versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.6 São Paulo 2019 Epub 10-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018160
A disfagia orofaríngea é sintoma em inúmeras doenças de base e acarreta dificuldades no transporte do bolo alimentar em seu trajeto desde a boca até o estômago. A alta incidência e prevalência desse sintoma dentre as distintas doenças neurológicas na população adulta e infantil está frequentemente associada a complicações nutricionais e pulmonares(1-4).
Assim, avaliar precocemente a deglutição orofaríngea nestas populações torna-se fundamental para minimizar as consequências clínicas associadas a esse sintoma. Um dos métodos objetivos de avaliação da disfagia é a Videoendoscopia de Deglutição (VED), considerado de concordância diagnóstica com o método Gold Standard de avaliação da deglutição, quando se trata de identificar escape oral posterior, presença de resíduos faríngeos, penetração laríngea e aspiração laringotraqueal(5-8). Além disso, a VED é considerada de fácil e rápida execução, pode ser realizada à beira do leito, não expõe o indivíduo à radiação, permite a avaliação da sensibilidade laríngea, bem como a observação das estruturas anatômicas de determinadas regiões(9-11).
Um dos achados de grande relevância na investigação da biomecânica da deglutição é a presença de resíduos faríngeos (valéculas e/ou seios piriformes) após cada deglutição, o qual pode sugerir comprometimento e redução da eficiência da deglutição orofaríngea(12), bem como caracterizar-se como sinal preditivo de aspiração laringotraqueal(13). A VED mostrou-se mais sensível que a videofluoroscopia de deglutição na avaliação do grau de comprometimento dos resíduos na faringe, uma vez que permite a observação da característica dimensional da quantidade de resíduo na região faríngea(12,14).
A literatura atual tem destacado a importância de escalas que classificam a gravidade dos resíduos faríngeos para fins diagnósticos, auxiliando inclusive na definição da conduta terapêutica nas disfagias orofaríngeas. A Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale (YPRSRS) foi desenvolvida, padronizada, validada e definida por meio de imagens de exames de VED e baseia-se numa escala ordinal com atribuição de até cinco pontos, com base na quantidade e na localização dos resíduos na faringe(15). Estudo recente de revisão sistemática analisou as diferentes propostas de escalas para classificar os resíduos faríngeos e concluiu que apenas a YPRSRS preencheu os critérios de validade e aplicabilidade(16).
Considerando que a presença de resíduos faríngeos em populações com disfagia orofaríngea é citada como marcador de risco para a eficiência e segurança da deglutição, e que indivíduos com diferentes doenças neurológicas apresentam aspectos distintos na fisiopatologia da deglutição, torna-se fundamental comparar o desempenho dessas populações frente à ausência ou presença de resíduos faríngeos para favorecer os protocolos de conduta.
De forma geral, a presença de resíduos faríngeos é um dos achados da disfagia orofaríngea neurogênica e pode ser consequente a inúmeras alterações dos mecanismos fisiopatológicos da deglutição orofaríngea. Nos indivíduos com Acidente Vascular Cerebral (AVC), as alterações de fase oral com diminuição da resposta faríngea comprometem a elevação da laringe e os mecanismos de limpeza da faringe e de proteção da via aérea inferior, podendo produzir resíduos faríngeos(11,17,18). Já nas distintas doenças neurodegenerativas, dentre elas a Doença de Parkinson (DP) e a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), a presença de resíduos faríngeos, além de estar relacionada com os prejuízos da fase oral, possui estreita relação com os déficits neuromusculares presentes nas diferentes fases da deglutição e em cada doença, e que atingem a orofaringe de forma distinta(19-24).
Portanto, a fim de se considerar que a presença de resíduos faríngeos é uma das alterações da deglutição orofaríngea utilizada como parâmetro de conduta, e que este achado está presente nas diferentes fisiopatologias dos quadros disfágicos, sua investigação torna-se essencial a fim de não promover generalizações no processo diagnóstico e de conduta. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi comparar os resíduos faríngeos por consistência de alimento entre indivíduos com disfagia orofaríngea neurogênica.
Estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o parecer de número 2.040.305/2017. Todos os indivíduos, ou seus representantes legais, incluídos no estudo tiveram ciência e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ressalta-se que foram atendidos todos os dispositivos das resoluções 466/2012, 510/2016.
