versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.4 São Paulo abr. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140047
Na doença coronariana estável, a indicação de procedimentos de revascularização a partir da detecção anatômica de lesões coronárias estenóticas, independentemente do quadro clínico, tem sido denominada reflexo oculoestenótico. Essa expressão foi cunhada de forma irônica por Topol E. e Nissen S., no intuito de alertar sobre o fato de que nem toda obstrução necessita ser abordada invasivamente1. Pelo menos do ponto de vista acadêmico, esse reflexo parece superado, sendo hoje considerado uma atitude médica exagerada (overtreatment)2. No entanto, permanece a crença de que a demonstração de isquemia miocárdica por métodos complementares é indicativa da necessidade de revascularização, ao que denominaremos reflexo oculoisquêmico.
Imaginemos um indivíduo assintomático, submetido a cintilografia miocárdica de rotina, a qual demonstra isquemia em dois territórios arteriais. Baseado nesse resultado, o paciente é submetido a coronariografia, que identifica estenoses de 75% em terço médio da descendente anterior e em terço proximal da coronária direta. Embora assintomático, com boa função ventricular, o médico indica implante de stent farmacológico em ambas as lesões. A justificativa é a presença de isquemia miocárdica identificada em ambos os territórios vasculares.
A hipótese do benefício da revascularização em casos desse tipo é embasada na associação entre presença/extensão da isquemia miocárdica e pior prognóstico, o que caracteriza isquemia como marcador de risco3,4. No entanto, a ideia de que intervir em um marcador de risco necessariamente garantirá benefício clínico é um exemplo de heurística de normalização5. Esse erro cognitivo ocorre quando o médico acredita que a simples correção de parâmetros (isquemia) necessariamente implicará benefício para o paciente. Nesse cenário, para que uma intervenção coronariana se faça indicada, seu benefício clínico precisa ser demonstrado por estudos que comprovem interação entre presença de isquemia e eficácia da revascularização miocárdica. No presente artigo, revisaremos as evidências científicas que testaram o reflexo oculoisquêmico pela análise de interação em ensaios clínicos randomizados.
Na doença coronariana estável, ensaios clínicos randomizados demonstram, via de regra, que revascularização miocárdica não previne eventos cardiovasculares maiores, tais como morte ou infarto do miocárdio6-8. Faz-se necessário avaliar o que dizem esses ensaios clínicos a respeito de pacientes com isquemia miocárdica. Ou seja, se submetidos à revascularização miocárdica, portadores de isquemia teriam benefício adicional no que tange a prevenção de eventos cardiovasculares maiores?
O mais citado ensaio clínico nesse cenário é o COURAGE7, o qual comparou de forma randomizada e por intenção de tratar a conduta inicial de intervenção coronariana com stent versus controle, e ambos os grupos foram submetidos a tratamento clínico otimizado. Esse estudo foi negativo quanto ao seu objetivo primário, evidenciando idêntica incidência de morte ou infarto do miocárdio nos dois grupos. Sendo assim, a única razão para realizar intervenção coronariana percutânea na doença estável é o controle de sintomas clinicamente relevantes.
Quanto ao paradigma de que devemos revascularizar se isquemia miocárdica for demonstrada, torna-se importante avaliar se a conclusão do estudo COURAGE possui validade para pacientes com isquemia em exames complementares. Dentre os pacientes submetidos a cintilografia miocárdica no COURAGE (61% da amostra do estudo), a maioria representada por 89% tinha isquemia, e em 67% a isquemia se fazia presente em múltiplos territórios coronarianos. Como a seleção de pacientes para realizar cintilografia não foi baseada em gravidade, com base nos dados desse subgrupo que realizou o exame é possível inferir que os critérios de inclusão do COURAGE foram suficientes para selecionar pacientes com carga isquêmica significativa.
Complementando essa análise, recente subestudo do COURAGE testou a interação estatística entre isquemia moderadaacentuada e o efeito da intervenção coronariana9. Isquemia moderada-severa foi definida como aquela presente em pelo menos três das seis paredes ventriculares (anterior, lateral, inferior, posterior, septal e apical). De acordo com essa classificação, 30% dos pacientes possuíam isquemia moderada-severa. Nessa análise, o tratamento intervencionista não beneficiou nem o grupo sem isquemia moderada-acentuada (19% versus 19% de morte/infarto, respectivamente), nem o grupo com isquemia moderada-acentuada (24% versus 21%, respectivamente). Estatisticamente, não houve interação (p = 0,65) entre a presença de isquemia e o efeito da revascularização miocárdica percutânea.
Vale salientar que esse mesmo subestudo foi publicado no Circulation em 200810. Naquela publicação, os autores demonstraram que a presença de isquemia residual é associada a pior prognóstico (marcador de risco). A partir desse dado, houve a sugestão de que esses pacientes deveriam ser revascularizados, representando mais um exemplo de heurística de normalização. Além disso, a associação entre isquemia e desfecho perdeu significância estatística na análise multivariada, dado que não foi valorizado na conclusão do artigo. Dessa forma, a atual publicação do subestudo nuclear do COURAGE9, citada no parágrafo acima, representa a correção daquela equivocada publicação10.
O estudo BARI-2D comparou de forma randomizada a estratégia de revascularização versus não revascularização em pacientes diabéticos com tratamento clínico otimizado6. A revascularização poderia ser percutânea ou cirúrgica, adepender da decisão médica. À semelhança do COURAGE, o estudo BARI-2D não demonstrou redução de desfechos maiores (morte, infarto e acidente vascular cerebral) com a estratégia de revascularização.
Recentemente, foi publicado o subestudo do BARI 2D que testou interação entre isquemia e benefício da revascularização11. Nesse estudo, 1.505 pacientes (64% da amostra) foram submetidos a cintilografia miocárdica. Foi calculado o percentual de miocárdio isquêmico de acordo com análise de 17 segmentos. Não houve interação entre o percentual de miocárdio isquêmico e efeito do tratamento nos eventos cardiovasculares (p = 0,44). Ou seja, independentemente da carga isquêmica, não há redução de desfechos maiores com a revascularização.
O estudo STICH randomizou 1.212 pacientes com miocardiopatia isquêmica e fração de ejeção do ventrículo esquerdo ≤ 35% para revascularização cirúrgica ou tratamento clínico12. Sendo assim, o STICH testa a mesma hipótese do COURAGE e do BARI-2D, porém em uma população diferente, caracterizada por pacientes com grave disfunção sistólica do ventrículo esquerdo. Além disso, o tratamento de revascularização foi necessariamente cirúrgico, diferente dos demais trabalhos. O STICH não demonstrou redução de mortalidade com o tratamento cirúrgico, expandindo a validade externa do aprendizado proveniente do COURAGE e BARI-2D.
Em relação à interação com isquemia miocárdica, no presente ano foi publicado um subestudo com 399 pacientes do STICH que tinham teste isquêmico realizado (ecoestresse ou cintilografia). Esse trabalho demonstrou ausência de benefício da revascularização, independentemente da presença de isquemia (P da interação = 0,64)13.
O estudo FAME-II incluiu pacientes com lesões coronarianas associadas a Fractional Flow Reserve (FFR) < 0,80, ou seja, funcionalmente significativas. Esses pacientes foram randomizados para intervenção coronarianas versus controle, e todos os dois grupos receberam tratamento clínico otimizado8. A incidência de morte ou infarto foi idêntica nos dois grupos, resultado semelhante ao obtido pelo COURAGE5 ou BARI-2D4. Diferente dos ensaios clínico prévios, o FAME-II incluiu necessidade de revascularização como parte do desfecho composto primário, o que sozinho foi responsável pelo benefício obtido nesse desfecho. Sendo assim, essa é mais uma evidência de que a presença de isquemia em exame complementar (FFR) não garante redução de desfechos clínicos maiores.
Dentro de alguns anos, saberemos o resultado do estudo ISCHEMIA (http://clinicaltrials.gov/show/NCT01471522). Esse é um ensaio clínico nos moldes do COURAGE, com as diferenças de que (1) são incluídos apenas pacientes com isquemia moderada ou severa; (2) a revascularização pode ser cirúrgica ou percutânea, a critério clínico. Considerando a grande expectativa quanto ao resultado desse estudo, como exercício científico, podemos tentar predizer seu resultado. Seguindo um raciocínio bayesiano, considerando a consistente ausência de interação entre carga isquêmica e benefício do tratamento de revascularização, a probabilidade a priori de que esse estudo venha a demonstrar benefício em relação ao desfecho primário de morte ou infarto é pequena. Em outras palavras, se isquemia moderada-severa não é o determinante do benefício de acordo com a totalidade das evidências, não seria a seleção de pacientes com esse grau de isquemia que traria um resultado benéfico da intervenção.
Por outro lado, um resultado positivo se tornará mais provável caso o critério de inclusão do ISCHEMIA resulte em uma amostra com doença de gravidade extrema (triarteriais), aliada a uma predominância da estratégia cirúrgica de revascularização. Caso isso ocorra, estaremos em outro cenário: pacientes triarteriais, recebendo tratamento cirúrgico. Considerando o recente resultado do ensaio clínico FREEDOM14 e SYNTAX15, cirurgia é mais eficaz que o tratamento percutâneo em pacientes predominantemente triarteriais, em relação a desfechos clínicos maiores. Isso respalda a possibilidade de que uma predominância de tratamento cirúrgico possa trazer um resultado positivo a esse estudo.
Um resultado positivo do ISCHEMIA não deverá, no entanto, ser interpretado como evidência que valide o reflexo oculoisquêmico. Para que o ISCHEMIA testasse essa hipótese deveriam existir pacientes com e sem isquemia significativa, possibilitando a análise de interação.
A expressão fator de risco denota uma variável que causa incremento no risco do paciente. Diferentemente, um marcador de risco se associa positivamente com risco, porém não é nessa variável que está a origem do risco. Não há dúvida de que isquemia miocárdica faz parte da fisiopatologia da doença coronariana e serve de mediador causal de desfechos clínicos, tais como arritmia ou disfunção ventricular. No entanto, o que devemos discutir é se a detecção de isquemia em exames complementares deve ser relacionada prioritariamente ao conceito de fator ou marcador de risco.
A ideia de que isquemia miocárdica crônica deve ser tratada com procedimentos invasivos decorre do erro cognitivo de concluir causalidade a partir de uma simples associação. A presença de causalidade depende de uma série de critérios científicos, organizados por Bredford Hill16. Analisaremos os três principais critérios, como forma de avaliar se isquemia é fator de risco cardiovascular: plausibilidade, associação independente e reversibilidade.
Eventos coronarianos agudos são causados por instabilidade da placa aterosclerótica. Sabe-se que isquemia miocárdica é determinada pelo grau de obstrução coronariana e não do quanto vulnerável à instabilidade é a placa. Estudos angiográficos demonstram que boa parte dos infartos decorrem de placas não obstrutivas, que não causariam isquemia17. Sendo assim, há uma dissociação fisiopatológica entre a presença de isquemia e risco de instabilização de placa, tornando pouco plausível que isquemia esteja diretamente associada a incidência de eventos coronarianos maiores. Consideremos um paciente com múltiplas placas não obstrutivas (< 50% de estenose) no leito coronariano, acompanhadas de uma única placa obstrutiva (> 70% de estenose) que cause isquemia. Um eventual implante de stent nessa placa obstrutiva reduzirá a isquemia, porém o paciente continuará vulnerável ao infarto decorrente das outras placas que não causam isquemia.
Um mais antigo subestudo do COURAGE demonstrou que a presença de isquemia residual na cintilografia guarda associação com risco de eventos cardiovasculares. No entanto, ao ajustar para variáveis de confusão, essa associação perdeu significância estatística (p = 0,26)10. A ausência de associação independente entre isquemia residual e risco cardiovascular sugere que essa relação é mediada por outras variáveis de risco que são simultaneamente associadas ao preditor e ao desfecho, ao que se chama de variáveis de confusão. Isso é mais uma sugestão de que isquemia não é o principal fator de risco da determinação do prognóstico.
Por fim, reversibilidade é o critério mais importante de causalidade. Esse ocorre quando o tratamento da condição promove redução de risco do paciente. Por exemplo, tratamento do LDL-colesterol promove redução de infarto; redução de pressão arterial promove redução de acidente vascular cerebral. Sendo assim, elevação de colesterol e pressão arterial são de fato fatores de risco para eventos cardiovasculares. Por outro lado, como vimos acima, o tratamento da isquemia com procedimentos invasivos não reduz risco de infarto ou morte cardiovascular.
As evidências até o momento apontam, portanto, que, na predição de evento aterotrombótico coronariano, isquemia miocárdica estável deva ser interpretada como marcador de risco e não como fator de risco a ser tratado com procedimentos de revascularização.
Diante do exposto, o verdadeiro norteador da necessidade de revascularização deve ser o quadro clínico. Mais do que exames que comprovem isquemia, o quadro clínico representa a verdadeira avaliação funcional do paciente. Se a isquemia está interferindo negativamente no cotidiano do indivíduo, devido à presença de sintomas, a revascularização pode trazer benefício. Esse benefício está comprovado pelo estudo COURAGE, que demonstrou melhor controle de sintomas quando o paciente é revascularizado7.
Estatísticas americanas mostram que apenas metade das intervenções coronarianas percutâneas eletivas são classificadas como apropriadas18, e a maioria dos casos inapropriados decorre da realização de procedimentos em pacientes assintomáticos. Isso parece ser mediado em grande parte pelo fenômeno que denominamos reflexo oculoisquêmico. Esse reflexo deve ser corrigido por uma prática médica centrada no paciente e embasada em evidências.
Ademais, em uma era que devemos evitar o desperdício de recursos com procedimentos fúteis, as melhores evidências disponíveis suportam a ideia de que para pacientes com isquemia assintomática, menos pode ser mais.