Compartilhar

Retratos da dor pélvica crônica: percepções e crenças de 80 mulheres

Retratos da dor pélvica crônica: percepções e crenças de 80 mulheres

Autores:

João Elias de Godoi,
Dário Rafael Macêdo dos Reis,
Jakeline Resende Carvalho,
José Miguel de Deus

ARTIGO ORIGINAL

BrJP

versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192

BrJP vol.2 no.1 São Paulo jan./mar. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190003

INTRODUÇÃO

Dor pélvica crônica (DPC) é entendida como uma dor não menstrual, contínua ou intermitente, com duração igual ou superior a seis meses, localizada na região abdominal inferior ou pélvica, que interfere nas atividades diárias e/ou necessita de intervenção clínica ou cirúrgica1,2. Trata-se de uma importante causa de morbidade, de incapacidade funcional e de redução da qualidade de vida (QV) para as mulheres3-6, que acomete entre 5,7 e 26,6% das mulheres no mundo7. No Brasil, Silva et al.8 relataram prevalência de 15,1% de DPC em mulheres em idade reprodutiva, enquanto Coelho et al.9 reportaram prevalência de 19% em mulheres de 14 a 60 anos. Ademais, é responsável por cerca de 10% das consultas ambulatoriais ginecológicas, bem como por 40 a 50% das laparoscopias ginecológicas e 12% das histerectomias10,11.

Tem-se demonstrado que em parcela significativa de mulheres com DPC inexistem alterações ao exame físico e à ultrassonografia e, em muitos casos, nenhum diagnóstico orgânico é encontrado12,13. Ainda, mais de 70% das pacientes relacionaram algum evento marcante ou traumático ao início do sintoma13. Sabe-se que vários fatores psicológicos, constituintes da dimensão afetiva da dor, têm potencial influência na percepção do quadro álgico e podem interferir no diagnóstico e tratamento14,15.

O domínio psicológico pode ser representado e interpretado de forma subjetiva por meio da arte. Grande exemplo disso é a artista Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, que retratou em suas pinturas uma visão pessoal e única da dor crônica, compondo uma narrativa visual com potencial diagnóstico e terapêutico16. Nesse contexto, Loduca e Samuelian15 relataram o desenvolvimento do Retrato da Dor (RD) em 1998, recurso projetivo no qual o paciente usa a criatividade para concretizar a sua dor na forma de um desenho. Este, associado a um breve inquérito, parece ser um método interessante para identificar a percepção que o paciente tem de sua dor e do sofrimento associado14,15. Além disso, Eliot e Maier17 concluem que até o manuseio das cores tem influência importante no afeto, na cognição e no comportamento e podem trazer informações importantes.

A análise do RD ainda não foi aplicada especificamente em mulheres com DPC, entidade de difícil manuseio clínico. O presente estudo buscou trazer maior esclarecimento sobre a influência do componente psicológico na avaliação da DPC, por meio da análise da sua expressão gráfica pelas mulheres com DPC e da pesquisa de suas percepções e crenças sobre a dor.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo de corte transversal exploratório com 80 pacientes do Ambulatório de DPC do Serviço de Ginecologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG/EBSERH), no período de março de 2017 a janeiro de 2018.

Foram incluídas no estudo pacientes diagnosticadas com DPC, de idade igual ou superior a 18 anos e que aceitaram participar voluntariamente do estudo. Os critérios de exclusão foram: pacientes com câncer, gestantes, portadoras de déficit cognitivo e/ou transtornos psiquiátricos graves e/ou as que se recusaram participar.

Por meio de uma entrevista pré-estruturada foram coletados, na ordem: dados sociodemográficos (idade, etnia, tempo de estudo, exercício de atividade remunerada, presença de companheiro, conflitos familiares, violências física e sexual); comportamentais (prática de atividade física regular, consumo de álcool, tabagismo) e clínicos (intensidade e duração da dor, piora com o ciclo menstrual, alívio com fármacos, filhos, abortos, sobrepeso e obesidade, hipertensão, diabetes e cirurgias prévias).