Para esta pesquisa foram analisados 30 exames de VED de indivíduos com diagnóstico médico de doenças neurológicas, independentemente do tempo ou estágio da doença, com disfagia orofaríngea confirmada após processo diagnóstico realizado no Laboratório de Disfagia do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Marília-SP, no período de 2015 a 2018. Foram excluídos os exames em que as imagens apresentavam prejuízos técnicos para a análise pretendida. Os indivíduos foram divididos em três grupos de acordo com a etiologia da doença: o grupo I (GI) foi composto por 10 indivíduos pós-AVC, 8 homens e 2 mulheres, com idades entre 51 e 80 anos e média de 67 anos; o grupo II (GII) foi composto por 10 indivíduos com ELA, 5 homens e 5 mulheres, com idades entre 39 e 78 anos e média de 57 anos; o grupo III (GIII) foi composto por 10 indivíduos com DP, 5 homens e 5 mulheres, com idades entre 65 e 88 anos e média de 74 anos (Apêndice 1).
Estudo clínico transversal observacional. A avaliação da deglutição orofaríngea foi realizada por meio de VED. Quanto ao procedimento instrumental de VED, este foi realizado pelo médico responsável, segundo o protocolo da instituição, utilizado nasofibroscópio da marca Machida®/Pentax®, acoplado ao sistema de microcâmera da marca Pentax® e fonte de luz da marca Pentax®, modelo LH-150 PC. As imagens foram armazenadas em computador, por meio do software de captura de imagem Zscan 6.0®. Para a realização do exame, cada participante foi orientado a permanecer sentado, e então o aparelho introduzido pela fossa nasal mais pérvia, não sendo utilizado anestésico tópico.
Para este estudo, foram coletadas do protocolo do estudo dinâmico da deglutição com VED da instituição as consistências de alimentos padronizadas em pastosa e líquida espessada, conforme preconiza o International Dysphagia Diet Standartisation Initiative (IDDSI) no volume de 5 mL. As consistências desses alimentos foram preparadas com líquido em forma de suco dietético sabor pêssego e por espessante alimentar instantâneo composto de amido de milho modificado e maltodextrina. O corante artificial alimentício com pigmento na cor azul foi introduzido aos alimentos a fim de facilitar a visualização destes na região faríngea.
Para a análise e classificação dos resíduos faríngeos, foi considerada a primeira deglutição de cada consistência, sendo analisados 30 exames na pastosa e 27 na líquida espessada, devido à interrupção que é realizada no exame a cada consistência e volume mediante a presença de aspiração substancial. Aplicada a Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale (YPRSRS)(15) após tradução intergrupos de pesquisa, já que não há tradução e validação para o português brasileiro. A YPRSRS classifica os resíduos na região de valéculas e seios piriformes em cinco níveis: ausência de resíduo, vestígio residual, leve, moderado e grave.
A classificação dos resíduos faríngeos foi realizada por dois julgadores independentes e de forma cega. O primeiro julgador com 20 anos de experiência na realização e análise da VED, considerado o avaliador ouro para essa análise, e o segundo treinado por um ano para essas análises específicas.
Foi aplicado o coeficiente de concordância de Kappa para descrever a concordância entre os dois juízes, numa avaliação ordinal dos resíduos faríngeos. O valor de Kappa obtido nessa avaliação foi de 0,75, que indica forte concordância entre os julgadores, e somente após essa análise foram realizadas as demais análises estatísticas. Para o estudo da relação entre as variáveis localização de resíduos e a consistência alimentar, nos três grupos estudados (Pós-AVC, ELA e DP), utilizou-se o teste de Kruskall Wallis, que faz a comparação de múltiplos grupos independentes, a partir do software STATISTICA versão 7.0. O nível de significância adotado foi ≤ 0,05.
A tabela 1 mostra a frequência de resíduos faríngeos na consistência pastosa e líquida espessada na disfagia orofaríngea neurogênica.
Tabela 1 Frequência de resíduos faríngeos na consistência pastosa e líquida espessada na disfagia orofaríngea neurogênica
Presença | Ausência | |
---|---|---|
Pastosa N=30 |
19 (63,33%) | 11 (36,67%) |
Líquida espessada N=27 |
16 (59,26%) | 11 (40,74%) |
N: número de pacientes
As tabelas 2 e 3 mostram, respectivamente, a classificação dos resíduos faríngeos em valéculas e seios piriformes na consistência pastosa em todos os grupos estudados.
