Compartilhar

Resultado do transplante renal com doador portador de doença renal policística

Resultado do transplante renal com doador portador de doença renal policística

Autores:

Silvia Regina da Cruz Migone,
Camila Guerreiro Bentes,
Débora Bacellar Cruz Nunes,
Juliana Bacellar Cruz Nunes,
Rodolfo Marcial da Silva Pinon,
Thales Xavit Souza e Silva

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160059

Introdução

O transplante renal é a melhor opção terapêutica para pacientes com insuficiência renal crônica avançada, a fim de garantir ao receptor uma função renal adequada tanto do ponto de vista médico quanto social e econômico.1

Segundo dados do Registro Brasileiro de Transplantes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO),2 no ano de 2013 a necessidade no Brasil era de 11.445 de transplantes renais, sendo efetivados 5.433, correspondendo a pouco mais de 40% da necessidade anual. No Pará, a necessidade em 2013 foi de 455 transplantes renais, sendo realizados apenas 53. Dados esses que evidenciam ainda uma longa espera na fila de transplante por um rim.

Dentre as opções de doadores para transplante renal, estão os doadores de critério expandido, que correspondem a uma parcela considerável das doações realizadas, a fim de aumentar a oferta de rins para transplante em curto-prazo.3

A doença renal policística hereditária, enquadrada nos critérios expandidos pelo Ministério da Saúde,4 é uma desordem genética, podendo ser de caráter autossômica dominante (DRPAD) ou autossômica recessiva (DRPRD). Corresponde a uma insuficiência renal crônica de progressão lenta, caracterizada pelo desenvolvimento e crescimento progressivos de cistos renais, que começam a ser detectáveis quando já são tão numerosos e grandes, que ocupam o lugar do tecido renal normal, comprimindo-o e destruindo-o com o tempo, levando à falência renal terminal.5,6

Apresentação do Caso

Doador

Criança sexo masculino, 12 anos, pardo, 70 kg, altura de 170 cm, sangue: O+, sem afecções prévias relatadas por seus familiares, foi encaminhado ao hospital após histórico de cefaleia súbita há 7 dias, vômitos incoercíveis, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e sonolência. Evoluiu com poliúria e depressão do sensório, sendo internado em unidade de terapia intensiva (UTI), com necessidade de intubação (FiO2 a 40%) para ventilação mecânica, onde permaneceu por 7 dias.

Durante a internação, apresentou diurese de 340 ml/24h e pressão arterial (PA) 110/60 mmHg. No 7º dia de internação a tomografia computadorizada (TC) de crânio evidenciou hemorragia meníngea por ruptura de aneurisma cerebral. A confirmação do óbito foi realizada por meio de angiografia cerebral, que demonstrou ausência de fluxo sanguíneo cerebral pelas artérias carótidas e vertebrais.

Os exames laboratoriais colhidos no dia do óbito mostravam hematócrito de 22%, hemoglobina de 7,5 mg/dL, ureia de 36 mg/dL/, creatinina sérica de 0,7 mg/dL, potássio de 4,3 mEq/l, sódio de 152 mEq/l, glicose de 95 mg/dl, TGO de 15, TGP de 14, pH de 7,38, pO2 de 154, pCO2 de 54, SaO2 de 49%, sorologia IgG positiva para citomegalovírus (CMV) e negativa para as hepatites B e C. Realizou HLA (antígeno leucocitário humano) no laboratório de histocompatibilidade, evidenciando A02;02, B39;48 e DRB1 08;09.

Durante a captação dos órgãos a serem doados, foram notados pequenos e múltiplos cistos em ambos os rins.

Receptores

Um dos transplantes foi realizado em uma receptora de 24 anos, parda, portadora de glomerulonefrite crônica, em hemodiálise há três anos. A avaliação pré-operatória mostrou sangue do tipo O+, sorologias não reagentes para HIV (vírus da imunodeficiência humana), hepatites B e C, positividade IgG para CMV e toxoplasmose. A avaliação imunológica mostrava HLA A31;68, B39;53, DRB1 01;08, prova cruzada negativa, painel de reatividade (PRA) 40% e 0% em classe I e classe II, respectivamente.

O tempo de isquemia fria do enxerto foi de 24 horas e 4 minutos. A imunossupressão consistiu em indução com timoglobulina (6 mg/kg em quatro doses), micofenolato sódico (360 mg 2xdia) a partir do 1º dia de pós-operatório (PO), prednisona (30 mg/dia no 1º PO) e tacrolimo (12 mg/dia) iniciado no 7º PO.

Os volumes de diurese no primeiro, terceiro e quinto dias após o transplante foram, respectivamente, 20 ml, 23 ml e 35 ml. Houve necessidade de tratamento com hemodiálise desde o 1º até o 10º PO. Recebeu alta hospitalar no 38º dia de pós-operatório. Com nove meses de transplante, o tacrolimo foi substituído por everolimo (4 mg/dia).