As variáveis referentes aos dados sociodemográficos e à parte dos dados clínicos (filhos, abortos, hipertensão, diabetes e cirurgias prévias) foram obtidas por autorrelato. Dados quanto ao peso e altura, obtidos por aferição na entrevista, foram usados no cálculo do índice de massa corpórea (IMC) para classificação de sobrepeso (IMC≥25,0 <30,0) e obesidade (IMC≥30,0). Foram realizadas as seguintes perguntas: você possui algum conflito familiar? Você já sofreu violência física ou sexual? Quanto às variáveis comportamentais, considerou-se como prática de atividade física regular a prática de exercícios pelo menos duas vezes por semana; consumo de álcool a ingestão de bebidas alcoólicas pelo menos duas vezes por semana e tabagismo o consumo de tabaco na época da entrevista.

A intensidade da dor foi obtida por meio da escala analógica visual para dor (EAV), com zero representando ausência de dor e 10 a pior dor imaginável. Para a investigação das percepções e crenças foram usados o RD15.

O RD foi aplicado da forma proposta por Loduca e Samuelian15, sendo que cada paciente foi instruída a imaginar que sua dor possuía uma forma e desenhá-la numa folha de papel. Para isso foram disponibilizados lápis de cor (12 cores), giz de cera (12 cores) e caneta esferográfica de cor azul, que foram empregados sem restrições. Logo após foi anotada uma sucinta frase para caracterizar o retrato, dita pela paciente, para facilitar a compreensão do desenho. Em seguida, para ampliar o conhecimento sobre a dor e sobre as crenças da paciente, foi aplicado um breve questionário envolvendo as seguintes questões: "dê um nome para a sua dor"; "quantos anos ela tem?"; "alguém pode ajudar ou algo pode ser feito para diminuir a sua dor?"; "e você pode fazer alguma coisa?"; "teve algum momento da sua vida que tivesse sido igual ou pior do que essa dor?"15.

Durante todo o tempo de entrevista, pelo menos um dos pesquisadores esteve disponível para esclarecer as dúvidas da paciente a respeito do questionário, sem interferir em suas respostas e na representação gráfica da dor.

Os desenhos coletados no RD foram avaliados de forma qualitativa e categorizados em grupos não excludentes entre si, por suas principais características e traços partilhados, através de análise de conteúdo18 e consenso entre os autores. Para a formação desses grupos, levou-se em consideração os grupos já descritos na literatura14,19 e os demais, formulados a partir da percepção dos autores.

O tamanho da amostra foi definido após observar sobreposição das formas de RD representados pelas participantes. Todos os grupos, após categorizados, alcançaram pelo menos seis representações, o que foi considerado como ponto de saturação.

Em sequência, os desenhos foram avaliados de forma objetiva quanto ao uso predominante de cores quentes (variantes do espectro vermelho-amarelo) e cores frias (variantes do espectro verde-azul, incluindo cores neutras do espectro branco-preto), adaptado da classificação feita por Johann Wolfgang von Goethe no seu trabalho "Teoria das Cores"17,20. Além disso, por convenção entre os autores, os desenhos foram classificados quanto ao uso de poucas ou de muitas cores, sendo o emprego de três ou mais cores o critério para ser classificado como de muitas cores. Por fim, cada nome atribuído à dor pela paciente foi separado em grupos por consonância entre os autores.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HC-UFG/EBSERH, sob o parecer de nº 1.957.243/2017, sendo que todas as pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Análise descritiva

Utilizou-se o software Epi Info(tm) 7.2.2.6 para a tabulação dos dados e subsequentes cálculos de médias, desvios padrões e frequências absolutas e relativas apresentados no trabalho.

RESULTADOS

A média de idade das 80 participantes foi de 39,40±9,21 anos. Os dados sociodemográficos, comportamentais e clínicos colhidos estão elencados na tabela 1. A intensidade média da dor foi de 7,03±2,58 pela EAV; duração média de 8,84±7,65 anos e, em 72,50% dos casos, piorava com a menstruação. Cerca de 85% estavam em uso de fármacos, com média de alívio da dor de 59,60±33,70%.