Tabela 2 Grau de classificação de resíduos faríngeos em região de valéculas na consistência pastosa nos diferentes grupos
YPRSRS 0-2 | YPRSRS 3-4 | |
---|---|---|
GI | 9 (90%) | 1 (10%) |
GII | 9 (90%) | 1 (10%) |
GIII | 9 (90%) | 1 (10%) |
H 2 (N=30) p = 0,25 |
N: número de pacientes; YPRSRS: Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale
Tabela 3 Grau de classificação de resíduos faríngeos em região de seios piriformes na consistência pastosa nos diferentes grupos
YPRSRS 0-2 | YPRSRS 3-4 | |
---|---|---|
GI | 10 (100%) | 0 (0%) |
GII | 9 (90%) | 1 (10%) |
GIII | 10 (100%) | 0 (0%) |
H 2 (N=30) p = 1,41 |
N: número de pacientes; YPRSRS: Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale
Na consistência pastosa, foi mais frequente a ocorrência de resíduos faríngeos, seja na região de valéculas ou seios piriformes em níveis considerados de ausente a leve (YPRSRS 0-2), do que em níveis moderado e grave (YPRSRS 3-4), em todos os grupos e sem diferença estatística significativa.
As tabelas 4 e 5 mostram, respectivamente, a classificação dos resíduos faríngeos em valéculas e seios piriformes na consistência líquida espessada em todos os grupos estudados.
Tabela 4 Grau de classificação de resíduos faríngeos em região de valéculas na consistência líquida espessada nos diferentes grupos
YPRSRS 0-2 | YPRSRS 3-4 | |
---|---|---|
GI | 9 (100%) | 0 (0%) |
GII | 8 (89%) | 1 (11%) |
GIII | 9 (100%) | 0 (0%) |
H 2 (N=27) p = 0,18 |
N: número de pacientes; YPRSRS: Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale
Tabela 5 Grau de classificação de resíduos faríngeos em região de seios piriformes na consistência líquida espessada nos diferentes grupos
YPRSRS 0-2 | YPRSRS 3-4 | |
---|---|---|
GI | 9 (100%) | 0 (0%) |
GII | 8 (89%) | 1 (11%) |
GIII | 9 (100%) | 0 (0%) |
H 2 (N=27) p = 0,49 |
N: número de pacientes; YPRSRS: Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale
Na consistência líquida espessada, também foi mais frequente a ocorrência de resíduos faríngeos na região de valéculas e seios piriformes em níveis considerados de ausente a leve (YPRSRS 0-2), do que em níveis moderado e grave (YPRSRS 3-4), em todos os grupos e sem diferença estatística significativa.
Diversos estudos analisaram a presença de resíduos faríngeos na disfagia orofaríngea neurogênica, identificando, caracterizando e relacionando com a presença de aspiração laringotraqueal(18,19,21,24,25). Em concordância com esses estudos, e ainda sem identificar quantidade e local dos resíduos faríngeos, bem como a diferença entre distintas populações disfágicas, o presente trabalho constatou que a frequência de resíduos faríngeos na disfagia orofaríngea neurogênica, nas consistências de alimento e nas doenças estudadas, é maior que a ausência. Considerando que a presença de resíduos faríngeos está relacionada a distintos prejuízos em determinadas ações da biomecânica da deglutição orofaríngea, que dependem tanto da propulsão oral do alimento quanto dos mecanismos de elevação laríngea, contração faríngea e abertura da transição faringoesofágica, a possibilidade desse achado ser frequente na sintomatologia disfágica é marcante e concordante na literatura(18,19,22).
Assim, embora a presença frequente de resíduos faríngeos em indivíduos com disfagia orofaríngea neurogênica seja consenso na literatura, pouco sabemos sobre a quantidade ou local em populações distintas, e essa classificação poderá contribuir para a compreensão sobre a fisiopatologia envolvida ou para a elaboração de protocolos de conduta consensuais para cada doença de base.
Portanto, considerando o grau de comprometimento dos resíduos faríngeos, nas consistências testadas e em diferentes grupos de doenças neurológicas, verificou-se que o nível de gravidade dos resíduos faríngeos foi similar entre os grupos estudados. Essa variação nos níveis de comprometimento dos resíduos faríngeos possui explicações distintas em cada doença de base, considerando a fisiopatologia da deglutição orofaríngea de cada uma. Nos indivíduos pós-AVC, os resíduos faríngeos estão associados ao desempenho da fase oral, da resposta faríngea e elevação laríngea, bem como da abertura da transição faringoesofágica(11,17,18). Nas doenças neurodegenerativas, como ELA e DP, a fisiopatologia da deglutição dos resíduos faríngeos se associa ao déficit neuromuscular presente na fase oral e faríngea da deglutição(19-24).