A ultrassonografia (USG) inicial evidenciou rim medindo 11,8 x 5,6 x 6,4 cm, volume de 227 cm³ e múltiplas imagens císticas no rim transplantado, a maior delas apresentando 1,4 cm. Após quatro anos de transplante, a dosagem sérica de creatinina manteve-se na média de 1,0 mg/dl.

A última USG evidenciou rim medindo 13,3 x 6,4 x 6,3 cm, com volume de 288,2 cm³ e presença de duas imagens císticas anecogênicas, a maior delas medindo 1,7 cm em terço inferior, sem outras alterações. O esquema imunossupressor foi mantido, havendo apenas ajuste de doses: micofenolato sódico (1,08 g/dia), prednisona (5 mg/dia) e everolimo (3,5 mg/dia).

O outro transplante foi realizado em um receptor de 47 anos, feminino, parda, portadora de glomerulonefrite crônica, em hemodiálise há quatro anos. A avaliação pré-operatória mostrou sangue do tipo O+, sorologias não reagentes para HIV e hepatites B e C, positividade IgG para CMV e toxoplasmose.

A avaliação imunológica mostrava HLA A24;24, B39;44, DRB1 4;8, prova cruzada negativa, PRA de 50% e 0% em classe I e II, respectivamente. O tempo de isquemia fria foi de 23 horas. A imunossupressão consistiu em indução com timoglobulina (6 mg/kg em 4 doses), micofenolato sódico (720 mg/dia, a partir do 1º PO), prednisona (30 mg no 1º PO) e tacrolimo (10 mg/dia) iniciado no 7º PO.

Os volumes de diurese no primeiro, terceiro e quinto dias após o transplante foram, respectivamente, 682 ml, 680 ml e 80 ml/24 h. Houve necessidade de hemodiálise até o 8º PO. Recebeu alta hospitalar no 22º dia de PO. Com nove meses de transplante, o tacrolimo foi substituído por everolimo (2 mg/dia). A USG inicial mostrou rim transplantado medindo 11,8 x 5,6 x 6,4 cm, com volume de 227 cm³ e presença de múltiplas imagens císticas corticais, a maior medindo 1,4 cm, sem outras alterações.

Após quatro anos de transplante, a dosagem sérica de creatinina variou entre 0,72 mg/dl e 1,4 mg/dl. A última USG evidenciou rim medindo 12 x 6,9 x 5,6 cm, presença de múltiplos cistos simples medindo até 2,6 cm e dilatação leve de sistema pielocalicial. O esquema imunossupressor também foi mantido, havendo ajuste de doses: micofenolato (720 mg/dl), prednisona (5 mg/dia) e everolimo (2 mg/dia).

O monitoramento das concentrações séricas de creatinina realizadas em ambos os receptores é mostrado na Tabela 1 e Figura 1.

Tabela 1 Dosagens de creatinina sérica em quatro anos de seguimento de póstransplante em receptores de rins policísticos 

Receptor de 24 anos Receptor de 47 anos
POI 12,30 7,00
1 mês 1,40 1,40
2 meses 1,29 1,20
3 meses 1,60 1,00
1 ano 1,10 0,94
2 anos 1,20 0,90
3 anos 1,10 1,00
4 anos 1,00 1,10

POI: Pós-operatório imediato. Fonte: Protocolo de pesquisa, 2014.

Figura 1 Determinação sérica de creatinina nos pacientes receptores de rim policístico durante quatro anos de seguimento após o transplante. 

Discussão

Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia e a Sociedade Brasileira de Urologia,7 os pacientes com doença renal policística configuram-se como indicação relativa para a efetivação da doação de seus rins para transplante. Quando em estágio inicial da doença, esses rins podem ser considerados viáveis para doação, pois não têm demonstrado causar efeitos adversos e propiciam ao receptor aumento da sobrevida.8

Canaud et al.9 relatam que a descoberta de DRPAD em um doador de rim no pós-transplante é um evento raro, mas não excepcional.

No relato de caso de Eng et al.8 não foram observadas complicações após 15 anos de pós-transplante renal utilizando um rim policístico. O receptor evoluiu com boa função renal, creatinina sérica de 1,2 mg/dl e lenta progressão da doença cística.