Tabela 1 Perfil sociodemográfico, comportamental e clínico de 80 mulheres com dor pélvica crônica atendidas entre março/2017 e janeiro/2018 *  

Variáveis n %
Etnia
Parda 44 55,00
Branca 24 30,00
Outras 12 15,00
Tempo de estudo (anos)
<8 22 27,50
≥8≤11 19 23,75
>11 35 43,75
Exerciam atividade remunerada 42 52,50
Possuíam companheiro 65 81,25
Possuíam algum conflito familiar 26 32,50
Sofreram violência física 28 35,00
Sofreram violência sexual 23 28,75
Dados comportamentais
Praticavam atividade física regular 29 36,25
Consumo de álcool 2 2,50
Tabagismo 6 7,50
Dados clínicos
Tiveram filho(s) 67 83,75
Sofreram aborto(s) 19 23,75
Índice de massa corpórea (kg/m²)
Peso normal 36 45,00
Excesso de peso (≥25,0 <30,0) 29 36,25
Obesidade (≥30,0) 15 18,75
Hipertensão 19 24,00
Diabetes 5 6,20
Cirurgias prévias abdominais ou pélvicas 69 86,25
Cirurgias prévias para investigação e/ou tratamento da doença 21 26,25

*Ambulatório de dor pélvica crônica do Hospital das Clínicas - Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares/Universidade Federal de Goiás.

A análise dos retratos resultou na formação de oito grupos principais: sentimentos negativos (37,50%); instrumentos lesivos (33,75%); formas geométricas (25%); partes do corpo (16,25%); rabiscos e/ou amorfos (13,75%); pessoas e cenas (10%); monstros (8,75%) e sorrisos (7,50%). A grande maioria das pacientes (91,25%) usou poucas cores e 63,70% usaram cores frias e 36,30%, cores quentes; 46,20% usaram a cor azul, 32,50% usaram a cor vermelha e 32,50% fizeram uso da cor preta.

A análise dos nomes descritos pelas participantes para suas dores permitiu a disposição de oito grupos: sintomas ou características da dor (20%); miscelânea (17,50%); sentimento ruim (12,50%); desabafo (12,50%); fundo religioso (11,25%); percepções ruins (11,25%); chata (8,75%) e xingamentos (6,25%).

Quanto às crenças e percepções em relação à dor, 25% das pacientes relataram no inquérito que ninguém poderia ajudar ou nada poderia ser feito para reduzir sua dor; 32,50% delas não poderiam fazer nada para diminuir a própria dor. A maioria (62,50%) acreditava que somente os médicos e/ou procedimentos médicos poderiam amenizar a sua dor. Além disso, 81% responderam que houve algum momento em suas vidas que foi igual ou pior do que a dor, sendo grande parte (48%) representada pela perda de algum familiar, como pai e/ou mãe.

Cada um dos oito grupos formados pela categorização dos RD foi ilustrado por meio da seleção de um retrato representativo, acompanhado de uma breve descrição interpretativa e das características das participantes que os criaram.

  1. Sentimentos negativos: contabilizando 30 retratos, essa foi a categoria mais prevalente, representada por imagens de solidão, coração machucado, grito, escuridão, pessoas chorando e de lágrimas, sendo essas as mais frequentes. A figura 1.A é a representação feita por uma paciente de 35 anos, com EAV=8 e duração de oito anos. Nota-se que há uso de poucas cores, sendo elas, em geral, cores frias. A participante caracterizou seu próprio desenho como "Isolamento e oscilação do humor. Vida passando e você estagnada".

    Figura 1 Desenhos livres representativos das categorias dos retratos da dor. Parte IA = sentimentos negativos; B = instrumentos lesivos; C = formas geométricas; D = partes do corpo; E = pessoas e cenas. 

  2. Instrumentos lesivos: contabilizando 27 retratos, representados por faca, rasgo, queimando, peso e/ou lancetas, sendo essas as mais prevalentes. A figura 1.B expõe o desenho feito por uma mulher de 26 anos, com EAV=10 e duração de três anos. Há uso de poucas cores e predominância de cor quente (vermelho). O desenho foi descrito "como se fosse uma faca cortando por dentro e por fora. E sinto sangue caindo".

  3. Formas geométricas: 20 retratos representados por desenhos de quadrados, triângulos, espirais e de círculos, sendo essas as mais prevalentes. A figura 1.C foi feita por uma paciente de 32 anos, com EAV=10 e duração de 20 anos. Fez uso de poucas cores e com predominância de cor quente, vermelha. Durante o inquérito, a paciente nomeou a sua dor como "infame".

  4. Partes do corpo: esta categoria contou com 13 retratos com imagens de olhos, pelves, barrigas, úteros, pernas, corações e/ou de cabeças, sendo essas as mais prevalentes. Na figura 1.D observa-se a representação de um útero sendo lesionado com o emprego de uma agulha e um martelo em representação à dor em fisgada e em peso, respectivamente. A participante de 40 anos, com EAV=3 e duração de 8 anos, diz que "é como eu sinto em meu corpo". Utilizou-se de muitas cores com predominância de cores quentes.

  5. Pessoas e cenas: contabilizando oito retratos, representada por imagens de cenas e pessoas, sendo essas mais prevalentes. Na figura 1.E, por exemplo, uma mulher de 45 anos com EAV=5 e duração de 17 anos representou sua dor como "pessoa em cima de mim". Usou poucas cores com predomínio de cores frias, mas com uso de cores quentes nos pontos dolorosos.

  6. Rabiscos e/ou amorfos: contabilizando 11 retratos, retratada, principalmente, as imagens de rabiscos. A figura 2.A mostra a representação de uma paciente de 40 anos com EAV=10 que apresenta DPC há 27 anos. Ela empregou muitas cores com predomínio de cores quentes, de forma impulsiva e forte, evidenciada pela quebra do giz de cera vermelho. Durante o inquérito, a paciente nomeou a sua dor como "Decrescente".

    Figura 2 Desenhos livres representativos das categorias dos retratos da dor, parte IIA = rabiscos e/ou amorfos; B = monstro; C = sorrisos. 

  7. Monstros: sete retratos. A figura 2.B representa a dor de uma paciente de 40 anos, EAV=10 e 19 anos de duração. Ela fez uso de muitas cores com predomínio de cores quentes. Durante o inquérito, a paciente nomeou a sua dor como "Macumba".

  8. Sorrisos: seis retratos. Na figura 2.C, a título de exemplo, participante de 37 anos com EAV=5 e duração de seis anos desenhou três pessoas sorrindo. Dispôs-se de poucas cores, com predomínio das cores frias. Durante o inquérito, a paciente se dirigiu à sua dor como "dia a dia".

DISCUSSÃO

As características sociodemográficas das pacientes deste estudo são semelhantes à de publicação anterior do mesmo serviço13. Entretanto, os antecedentes de violência física foram mais prevalentes nesta amostra (35%) comparados ao artigo citado13 (15,80%). O mesmo ocorreu com os antecedentes de violência sexual (28,75% versus 11%, respectivamente). Isso pode ser explicado, provavelmente, por diferenças na técnica de coleta e número de entrevistadores, tipo de estudo e/ou por ser uma amostra diferente. Esses resultados têm sido associados com DPC na literatura21 e podem ter impacto nas percepções e crenças da paciente.

Ao desenhar figuras que remetem a sentimentos negativos, as pacientes empregaram as emoções como ferramenta para expressar suas dores. A percepção que se tem é a de que nessas pacientes a DPC está associada a quadros emocionais com exteriorização por meio de sentimentos ruins, de desesperança, de catastrofização e de abandono à própria sorte como observa-se na figura 1.A.

Já na categoria de instrumentos lesivos, percebe-se o uso de experiências e sensações ruins antigas como comparativo para a DPC. Nesses retratos, observam-se objetos passíveis de provocar alguma lesão ou sensação ruim que, muitas vezes, guardam relação direta com o caráter da DPC em questão. Loduca et al.14 descreveram esse tipo de RD como objetos que podem expressar mal-estar físico. Na figura 1.B, por exemplo, a cor quente sugere sofrimento intenso e calor no gotejamento de sangue desenhado e na representação escrita pela paciente.

As formas geométricas foram usadas principalmente para representar um comportamento da dor, como expansão, irradiação e/ou localização. Além disso, como relatado por Loduca et al.14, pode ilustrar a ideia de ciclo vicioso (dor-estresse-dor). Na figura 1.C, os círculos concêntricos podem exteriorizar o comportamento de sua DPC como sendo uma dor que parte de um epicentro bem localizado e se espalha de forma latejante e projeta-se pelo corpo, ou até mesmo além dele.

O ato de desenhar partes do corpo foi entendido como a tentativa de justificar, de forma biológica, o que o corpo tem expressado. É, portanto, a exteriorização de sua DPC em dois núcleos a partir de duas partes, psicológica e corporal. Além disso, observa-se a associação com instrumentos lesivos e sentimentos negativos (lágrimas). Nota-se que a imagem biológica retratada na figura 1.C pode indicar sua imagem facial e emocional. O caso desta participante ilustra bem que a utilização apenas da EAV não alcança a dimensão real do sofrimento da paciente.

Ao retratar pessoas e cenas, as pacientes expressaram tanto as características da dor, como os estados emocionais. Na figura 1.E, nota-se que a dor da paciente está bem direcionada à característica de sua integridade psicológica, com perda de autonomia, dando ideia de carregar um peso extra, que não seria seu, corporal e relacional. Loduca et al.14 também descreveram cenas como RD significativos, ilustrados por algo externo, influenciando negativamente a autonomia da pessoa.

Rabiscos e/ou amorfos podem significar tanto a subjetividade em interpretar a própria dor, como a força e dificuldade em conviver com algo que tem influência em sua vida. A figura 2.A, bem como a forma impulsiva pela qual ela foi feita podem sugerir raiva de alguém, de si mesma ou do destino, por seu sofrimento intenso e duradouro. Além disso, o termo "decrescente" é incoerente com o quadro clínico e com o RD, o que pode significar redução progressiva de sua resiliência.

Os retratos de monstros podem representar a dor como algo desconhecido, aterrorizante e inexplicável, refletindo o sofrimento e medo em conviver diariamente com a DPC. A título de exemplo, o retrato da figura 2.B associado ao nome "macumba" pode simbolizar maldade, medo e perda de autonomia.

Já os sorrisos, por sua vez, sugerem uma forma eficaz de enfrentar, esconder e/ou mesmo reduzir a intensidade da dor, o que pode significar resiliência. Esses achados também foram observados por Custódio et al.19 ao estudar a dor de crianças com anemia falciforme. A figura 2.C, por exemplo, foi interpretada como as fases em que a paciente vem enfrentando a DPC nos últimos anos.

De acordo com Goethe20, as cores frias, descritas originalmente como cores "menos", estão diretamente relacionadas a sentimentos negativos como inquietude, ansiedade e frio, o que corrobora com a maior prevalência (63,7%) desse espectro de cores neste estudo, especialmente nos desenhos do grupo "sentimentos negativos". Assim, os desenhos desse grupo, do grupo "monstros" e alguns do grupo "pessoas e cenas" que demonstravam sensações pessimistas, bem como o grande uso de cores frias podem estar relacionados a uma resposta menor ao tratamento e a pior prognóstico. Tal fenômeno, encontrado na literatura como catastrofização da dor, bem como suas consequências negativas para o prognóstico das pacientes com DPC foram relatadas por coorte prospectiva22, e sua relação com maior intensidade de DPC e pior QV foram enfatizadas por Sewell et al.5. Em diferentes contextos médicos, pessoas otimistas têm melhor QV em comparação com pessoas com os níveis de otimismo baixo ou pessoas pessimistas. O otimismo pode inclusive proporcionar menor sensibilidade à dor e melhor adaptação à dor crônica23.

Adicionalmente, Wiech24 confirma que o conceito de dor, como uma experiência construída ativamente, é determinado pelas expectativas e crenças. A demonstração de crenças negativas e a falta de recursos de enfrentamento pelas participantes deste estudo são evidentes nos desenhos e nos inquéritos, já que mais de 60% delas depositaram suas esperanças apenas em procedimentos médicos e 25% negaram soluções para suas dores. Tais fatos sugerem grande passividade no enfrentamento da dor. A participação ativa das pacientes contribui para a efetividade do tratamento, como pontuado por Brünahl et al.25,26 e por Alappattu e Bishop27, que evidenciaram a presença de fatores psicossociais e psiquiátricos clinicamente relevantes entre pacientes com DPC e encorajam a pesquisa de psicopatologias entre elas.

Vale ressaltar que a pesquisa moderna sobre a dor ainda está começando a destrinchar os detalhes fisiopatológicos do domínio afetivo da dor24. Esse fato, associado à variabilidade das características desse domínio de paciente para paciente5,15 e ao desconhecimento, por parte dos clínicos, das poucas ferramentas adaptadas para uso na língua portuguesa28 pode contribuir para o subdiagnóstico das vertentes psicológicas da DPC entre as mulheres brasileiras. A desconexão entre a EAV=3 e o desenho da figura 1.D neste estudo ilustra bem isso. Esse é um fator limitante da ação do médico, que precisa entender as nuances da visão das pacientes sobre sua morbidade, reconhecendo o papel ativo dessas na sua melhora clínica, bem como promover o tratamento interdisciplinar29.

Este estudo, através do RD, pode favorecer a compreensão das crenças e percepções das pacientes sobre a sua dor, o que pode ampliar as possibilidades de intervenção. A pesquisa desses fatores pode oferecer retorno terapêutico para as pacientes, pois outros autores afirmam que as crenças e expectativas negativas podem ser modificadas por meio do aprendizado24,30. Isso abre espaço para abordagens interdisciplinares e multimodais a fim de promover estratégias de enfrentamento e reduzir a catastrofização da dor22,26,31,32. Segundo Neubern33, o terapeuta tem função de desconstruir tais crenças consideradas inadequadas e de compreender a dor como um processo subjetivo ligado ao sujeito e ao seu mundo social. A importância desse processo é, ainda, reforçada pela falta de benefício do tratamento laparoscópico sobre o clínico e psicoterápico, como relatado por de Deus et al.13. Apesar da escassez de estudos controlados sobre a eficácia da psicoterapia na DPC, vários autores reforçam sua importância, especialmente devido à sua atuação sobre variáveis psicossociais7,22,26,27,30,32, o que aumenta a relevância do presente estudo.

Evidências recentes têm destacado a avaliação da dor no contexto social amplo. Pesquisas em neurociências observaram a interconexão entre as experiências físicas e sociais da dor34. A resiliência e a vulnerabilidade foram destacadas por Alschuler, Kratz e Ehde35 como fatores impactantes na percepção da dor crônica, especialmente daquelas mais focadas psicossocialmente. A capacidade de resiliência pode ser inferida através do RD. Por meio deles foram observados estados emocionais mais positivos ou negativos, bem como a presença ou não de vínculos sociais e familiares significativos. Ainda, intervenções ativas baseadas na resiliência e a própria relação médico-paciente com foco do cuidado centrado no paciente podem ser recursos para incrementar a resiliência das mulheres com DPC36,37.

O presente artigo possui limitações intrínsecas ao método. A coleta de dados envolveu uma abordagem subjetiva, algumas pacientes demonstraram dificuldade e/ou resistência em representar graficamente sua dor. Isso pode ser resultado da abordagem mais sintética e objetiva prestada por outros serviços e profissionais, bem como pela promoção de uma visão mais cética das pacientes quanto ao componente psicossocial da sua dor. Além disso, trata-se de um estudo transversal descritivo, não podendo garantir relação causal nem generalização dos resultados, mas abre espaço para novos estudos prospectivos e analíticos sobre o tema.

CONCLUSÃO

Mulheres com DPC retrataram sua dor de modo afetivo por meio de sentimentos negativos, instrumentos lesivos, formas geométricas, partes do corpo, rabiscos e/ou amorfos, pessoas e cenas, monstros e sorrisos. Elas usaram poucas cores e cores frias, além de nomearem sua dor com carga emocional. Além disso, consideraram-se incapazes de contribuir para a redução da sua dor e fizeram analogia entre a sua dor e perdas familiares. Tais características sugerem catastrofização da dor pelas pacientes e sua vulnerabilidade, o que pode comprometer o prognóstico.

REFERÊNCIAS

1 ACOG Committee on Practice Bulletins Gynecology. ACOG Practice Bulletin No. 51. Chronic pelvic pain. Obstet Gynecol. 2004;103(3):589-605.
2 Howard FM. The role of laparoscopy in chronic pelvic pain: promise and pitfalls. Obstet Gynecol Surv. 1993;48(6):357-87.
3 Barcelos PR, Conde DM, Deus JM, Martinez EZ. [Quality of life of women with chronic pelvic pain: a cross-sectional analytical study]. Rev Bras Ginecol Obst. 2010;32(5):247-53. Portuguese.
4 Luz RA, Rodrigues FM, Vila VS, Deus JM, Conde DM. Qualidade de vida de mulheres com dor pélvica crônica. Rev Eletr Enf. 2015;17(3):1-7.
5 Sewell M, Churilov L, Mooney S, Ma T, Maher P, Grover SR. Chronic pelvic pain - pain catastrophizing, pelvic pain and quality of life. Scand J Pain. 2018;18(3):441-8.
6 Da Luz RA, de Deus JM, Conde DM. Quality of life and associated factors in Brazilian women with chronic pelvic pain. J Pain Res. 2018;11:1367-74.
7 Ahangari A. Prevalence of chronic pelvic pain among women: an updated review. Pain Physician. 2014;17(2):E141-7.
8 Silva GP, Nascimento AL, Michelazzo D, Alves Junior FF, Rocha MG, Silva JC, et al. High prevalence of chronic pelvic pain in women in Ribeirão Preto, Brazil and direct association with abdominal surgery. Clinics. 2011;66(8):1307-12.
9 Coelho LS, Brito LM, Chein MB, Mascarenhas TS, Costa JP, Nogueira AA, et al. Prevalence and conditions associated with chronic pelvic pain in women from São Luís, Brazil. Braz J Med Biol Res. 2014;47(9):818-25.
10 Jarrell JF, Vilos GA, Allaire C, Burgess S, Fortin C, Gerwin R, et al. Consensus guidelines for the management of chronic pelvic pain. J Obstet Gynaecol Can. 2005;27(9):869-910.
11 Yosef A, Allaire C, Williams C, Ahmed AG, Al-Hussaini T, Abdellah MS, et al. Multifactorial contributors to the severity of chronic pelvic pain in women. Am J Obstet Gynecol. 2016;215(6):760.e1-760.e14.
12 Howard FM. Chronic pelvic pain. Obstet Gynecol. 2003;101(3):594-611.
13 Deus JM, Santos AF, Bosquetti RB, Pofhal L, Alves Neto O. Analysis of 230 women with chronic pelvic pain assisted at a public hospital. Rev Dor. 2014;15(3):191-7.
14 Loduca A, Müller BM, Amaral R, Souza AC, Focosi AS, Samuelian C, et al. Chronic pain portrait: pain perception through the eyes of sufferers. Rev Dor. 2014;15(1):30-5.
15 Loduca A, Samuelian C. Avaliação psicológica: do convívio com dores crônicas à adesão ao tratamento na clínica de dor. In: Alves Neto O. Dor, princípios e prática. 1ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora; 2009. 382-97p.
16 Courtney CA, O'Hearn MA, Franck CC. Frida Kahlo: portrait of chronic pain. Phys Ther. 2017;97(1):90-6.
17 Elliot AJ, Maier MA. Color psychology: effects of perceiving color on psychological functioning in humans. Annu Rev Psychol. 2014;65(1):95-120.