Este estudo verificou ainda que a presença de resíduos faríngeos, tanto em valéculas quanto seios piriformes, em ambas as consistências de alimento estudadas, esteve mais presente nos níveis menos grave da escala de classificação de resíduos faríngeos, e não houve diferença entre as doenças estudadas. Esse resultado é concordante com outros estudos sobre resíduos faríngeos em disfagia orofaríngea neurogênica, porém que utilizaram a videofluoroscopia de deglutição, que também verificaram que a classificação de resíduos em nível leve foi maior do que em nível grave(19,26). Por outro lado, estudo com população heterogênea constatou presença de resíduos faríngeos em porcentagem semelhante nos níveis de leve e grave(27). Assim, a discussão desses aspectos torna-se complexa, devido à ausência de consenso no método utilizado nesses estudos para mensurar os resíduos faríngeos. Há grande variabilidade entre os estudos sobre resíduos faríngeos no que concerne ao método utilizado na mensuração deste parâmetro(23,26-28).
Em relação à presença de resíduos faríngeos, comparando a variável consistência pastosa e líquida espessada, observou-se o mesmo grau de classificação de resíduos. Estudo anterior também verificou em indivíduos disfágicos com etiologias neurológicas distintas, lesão cerebral e doenças neurodegenerativas, que no grupo com lesão cerebral o aumento de viscosidade do bolo alimentar não afetou o acúmulo de resíduos faríngeos. Por outro lado, no grupo de doenças neurodegenerativas, os autores encontraram dados de que o aumento da viscosidade impactou em maior acúmulo de resíduos(28). Deve-se considerar no grupo de doenças neurodegenerativas que o estágio da doença afeta o desempenho neuromuscular e pode impactar a formação de resíduos faríngeos, e que em ambos os estudos há limitações para a compreensão dessa questão. Por fim, o acúmulo de resíduos faríngeos de acordo com a mudança da consistência do alimento deve ser um critério a ser considerado nas condutas multiprofissionais. Porém, há dificuldade em compararmos os resultados desse estudo com outros, uma vez que muitos não trataram das consistências alimentares separadamente ou por grau de comprometimento dos resíduos(24). A maioria dos estudos analisou a presença de resíduos faríngeos de forma generalizada, sem considerar inclusive o local do resíduo(18), ou então, com grande ênfase para a oferta de consistência líquida em comprometimento da segurança da deglutição(19). Além disso, é importante ressaltar que o presente estudo realizou a análise dos resíduos faríngeos por regiões, de forma cega e com dois julgadores.
Outro aspecto relevante nessa discussão e que pode comprometer as comparações entre estudos distintos trata do fato de que a comparação entre os estudos científicos na investigação em disfagia orofaríngea deve considerar o setting da casuística. Diferentes settings muitas vezes envolvem indivíduos com quadros agudos ou crônicos, com maior ou menor evolução nos quadros progressivos, e isso necessariamente afeta o grau de disfagia presente na casuística. Neste estudo, a amostra foi coletada em Centro de Reabilitação e, portanto, sugere que o perfil de segurança e eficácia da deglutição em pessoa nesta modalidade de atendimento possa apresentar menor comprometimento.
Por fim, visando potencializar novas hipóteses de pesquisa por meio das limitações deste estudo, ressalta-se que o desconhecimento sobre os estágios em que se encontravam os indivíduos com doenças neurodegenerativas deste estudo, e o reduzido número de indivíduos que compôs cada grupo dentre as três doenças neurológicas, pode ter comprometido a análise comparativa sobre a diferença entre eles. Além disso, uma análise de todas as deglutições executada em cada oferta poderia ter contribuído para facilitar a compreensão sobre o mecanismo de acúmulo de resíduos faríngeos em disfagia orofaríngea neurogênica. No entanto, este estudo inicial por meio de método criterioso com julgadores cegos poderá contribuir para reflexões futuras sobre o tema.
Os níveis de resíduos faríngeos na consistência pastosa ou líquida espessada na população estudada foram semelhantes e mais frequentes nos níveis menos grave.