os municípios contextos do estudo.
Tabela 1 Informações gerais dos cenários do estudo.
Município | População (habitantes) | Equipes ESF | Cobertura | Famílias atendidas | Preceptores | Residentes |
---|---|---|---|---|---|---|
Município 1 | 72.248 | 15 | 76,93% | 18.591 | 10 | 25 |
Município 2 | 47.645 | 19 | 97,86% | 13.533 | 7 | 16 |
Município 3 | 62.002 | 20 | 96,42% | 23.112 | 11 | 27 |
Município 4 | 100.733 | 28 | 93,10% | 31.690 | 10 | 19 |
Município 5 | 210.749 | 53 | 83,91% | 48.963 | 7 | 11 |
Município 6 | 84.648 | 20 | 82,15% | 24.468 | 5 | 23 |
Município 7 | 57.498 | 22 | 98,36% | 18.147 | 5 | 16 |
Total | 635.523 | 177 | - | 178.504 | 55 | 137 |
Fonte: Portfólio RIS-ESP5 e DATASUS17.
Os instrumentos de coleta de informações utilizados foram a entrevista semiestruturada presencial e a análise documental, sendo que neste artigo foram analisados os resultados das entrevistas.
A seleção dos participantes do estudo teve como critério a representação de todos os grupos de atores envolvidos na RISSF-ESP, gestores, trabalhadores da ESF, preceptores e residentes (Tabela 2). Foram realizadas 42 entrevistas nos sete municípios investigados, no período de julho de 2015 a agosto de 2016. A coleta de dados cessou quando houve saturação do corpus de dados. Utilizaram-se abreviaturas seguidas do número correspondente ao município para representar cada pessoa entrevistada, de forma a guardar sigilo.
Tabela 2 Número e tipo de participante por município estudado
Município | Gestores dos municípios | Trabalhadores da ESF | Preceptor (PREC) | Residente (RES) | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
Secretário de Saúde (SS) | Coordenador de Atenção Primária (CAP) | Articulador (ART) | Gerente de unidade (G) | Trabalhador ESF (T) | ||||
Município 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | - | 1 | 1 | 6 |
Município 2 | 1 | - | 1 | 1 | 1 | 1 | 3 | 8 |
Município 3 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | - | - | 5 |
Município 4 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 7 |
Município 5 | 1 | 1 | 1 | 1 | - | 1 | - | 5 |
Município 6 | 1 | 1 | - | 1 | 1 | 1 | 1 | 6 |
Município 7 | 1 | 1 | - | 1 | - | 1 | 1 | 5 |
Total | 7 | 6 | 5 | 7 | 4 | 6 | 7 | 42 |
Fonte: Autoria própria.
Os participantes do estudo foram identificados por meio de registros administrativos da ESP, sendo que o contato e o agendamento das entrevistas foi feito por telefone. Nos municípios onde havia mais de uma equipe de saúde da família com residência, foi selecionada a que recebia residentes há mais tempo. As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho, tendo duração média de 40 minutos.
As entrevistas com preceptores e residentes exploraram o fortalecimento dos atributos essenciais da APS e o processo de educação permanente desencadeado pela RISSFC-ESP. As entrevistas com os gestores e trabalhadores da ESF exploraram os resultados positivos, bem como os desafios da implantação das Residências em Saúde da Família nos serviços (Quadro 1).
Quadro 1 Questões que direcionaram as entrevistas
Participantes | Questões |
---|---|
Gestores | 1. Quais foram suas motivações em implantar a residência em seu município? 2. Como se deu o processo de implantação da residência? 3. Que avanços e desafios você identifica com a implantação da Residência em Saúde da Família e Comunidade e Saúde Mental Coletiva da RIS-ESP/CE nos serviços de saúde do seu município? 4. Como você avalia o processo de desenvolvimento de uma residência com profissionais de várias categorias na perspectiva do trabalho em equipe interprofissional? |
Trabalhadores | 1. Que mudanças a residência trouxe na sua rotina de trabalho? 2. Que atividades você compartilha com os preceptores e residentes? 3. Que avanços e desafios a residência trouxe para o seu serviço? 4. Como você contribui para o desenvolvimento da residência? 5. Que novos projetos e atividades foram implementados a partir do desenvolvimento da residência? |
Preceptores e residentes | 1. Comente sobre os conhecimentos e as práticas desenvolvidos pela RISSFC-ESP em termos da responsabilidade sanitária da equipe com relação à população de sua área de abrangência. 2. Comente sobre o vínculo desenvolvido pelos residentes com as famílias e a comunidade. Que processos de aprendizagem e ferramentas auxiliaram no desenvolvimento deste vínculo? 3. Comente sobre os conhecimentos e as práticas desenvolvidas pela RISSFC-ESP para garantia do acesso da população à atenção primária à saúde. Que projetos, ações ou ferramentas auxiliaram na promoção do acesso? 4. Comente sobre os conhecimentos e as práticas desenvolvidas pela RISSFC-ESP para garantia da continuidade e da integralidade do cuidado às pessoas e às famílias da área de abrangência. Que projetos, ações ou ferramentas auxiliaram nessa garantia? 5. Comente sobre os conhecimentos e as práticas desenvolvidas pela RISSFC-ESP para o desenvolvimento da competência de trabalho em equipe interprofissional? Que projetos, ações ou ferramentas estimularam ou facilitaram o trabalho em equipe? 6. Que novos projetos e ações foram desenvolvidos a partir da experiência da residência? 7. Que avanços e desafios você identifica no desenvolvimento da residência? |
Somente preceptores | 1. O que é ser preceptor da RISSFC-ESP? Comente sobre sua experiência. |
Somente residentes | 1. O que é ser residente da RISSFC-ESP? Comente sobre sua experiência. 2. Como você avalia a participação dos preceptores de campo no seu processo de educação pelo trabalho na Estratégia Saúde da Família? |
Fonte: Autoria própria.
Para compreensão dos sentidos e significados do corpus de dados coletado, foi utilizada a análise temática18. Trabalhou-se a noção de temas principais apreendidos por meio dos dados coletados, buscando formular sentidos a partir dessa categorização18.
Para a categorização das entrevistas, foi realizada, inicialmente, uma leitura geral dos textos, em que se identificou um conjunto de núcleos de sentidos. Posteriormente, os núcleos de sentido foram agrupados por semelhança em tópicos. Em seguida, após leitura exaustiva de todas as transcrições, o conjunto de códigos produzidos foi revisado e reordenado, com elaboração de matrizes de categorização em planilhas de Excel. Após a classificação final, realizou-se a discussão dos resultados, dialogando com a literatura que aborda o objeto de estudo.
O estudo é um recorte da pesquisa intitulada “Residência Integrada em Saúde com Ênfase em Saúde da Família e Comunidade e Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública do Ceará: estudo de casos múltiplos”. O projeto guarda-chuva foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa e recebeu aprovação por meio do parecer de no 1.121.574, de 28 de maio de 2015.
Ao todo, emergiram quatro categorias de análise, entre as quais três apareceram na percepção de todos os grupos de entrevistados, a saber: “Fortalecimento dos princípios da ESF e práticas inovadoras”, “A espiral da educação permanente movimentando a ESF” e “Desafios para a interiorização da residência”. A quarta categoria – “Ser preceptor: a delícia e a dor” – foi observada nas falas de gestores, preceptores e residentes.
A inserção da residência nos cenários de prática, por meio da territorialização, das visitas domiciliares e das ações comunitárias, foi fundamental na construção e fortalecimento de vínculos da comunidade com os serviços, bem como na aceitação dos residentes por parte dos trabalhadores e usuários. A fala de um secretário municipal de saúde ilustra esses resultados:
Quanto aos avanços, a gente percebe o vínculo do residente com a equipe, com a comunidade, porque eles adentram a comunidade, eles fazem a territorialização, identificam a problemática, o diagnóstico daquela comunidade. Então é muito importante, porque geralmente o profissional da unidade de saúde ele não tem esse tempo disponível pra fazer esse diagnóstico. (SS4)
O vínculo tratado aqui diz respeito ao encontro que produz afetos e prediz compromisso ético, no qual as partes envolvidas possuem (co)responsabilidade sobre os desdobramentos desse encontro ao longo do tempo, favorecendo um dos atributos essenciais da ESF: a longitudinalidade7-11. A relação de confiança estabelecida entre profissionais e usuários facilita o desenvolvimento do cuidado de forma longitudinal, independentemente da presença ou ausência de doença7,11.
A inserção de um maior quantitativo de trabalhadores de diferentes profissões proporcionou às famílias uma atenção à saúde mais abrangente7-11, solucionando muitos problemas no território e fortalecendo a integralidade, conforme a fala seguinte:
A chegada da residência foi excelente, sabe? Realmente a comunidade estava precisando desses profissionais, precisando do carinho deles, da atenção desses anos, dos serviços deles, porque, sabe que é muito difícil uma pessoa simples correr atrás de uma consulta, de um fisioterapeuta, de uma consulta, de um psicólogo, e você tendo no seu bairro é outra coisa. (T2)
A compreensão de vários participantes da pesquisa acerca do acesso trata da disponibilidade de um serviço ao usuário, de forma a garantir sua utilização, considerando a menor distância do seu local de moradia e a resolução tempestiva das suas necessidades de saúde, o que encontra ressonância na literatura sobre APS e ESF7-11.
As ações coletivas e de prevenção e promoção de saúde também foram impulsionadas, já que os profissionais residentes de apoio passaram a colaborar com as equipes de referência na atenção à demanda e trouxeram novas ferramentas de trabalho para os serviços. Desta forma, residentes desempenharam apoio clínico-assistencial e apoio técnico-pedagógico, efetivando a estratégia de apoio matricial19 na APS, o que, por sua vez, também fortalece o Nasf.
A colaboração interprofissional13,14 colocada em prática pela RIS, na percepção dos participantes, contribuiu para efetivar o princípio da integralidade. Este define que a atenção aos sujeitos deve ocorrer de forma holística; respondendo necessidades individuais e coletivas; gerando condições e estilos de vida saudáveis; e promovendo autonomia e participação das pessoas20.
As visitas compartilhadas acho um ponto positivíssimo, porque não ia só o assistente social para a visita, mas o fisioterapeuta, o nutricionista e aquele paciente que o assistente social visitava estava em vulnerabilidade social e tinha outro problema elencado. Naquela discussão de caso daquele paciente, cada profissional fazia intervenções necessárias e eles garantiam a integralidade desse cuidado, assim também como o estágio em rede, o ciclo do 2º ano na residência, que eles passam por alguns espaços, como atenção psicossocial, secundária, o hospital que tem estágio transversal e eles fazem os plantões. (PREC5)
A análise do corpus de dados evidenciou que a RISSFC-ESP materializou nos municípios uma experiência interprofissional colaborativa, desenvolvendo soluções em equipe para os problemas de saúde9. Os estágios dos residentes nas outras redes de atenção à saúde, concomitante à manutenção do vínculo com a equipe de saúde da família, contribuiu para coordenação dos cuidados7-11 às pessoas provenientes das comunidades as quais os residentes estavam vinculados, conforme extrato da fala recém-citada.
Os participantes pontuaram práticas inovadoras implementadas pelos residentes nos municípios, como a introdução de práticas integrativas e complementares no contexto da ESF. Contudo, o que mais chamou atenção foi a criação/efetivação de serviços já previstos na operacionalização da ESF, como a puericultura; as diversas campanhas educativas preexistentes no SUS (tais como Outubro rosa e Novembro azul); os grupos terapêuticos; o matriciamento em saúde mental; a atenção à saúde do adolescente; o Programa Saúde na Escola; e as ações educativas em geral, conforme ilustram as falas a seguir:
O PSF o qual eu comecei não tinha a puericultura, não tinha essa prática da puericultura. Então eu realmente coloquei e fiz agendamento e hoje tem a puericultura, as mães elas aparecem sim no PSF para fazer a puericultura [...]. O turno noturno também não tinha, então eu comecei também fazer e continuo. (RES2)
Tivemos alguns grupos inovadores, como o grupo de mulheres de terapia comunitária em uma unidade de saúde, que a gente trabalhava com transtornos mentais leves: ansiedade, depressão, questões familiares. Trabalhamos terapia comunitária com profissionais, com algumas equipes. A questão do fortalecimento dos grupos dos programas de Saúde da Família: idosos, hipertensos, diabéticos, gestantes. Matriciamento entre saúde mental e saúde da família iniciou nessa época e vem tendo continuidade no município. (RES4)
Por meio dessa característica inovadora e mobilizadora, a residência dissemina uma prática renovada, com potencial de promover mudanças em curto prazo, por meio da solução de problemas de saúde no próprio território; em médio prazo, com a implementação de atividades de promoção de saúde e qualidade de vida; e em longo prazo, na medida em que promove o conhecimento da comunidade sobre seu processo de saúde-doença.
Os entrevistados apresentaram percepções de como a residência potencializou o aprendizado e transformações no trabalho. Os profissionais envolvidos na residência trocaram saberes, inovaram práticas, levaram em conta as necessidades locais de saúde e, ao percorrerem as redes de serviços, tiveram uma visão mais sistêmica do SUS e tomaram consciência de sua importância e fragilidades:
[...] a gente aprendeu a Sala de Situação em Saúde, Planejamento Estratégico Situacional, territorialização, isso sem falar os módulos de acompanhamento: do adolescente, do adulto, do idoso, saúde mental, as Redes de Atenção [...] eu achei engraçado que a gente aprendeu sobre as redes, porque cada residente teve a oportunidade durante os estágios R2, falando agora, conheceram as redes e a gente também acabou vendo esse elo e as fragilidades das redes de atenção. (PREC6)
Merhy21 enfatiza que os profissionais precisam estar implicados com o processo de trabalho-ensino-aprendizagem, bem como com o contexto histórico-cultural que os cercam, o que denomina de “pedagogia da implicação”.
Historicamente, existe uma desvinculação entre os processos educacionais e laborais que caracteriza uma dicotomia entre teoria e prática. Essa apartação permeia a humanidade, em especial após o fim da idade média, com a criação das universidades, acentuando a divisão de classes e segregando aqueles que trabalham dos que pensam22. Entretanto, os seres humanos constituem seu aprendizado ao longo da vida a partir da interação com o meio e reflexão da experiência vivida, em uma relação dialética em que teoria e prática se fundem em práxis22,23. Essa premissa alicerça a estratégia de educação permanente em saúde (EPS)24,25 e, portanto, as residências integradas e multiprofissionais em saúde1.
Outro achado desta pesquisa foi a troca de papéis entre atores do processo ao longo da residência: residentes tornaram-se preceptores, profissionais dos serviços tornaram-se residentes ou preceptores e gestores tornaram-se preceptores, em uma espiral que produziu movimento e sentido à EPS. A residência, portanto, funcionou como um processo de desenvolvimento profissional para residentes, preceptores, trabalhadores e gestores:
[...] de repente você estando ali no território com eles, você vai também tendo a oportunidade de ver o que está acontecendo de fato. Aí você entra como gestor e ao mesmo tempo preceptor e gestor, pra dar um ajuste no que está acontecendo... (CAP3)
A inserção de novos profissionais nos serviços provoca por si só alguma mudança no cotidiano dos trabalhadores. A aceitação do novo ocorre de forma processual, havendo estranhamentos, tensões, sensibilização e motivação, além de demandar uma reorganização do processo de trabalho que contemple residentes e preceptores. Um dos articuladores da residência entrevistado ponderou:
É claro que em um primeiro momento causou uma estranheza: “ah está vindo pra tomar o meu lugar”, coisa desse tipo. Hoje não, percebo que as pessoas têm tido mais esse sentimento de pertença, tipo assim: “ah tem os residentes, vamos contar com eles”. Hoje ele tem participado mais da rotina do serviço não só como apenas residente, mas como alguém do serviço. (ART٤)
A inserção da residência contribuiu, por meio do provimento de profissionais, para a redistribuição da demanda e a reorientação das práticas, fortalecendo a ESF. Porém, o mínimo que deve ser garantido nos municípios para qualidade do programa é uma equipe de preceptores bem-formada e satisfeita com seu trabalho. É complexo garantir essa estrutura diante da instabilidade da política de saúde nos municípios, que a cada quatro anos estão sujeitos a uma mudança completa de sua gestão26.
A legislação sanitária brasileira27,28 estabelece atribuições, competências, alocação e repasse dos recursos financeiros referentes a cada esfera de gestão no SUS. Ainda assim, há diferenças entre gestões municipais, uma vez que cada gestor executa uma administração com planos, metas e ações, conforme a necessidade local, isso sem considerar as diferenças econômicas e histórico-organizacionais de cada um. A Política Nacional de Atenção Básica29 apresenta recomendações acerca da infraestrutura e funcionamento da rede, no entanto, conforme relato dos entrevistados, muitos CSF possuem estrutura insuficiente para o número de profissionais.
A implementação da RIS-ESP implica no aporte de mais profissionais, que demandam também mais espaço para assistência e maior suporte logístico. O principal desafio para a interiorização da residência apontado pelos entrevistados diz respeito à infraestrutura de saúde disponível nos municípios.
Diante dessas limitações estruturais, os residentes, em muitas situações, reformularam seu processo de trabalho de forma a se adaptar à realidade local, como atestam os depoimentos transcritos a seguir:
Eu tenho uma fisioterapeuta que ela tinha uma pessoa que tinha uma doença degenerativa, aqui num distrito, e ela teria que fazer piscina todo dia, a doença dela agora eu esqueço o nome, ela ia degenerando os músculos, paralisando os membros inferiores [...]. Como não tinha piscina ela usou o rio, ela viu lá com os pescadores a área que ela poderia ter, ela demarcou a área que poderia usar, então ela levava aquele paciente, botava em cima dos pés dela e caminhava dentro da água, então deu melhoria da qualidade da vida daquele paciente, então o paciente seguiu realizado, ela pegava o paciente na casa, ia lá pro rio e fazia isso, então é uma resolutividade que bateu na porta dela e ela tinha que resolver e resolveu. (SS1)
Eu acho que a gente fez um bom trabalho em relação ao vínculo comunitário. Até porque a gente não tinha uma estrutura pra todos os profissionais. A gente acabou tendo que usar igreja, acabou tendo que ir pra escola, ir pra praça... então ficou bem... fortaleceu esse vínculo. (RES8)
Apesar dos pactos firmados previamente entre instituições executoras e formadora, os municípios possuem limitações orçamentárias e estruturais. Ainda assim, os relatos mostram o reconhecimento das dificuldades e a superação criativa e proativa por parte dos residentes, proporcionando maior resolutividade e qualidade da atenção no contexto da ESF.
Um dos atores fundamentais na condução dos processos de ensino e aprendizagem na área da saúde é o preceptor. Entende-se por preceptor aquele profissional que desenvolve suas atividades em um serviço no âmbito do SUS e que recebe estudantes de graduação ou pós-graduação com o objetivo de orientar as práticas no seu lócus de atuação. Ser preceptor está para além de ser um professor tradicional, como os que atuam apenas em aulas teóricas ou atividades práticas esparsas, pois envolve aprendizado e domínio sobre o processo de trabalho, compromisso e disponibilidade cotidianos30,31.
Por meio da análise das informações obtidas no trabalho de campo, foram identificadas “dores” (incômodos e dificuldades) e “delícias” (benefícios sentidos) relacionadas ao “Ser preceptor”. Os entrevistados apontaram que não existia um formato pedagógico rígido, pois a relação de aprendizagem entre residentes e preceptores era horizontal.
No início das atividades da residência, grande parte dos preceptores não possuía formação docente. Para diminuir as lacunas de formação dos preceptores, a RIS-ESP, por meio do seu Programa de Desenvolvimento Docente32, realizou uma atualização para preceptores, paralela à formação dos residentes. Dessa forma, a formação e compreensão do fazer da preceptoria foram ocorrendo à medida que o programa foi se desenvolvendo, conforme relato:
Na primeira turma a gente andou meio que no descompasso na implantação daquilo que era capacitação, qualificação do preceptor e do residente. Então às vezes o residente estava vendo coisas que o preceptor ainda não viu. Esse descompasso na implantação foi algo que nos causou algumas dificuldades, mas também quando a gente começa a entender o papel de cada um nesse cenário... isso funciona. (ART4)
Com a chegada da residência, os gestores precisaram olhar para a equipe e rever os perfis de atuação, o que gerou mudanças e movimentos no sistema de saúde. A maioria dessas mudanças desencadeou resultados positivos, ao passo em que proporcionaram a qualificação e flexibilização das relações de trabalho. A horizontalidade dos processos de aprendizagem e trabalho contribuíram para construção de um conhecimento contextualizado às demandas de saúde que surgiram para os atores envolvidos.
O reconhecimento social e financeiro esteve fortemente ligado à dor de ser preceptor. O preceptor assumia dupla função, aumentando o seu volume de trabalho. Na perspectiva dos residentes, mesmo o preceptor que recebia incentivo financeiro não conseguia realizar o acompanhamento do residente de forma satisfatória, em consequência de ter que assumir diversas funções no município. Aqui se destaca a reflexão que os residentes já são formados e estão em pleno exercício de sua profissão; portanto, pergunta-se até onde essa sensação de insuficiência de preceptoria está relacionada às deficiências da graduação, cujo formato no Brasil é predominantemente tradicional, e até onde está relacionada realmente às deficiências na preceptoria. Estas são perguntas para novos estudos.
Vale ressaltar ainda que cada município possui formas de organização de trabalho diferentes e que, possivelmente, o município que possuía uma rede de saúde mais bem estruturada conseguiu garantir ao preceptor melhor apoio.
O objetivo principal deste estudo foi analisar a percepção dos atores envolvidos na RISSFC-ESP – a saber: gestores municipais, trabalhadores da ESF, preceptores e residentes – sobre o fortalecimento da ESF nas equipes de saúde nas quais esta se desenvolvia.
Da análise compreensiva emergiram as percepções de que a residência contribuiu para o fortalecimento dos princípios da ESF nos contextos municipais em razão de sua opção político-pedagógica de provocar a indignação e mobilização de residentes e preceptores para superar a pobreza do cuidado prestado à população na ESF. O residente se depara com um problema e aplica seus conhecimentos, sua criatividade e capacidade de articulação, mobilizando não exclusivamente sua equipe de saúde, mas extrapolando os muros, formando redes com atores de outras politicas públicas. Os residentes foram capazes também de superar deficiências da infraestrutura em saúde adaptando suas práticas aos recursos disponíveis.
Segundo a percepção dos participantes deste estudo, a RISSFC-ESP provocou mudanças, como a integração de novos profissionais às equipes de saúde da família e Nasf, a capacitação de profissionais do serviço – que se tornaram preceptores – e desencadeou ações que contribuíram para aumentar a acessibilidade, a integralidade, a longitudinalidade e a coordenação do cuidado nas equipes em que se desenvolveu.
Essas afirmações apontam que em nenhum momento houve homogeneidade no processo ou que a RISSFC-ESP é um elixir universal para os problemas do SUS, pois, apesar da formação em serviço ter contribuído para o fortalecimento da ESF na maioria territórios em que ocorreu, superando os limites impostos pelos contextos locais, houve muita variabilidade no processo. Esta variabilidade é um risco contido no desenho do programa, que se implanta em um Estado da República Federativa do Brasil e, assim sendo, não pode escapar aos seus limites históricos, políticos e estruturais. Outros problemas, como os existentes na estrutura organizacional da RIS-ESP, entre eles as restrições orçamentárias, possivelmente reduzem o potencial do projeto pedagógico.
Os depoimentos coletados demonstraram impactos positivos relacionados à formação e atenção à saúde, como inserção de práticas inovadoras no âmbito da ESF, a interiorização da formação na saúde e a ressignificação da educação permanente nos contextos municipais, que passou a envolver um maior número e diversidade de profissionais, contribuindo para a organização dos serviços.
Os impactos diretos nos indicadores de saúde ainda não foram possíveis de mensurar. Ainda assim, as percepções dos participantes da pesquisa indicaram melhoria na saúde dos sujeitos e coletividades nos quais a RISSFC-ESP atuou.
Os achados também geraram reflexões sobre o mundo do trabalho para profissionais de saúde e as relações entre a formação da força de trabalho pelo sistema de educação, sua absorção no sistema de saúde e o alinhamento desses processos com as necessidades da população. Verificou-se que a RISSFC-ESP, para além de formar especialistas, contribui para a transformação de práticas historicamente fragmentadas. Porém, ficou evidente a necessidade de investir na constituição de um corpo de preceptoria com um mínimo de estabilidade nos municípios, para garantir a qualidade do programa.
A representatividade dos participantes entrevistados, bem como a profundidade de seus depoimentos, tornam os resultados do presente estudo robustos. Por outro lado, a atualidade do tema reforça o interesse para saúde pública.
Novos estudos quantitativos e qualitativos serão necessários, para que se avalie o quanto e o como cada componente do desenho da RISSFC-ESF contribui para o fortalecimento da ESF e qual o impacto deste programa na formação dos profissionais residentes e nos indicadores de saúde da população atendida.