18 Laurence B. Análise de conteúdo, 1ª ed. Lisboa: Edições 70 - Brasil; 2004. 20p.
19 Custódio LL, Leitão IM, Gomes IL, Mendes LC. Drawing pain for children with sickle cell anemia: the pain that hurts, really hurts. Rev Dor. 2017;18(4):321-6.
20 Goethe JW. Theory of Colours. 1st ed. London: John Murray; 1840.
21 As-Sanie S, Clevenger LA, Geisser ME, Williams DA, Roth RS. History of abuse and its relationship to pain experience and depression in women with chronic pelvic pain. Am J Obstet Gynecol. 2014;210(4):317.e1-317.e8.
22 Allaire C, Williams C, Bodmer-Roy S, Zhu S, Arion K, Ambacher K, et al. Chronic pelvic pain in an interdisciplinary setting: 1-year prospective cohort. Am J Obstet Gynecol. 2018;218(1):114.e1-114.e12.
23 Kreis S, Molto A, Bailly F, Dadoun S, Fabre S, Rein C, et al. Relationship between optimism and quality of life in patients with two chronic rheumatic diseases: axial spondyloarthritis and chronic low back pain: a cross sectional study of 288 patients. Health Qual Life Outcomes. 2015;13:78.
24 Wiech K. Deconstructing the sensation of pain: The influence of cognitive processes on pain perception. Science. 2016;354(6312):584-7.
25 Brünahl CA, Dybowski C, Albrecht R, Gregorzik S, Löwe B. Psychiatric comorbidity in patients with chronic pelvic pain syndrome (CPPS). J Psychosom Res. 2016;85:58.
26 Brünahl C, Dybowski C, Albrecht R, Riegel B, Höink J, Fisch M, et al. Mental disorders in patients with chronic pelvic pain syndrome (CPPS). J Psychosom Res. 2017;98:19-26.
27 Alappattu MJ, Bishop MD. Psychological factors in chronic pelvic pain in women: relevance and application of the fear-avoidance model of pain. Phys Ther. 2011;91(10):1542-50.
28 Silva FU, Alcântara MA, Barroso OL. Crenças em relação às condições crônicas de saúde: uma revisão crítica de instrumentos adaptados para a língua portuguesa. Fisioter Mov. 2010;23(4):651-62.
29 Porto CC, Branco RFGR, Cantarelli GCF, Oliveira AM. Relação Médico-Paciente. In: Porto CC, Porto AL. Semiologia Médica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2014. 21-37p.
30 Dybowski C, Löwe B, Albrecht R, Brünahl CA. Pain perception and the anticipation of stigmatization due to mental illness - associations within a sample of patients with chronic pelvic pain syndrome (CPPS). J Psychosom Res. 2017;97:146-7.
31 Twiddy H, Bradshaw A, Chawla R, Johnson S, Lane N. Female chronic pelvic pain: the journey to diagnosis and beyond. Pain Manag. 2017;7(3):155-9.
32 Picard-Destelan M, Rigaud J, Riant T, Labat JJ. [What type of psychotherapy in the management of chronic pelvic and perineal pain?] Prog Urol. 2010;20(12):1111-5. French.
33 Neubern MS. Psicoterapia, dor & complexidade: construindo o contexto terapêutico. Psicol Teor Pesq. 2010;26(3):515-23.
34 Sturgeon JA, Zautra AJ. Social pain and physical pain: shared paths to resilience. Pain Manag. 2016;6(1):63-74.
35 Alschuler KN, Kratz AL, Ehde DM. Resilience and vulnerability in individuals with chronic pain and physical disability. Rehabil Psychol. 2016;61(1):7-18.
36 Hassett AL, Finan PH. The role of resilience in the clinical management of chronic pain. Curr Pain Headache Rep. 2016;20(39):1-9.
37 Náfrádi L, Kostova Z, Nakamoto K, Schulz PJ. The doctor-patient relationship and patient resilience in chronic pain: a qualitative approach to patients' perspectives. Chronic Illn. 2018:14(4)256-70.