A fisiopatologia da DRPAD é bastante complexa e permanece desconhecida em sua maior parte. Sua cistogênese tem sido associada à desregulação de múltiplas vias moleculares, a exemplo da via mammaliam target of rapamycin (mTOR), a qual comprovou-se estar inapropriadamente ativada.9-11

Estudos experimentais com roedores apontam para significativa ação de retardo da expansão cística e proteção da função renal, com o uso de inibidores mTOR.12 A utilização destes medicamentos em rins nativos de pacientes com DRPAD demonstrou que o sirolimo não foi capaz de promover a desaceleração no crescimento dos cistos renais e o everolimo, apesar de conseguir tal feito, não obteve impacto na progressão da insuficiência renal.13,14

Ademais, dados recentes de outros estudos retrospectivos acerca do pós-transplante renal em pacientes com DRPAD relatam significativa redução do volume de cistos renais após tratamento com sirolimo em comparação aos pacientes tratados com inibidores da calcineurina.11

Contudo, ainda não é sabida a dose ideal de tais drogas que seja capaz de inibir a via mTOR e, ao mesmo tempo, evitar riscos de graves efeitos colaterais, tornando a determinação de um nível sérico crítico de everolimo e sirolimo uma questão crucial.9,15

No presente estudo, os receptores de rim policístico evoluíram com boa função renal, dosagens de creatinina dentro da normalidade, boa taxa de filtração glomerular e discreto crescimento do tamanho renal e dos cistos. Esses resultados confirmam que a utilização de doadores de critério expandido é uma opção segura, capaz de aumentar a oferta de órgãos para doação, apresentando bons resultados funcionais e aumento da sobrevida desses pacientes.

A dosagem imunossupressora varia de acordo com as necessidades de cada receptor, e, apesar de não existir um valor padrão para a supressão do crescimento dos cistos renais, a adequada triagem laboratorial e a avaliação periódica dos pacientes permitem a identificação dos ajustes necessários em cada caso e a boa evolução e funcionalidade do enxerto sem maiores complicações.

REFERÊNCIAS

1 Ionta MR, Silveira JM, Carvalho RDG, Silva SCC, Souza ACP, Magno IMN. Análise do perfil clínico e epidemiológico dos pacientes que realizaram transplante renal em um hospital beneficente. Rev Para Med 2013;27:74-8.
2 Brasil. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2006-2013). Registro Brasileiro de Transplantes; 2013. [Acesso 2016 Jul 25]. Disponível em:
3 Klein R, Galante NZ, Franco M, Almeida MCM, Nogueira Júnior M, Silva-Júnior HT, et al. Transpondo limites com doadores falecidos: transplantes bem-sucedidos com rins de doador com creatinina sérica igual a 13,1 mg/dL. J Bras Nefrol 2010;32:133-7. DOI:
4 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.600, de 21 de outubro de 2009. Aprova o Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplante [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. [Acesso 2015 Jan 5]. Disponível em:
5 Milani V, Mattos C, Porsch D, Rossato L, Barros E, Nunes A. Doença Renal Policística do Adulto: Uma Atualização. Rev HCPA 2007;27:27-9.
6 Whittle M, Simões R; Sociedade Brasileira de Genética Médica. Hereditary polycystic kidney disease: genetic diagnosis and counseling. Rev Assoc Med Bras 2014;60:98-102. PMID: 24918994 DOI:
7 Noronha IL, Ferraz AS, Silva Filho AP, Saitovich D, Carvalho DBM, Paula FJ, et al. Transplante renal: indicações e contra-indicações. São Paulo: Associação Médica Brasileira; 2006.
8 Eng MK, Zorn KC, Harland RC, Bernstein AJ, Katz M, Shikanov S, et al. Fifteen-year follow-up of transplantation of a cadaveric polycystic kidney: a case report. Transplant Proc 2008;40:1747-50. PMID: 18589185 DOI:
9 Canaud G, Knebelmann B, Harris PC, Vrtovsnik F, Correas JM, Pallet N, et al. Therapeutic mTOR inhibition in autosomal dominant polycystic kidney disease: What is the appropriate serum level? Am J Transplant 2010;10:1701-6.
10 Wilson PD. Polycystic kidney disease. N Engl J Med 2004;350:151-64. PMID: 14711914 DOI:
11 Torres VE, Harris PC. Autosomal dominant polycystic kidney disease: the last 3 years. Kidney Int 2009;76:149-68. PMID: 19455193 DOI:
12 Shillingford JM, Murcia NS, Larson CH, Low SH, Hedgepeth R, Brown N, et al. The mTOR pathway is regulated by polycystin-1, and its inhibition reverses renal cystogenesis in polycystic kidney disease. Proc Natl Acad Sci U S A 2006;103:5466-71. PMID: 16567633 DOI:
13 Serra AL, Poster D, Kistler AD, Krauer F, Raina S, Young J, et al. Sirolimus and kidney growth in autosomal dominant polycystic kidney disease. N Engl Med 2010;363:820-9. PMID: 20581391 DOI:
14 Walz G, Budde K, Mannaa M, Nürnberger J, Wanner C, Sommerer C, et al. Everolimus in patients with autosomal dominant polycystic kidney disease. N Engl J Med 2010;363:830-40. PMID: 20581392 DOI:
15 Qian Q, Du H, King BF, Kumar S, Dean PG, Cosio FG, et al. Sirolimus reduces polycystic liver volume in ADPKD patients. J Am Soc Nephrol 2008;19:631-8. DOI: