versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.9 Rio de Janeiro set. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017229.14582017
O suicídio é um grave problema de saúde pública, atinge todas as faixas etárias e é ocasionado por aspectos psicológicos, sociais, econômicos, biológicos e culturais1-3. Na infância, apesar de apresentar estatísticas baixas no mundo quando comparadas a outras faixas etárias, esse número tem aumentado e chama atenção por ser um evento trágico4,5 que rompe com o paradigma de sonhos e alegrias que deveriam fazer parte da vida dessas crianças. Além de acarretar problemas na economia do país, visto a redução de futuros adultos jovens economicamente ativos.
Pesquisadores3,4 sugerem que a limitada aptidão das crianças e pré-adolescentes para a resolução de problemas pode aumentar o risco de suicídio devido à falta de estratégias adaptativas em situações de estresse. Em geral, nessa etapa de transição do final da infância e início da adolescência ocorrem intensas mudanças internas e externas causando um impacto sobre a capacidade emocional, física e mental5.
Estudo epidemiológico conduzido em 101 países, no período entre 2000 e 2009, constatou que 14,7% dos suicídios ocorreram em crianças na faixa etária entre 10 e 14 anos6. Destes, 74% morreram por enforcamento e 13% por arma de fogo6.
Na Noruega7, uma pesquisa revelou que o suicídio corresponde a 61% das mortes por causas externas em crianças com idade entre 10 e 14 anos. Na Austrália, o suicídio corresponde à 2ª causa de morte (27,2%) em crianças com idade entre 10 e 14 anos8.
No Brasil, dados do Mapa da Violência, organizado pelo Ministério da Saúde, mostram que, de 2002 a 2012, o número de suicídios entre crianças e adolescentes de 10 a 14 anos aumentou 40%9. O Mapa da Violência9 também mostrou que as prevalências de suicídio em crianças e adolescentes no Brasil evoluíram, entre os anos 2000 e 2010, de 0,9 a 1,1 por 100.000 crianças e adolescentes, situando o país na 60ª posição de um total de 98 analisados, valores baixos quando comparados aos de outras nações.
Em 2004, estudo conduzido no Piauí encontrou 30,9% de suicídio em jovens na faixa etária de 10 a 19 anos10. Em 2010, em Alagoas, registrou-se que 26% dos jovens (10 a 19 anos) foram internados por tentativa de suicídio em um hospital de referência do estado11. Esses dados são preocupantes e alarmantes, sobretudo pela dificuldade de notificação.
Nesse cenário, existem limitações e desafios na prevalência de suicídio em crianças: subnotificação das mortes por suicídio devido à dificuldade ou erro em classificá-las como tais ou registrá-las como acidentais ou por causas indeterminadas4,7,12; a junção das estatísticas de suicídio na faixa etária de 10 a 19 anos, que compreende períodos de desenvolvimento e de acontecimentos distintos, desconsiderando que jovens efetuam o suicídio por motivos diferentes das crianças e pela ausência de notificação dos hospitais desses casos. Adicionalmente, existe o tabu em torno do suicídio, em que se acredita na crença de que a criança, devido à sua imaturidade cognitiva, não se envolve em atos suicidas4,9,13,14.
O interesse por estudar o suicídio em crianças menores de 14 anos no Brasil tem várias justificativas: (1) apesar de ser um tema relevante, tem recebido pouca atenção, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro; (2) aumento preocupante das taxas de suicídio na infância de 2,8 em 1980 para 4,1 em 2013 no país15; (3) evidência obtida por estudos internacionais de que a criança tem consciência do desejo de morrer, o que exige cuidados para promover seu bem-estar e sua saúde psíquica4,14; (4) conhecer os fatores que predispõem uma criança a efetivar o suicídio.
A partir dessa perspectiva, inúmeras questões emergem. Dentre elas, duas se destacam: quais os fatores envolvidos na efetivação do ato suicida na infância? Existe diferença nos fatores precipitantes do risco de suicídio em crianças para outras faixas etárias?
De certa forma, o equacionamento dessas questões, por meio da sistematização das evidências científicas produzidas pelas pesquisas sobre o tema, pode abrir caminhos para a construção de uma base teórico-conceitual que vislumbre a criação de programas eficazes para a prevenção ao suicídio no âmbito da escola e da atenção primária.
A partir dessa perspectiva, objetiva-se analisar a literatura específica sobre suicídio consumado em crianças com até 14 anos. Espera-se que o esclarecimento desse tema possibilite hipóteses ou pressupostos como ponto de partida para futuras intervenções no comportamento suicida na infância.
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura que busca captar, reconhecer e sintetizar a produção do conhecimento acerca de um assunto ou tema16. Esta pesquisa recobre o período de 1980 a 2016 e obedeceu às seguintes etapas metodológicas: estabelecimento da questão norteadora; seleção e obtenção de artigos (critérios de inclusão e exclusão); avaliação dos estudos pré-selecionados; discussão dos resultados e apresentação da revisão integrativa16.
Com esse propósito, em 15 de janeiro de 2017, efetuou-se um levantamento das publicações na área de saúde consultando os artigos das bases de dados Pubmed e Psycinfo, por se tratar das bases que concentram maior grau de indexação de periódicos da área de saúde, através dos descritores, que buscassem responder às questões norteadoras: Quais os fatores envolvidos na efetivação do ato suicida na infância? Existe diferença nos fatores precipitantes do risco de suicídio em crianças para outras faixas etárias? Os critérios de inclusão foram: artigos sobre suicídio consumado com indivíduos de 10 a 14 anos. Excluíram-se os artigos que: (a) se voltavam exclusivamente para ideação e tentativa de suicídio; (b) versavam sobre epidemiologia do suicídio em jovens sem apresentar distinção entre menores de 14 anos e maiores de 15 anos; (c) redigidos em outras línguas que não português, inglês e espanhol; (d) publicados anteriormente a 1980; (e) não localizados na íntegra; (f) anais de eventos, dissertações, teses e cartas ao editor.
Os descritores pesquisados foram: “risk of suicide”; “children”; “suicide”; “childhood”. Realizou-se o cruzamento entre os descritores selecionados por meio de duas estratégias de busca: na primeira cruzou-se as palavras-chave utilizando o ícone AND e na segunda os cruzamentos foram realizados por meio do ícone OR.
Nesta busca foram identificados 1.953 artigos nas bases de dados. A partir da pesquisa dos descritores no título ou resumo, foram identificados apenas 586 estudos. Destes, 430 foram excluídos por não preencherem os critérios de inclusão (Figura 1). Dos 156 estudos restantes, 123 foram eliminados por não estarem diretamente relacionados ao tema (89 eram estudos de ideação e tentativa de suicídio e 34 versavam sobre epidemiologia do suicídio de jovens de 10 a 19 anos). Para a análise final, quatro artigos não foram localizados na íntegra, obtendo-se 29 como corpus analítico (Figura 1).
Posteriormente, os artigos foram lidos na íntegra e extraídas informações para a caracterização da produção quanto ao ano de publicação, país de origem do estudo, foco central no método utilizado e ênfase nos resultados e conclusões.
Na etapa da análise das publicações, realizou-se uma adaptação da técnica de análise de conteúdo temática de Bardin17. Para a análise dos estudos percorreu-se os seguintes passos: (a) leitura de cada artigo buscando uma compreensão global; (b) identificação das ideias relacionadas aos fatores de risco para o suicídio em menores de 14 anos e as diferenças entre os fatores precipitantes nessa faixa etária quando comparados aos adolescentes; (c) classificação dessas ideias em categorias que evidenciam as singularidades e as peculiaridades dos artigos acerca do tema central e (d) elaboração de sínteses interpretativas de cada tema que articula com a visão dos fatores sobre os motivos que levam as crianças a morrem por suicídio.
As categorias foram: (1) Categorização das fontes; (2) A literatura no período de 1980 a 2016; (3) Desafio da classificação das mortes por causas externas em crianças; (4) Método do suicídio em crianças; (5) Relação entre ideação, tentativa e suicídio na infância; (6) Relações entre fatores escolares e suicídio na infância; (7) Relação entre fatores sociais e suicídio na infância; (8) Relações entre transtornos mentais e suicídio na infância.
O recorte com o qual operamos nesta revisão e que compreende a faixa etária entre 10 e 14 anos se deve à escassez de literatura específica sobre suicídio em crianças menores de 10 anos. Embora haja foco na prevenção do suicídio na adolescência na maioria dos países, muitas vezes não é levado em conta que as crianças mais novas também são capazes de se matar
Os fatores predisponentes para o suicídio de crianças entre 10 e 14 anos são discutidos e articulados em conjunto com a literatura sobre adolescência devido à escassa literatura específica sobre crianças. Contudo, buscou-se concentrar a discussão na faixa etária delimitada nesta revisão.
Observou-se que apesar da expansão da produção do conhecimento sobre suicídio de crianças, os estudos enquadram esse fenômeno dentro da faixa etária entre 10 e 19 anos, não havendo uma distinção específica entre a infância e a adolescência. Desse modo, ao delimitar o foco em estudos sobre suicídio de crianças em menores de 14 anos, verifica-se uma redução bastante significativa dessa produção, obtendo-se apenas 29 estudos (Quadro 1).
Quadro 1 Caracterização dos estudos analisados, Recife, PE, Brasil, 2017.
Estudo | Ano | País | Revista | Método |
---|---|---|---|---|
Freuchen e Grøholt33 | 2015 | Noruega | Clin Child Psychol Psychiatry | Autópsia psicológica do tipo caso-controle. |
Freuchen et al.34 | 2012 | Noruega | Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health | Autópsia psicológica do tipo caso-controle. |
Loh et al.35 | 2012 | Singapura | Archives of Suicide Research | Autópsia psicológica. |
Freuchen et al.7 | 2012 | Noruega | Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health | Autópsia psicológica do tipo caso-controle. |
Kolves e De Leo6 | 2015 | Austrália | Journal of Adolescent Health | Estudo retrospectivo. |
Soole et al.8 | 2015 | Arch Suicide Res | Estudo de revisão. | |
Coskun et al.36 | 2012 | Turquia e EUA | Archives of Suicide Research | Estudo transversal e retrospectivo. |
Bella et al.37 | 2013 | Argentina | Arch Argent Pediatr | Estudo transversal e retrospectivo. |
Kõlves e De Leo2 | 2016 | Austrália | Journal of Adolescent Health | Estudo documental |
Dervic et al.14 | 2008 | Austria | Psychiatric Clinics of North America | Revisão os fatores associados ao suicídio de crianças. |
Séguin et al.38 | 2011 | Canadá | Journal of Psychiatry | Autopsia psicológica do tipo caso-controle. |
Windfuhr24 | 2008 | Inglaterra | Journal of Child Psychology and Psychiatry | Estudo transversal e retrospectivo |
Crepeau-Hobson39 | 2010 | EUA | Archives of Suicide Research | Estudo transversal e retrospectivo |
Grøholt e Ekeberg12 | 2003 | Noruega | Nordic Journal of Psychiatry | Estudo retrospectivo de mortes por suicídio no período de 1990 a 1992. |
Beautrais27 | 2003 | Nova Zelândia | American Journal of Psychiatry | Autópsia psicológica do tipo caso-controle |
Weinberger et al.29 | 2001 | EUA | Journal of Forensic Science | Autópsia psicológica |
Beautrais26 | 2001 | Nova Zelândia | Australian and New Zealand Journal of Psychiatry | Estudo retrospectivo no período entre 1989 a 1998. |
Sourander et al.31 | 2009 | Finlândia | Arch Gen Psychiatry | Coorte |
Klomek et al.30 | 2009 | Finlândia | Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry | Coorte |
Schmidt et al.25 | 2002 | Alemanha | Journal of Forensic Science | Estudo retrospectivo no período de 1989 a 1998. |
Ag˘rıtmıs et al.28 | 2004 | Turquia | Forensic Science International | Estudo retrospectivo no período de 1996 a 2000. |
Skinner e Steven40 | 2012 | Canadá | CMAJ | Estudo retrospectivo no período de 1980 a 2008 |
Dervic et al.41 | 2006 | Áustria | Eur Child Adolesc Psychiatry | Estudo retrospectivo no período de 1970 a 2001. |
Brent et al.21 | 1999 | EUA | Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry | Autópsia psicológica do tipo caso-controle |
Brent et al.22 | 1993 | EUA | J Am Acad Child Adolesc Psychiatry | Autópsia psicológica do tipo caso-controle |
Gould et al.20 | 1996 | EUA | Arch Gen Psychiatry | Autópsia psicológica do tipo caso-controle |
Marttunen23 | 1991 | Finlândia | Archives of General Psychiatry | Autópsia psicológica nos anos de 1987 e 1988. |
Pfeiffer13 | 1997 | Psychiatric Clinics of North America | Estudo de revisão | |
Hoberman e Garfinkel18 | 1988 | EUA | Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry | Estudo retrospectivo no período de 1975 a 1985. |
Grøholt et al.19 | 1998 | Noruega | Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry | Estudo retrospectivo do tipo caso-controle |
Em termos de ano de publicação, há uma concentração de dez artigos nos anos de 2011 a 2016. Entre os países de realização das pesquisas que originaram os artigos, predominam os Estados Unidos (EUA) com sete. Não foram encontradas publicações de origem brasileira.
Sobre os desenhos metodológicos, a maioria (n = 25) apresentou abordagem retrospectiva, dos quais 15 utilizaram a autópsia psicológica. Tal abordagem busca reconstruir a história de vida das pessoas que morreram por suicídio em múltiplas fontes de informações: familiares, amigos, profissionais de saúde, prontuário médico e outros documentos importantes.
Os obstáculos que se colocam à produção de estudos sobre suicídio na infância dizem respeito à resistência de familiares em revelar o fenômeno, ainda por preconceito, ou por haver uma dificuldade em notificar tais dados, pelas ocorrências de suicídio se camuflarem sob a forma de morte acidental, como afogamento ou intoxicação.
Na data de 1980, encontrou-se apenas um estudo realizado a partir de autópsias psicológicas, visando compreender as circunstâncias e os fatores precipitantes para o suicídio em menores de 14 anos e em adolescentes de 15 a 19 anos, com enfoque nos transtornos mentais18. Na década de 1990, as investigações se ampliam e aparecem estudos de caso-controle, de prevalência e comorbidade com transtorno mental e eventos estressantes sociais13,19-23. O enfoque sobre a impulsividade do ato suicida e as diferenças entre os fatores de risco de suicídio em menores de 14 anos e adolescentes entre 15 a 19 anos começam a ser destacados nesse período.
A década de 2000 foi marcada pela ampliação expressiva de trabalhos, o que pode ser justificado pelo aumento expressivo no número de suicídios consumados na infância12,14,24-32. São pesquisas de caso-controle, coorte, desenvolvem-se estudos multicêntricos internacionais e há um rigor técnico em torno da classificação das mortes por suicídio em crianças, buscando reunir e discutir aspectos sobre bullying, depressão e suicídio.
Em 2010, surgem estudos mais específicos com a população menor de 14 anos enfatizando traços de personalidade, fatores associados ao bullying, estresse psicossocial e suas implicações psiquiátricas7,8,33-38,40. A escola e os cuidados em saúde mental passaram a integrar formas de prevenção do suicídio em crianças e destaca-se o desafio em identificar o risco de suicídio nessa população8.
Um dos desafios apontados para o suicídio de crianças é a classificação correta da morte nessa faixa etária. Na Noruega, Grøholt e Ekeberg12, ao reclassificarem a morte de crianças por suicídio no período de 1990 a 1992, concluíram que houve uma redução de 50% das mesmas. Nos EUA, 31,5% dos participantes afirmaram que não tinham evidências que justificasse a morte por suicídio, 29% narraram que a morte aconteceu devido ao histórico de jogos de asfixia e 10,9% afirmaram que a idade da criança confirma a morte acidental19.
Dessa forma, Grøholt e Ekeberg12 recomendam alguns critérios para avaliar a morte por suicídio de crianças: investigar as atividades relevantes na vida destas, como a expressão de intenção de desejo de morrer; sinais de sofrimento mental; presença de dor emocional ou física; eventos ou perdas estressantes; desespero e os meios utilizados para a morte e as circunstâncias para que não fossem salvos.
Adicionalmente, admite-se a dificuldade em identificar se a morte por enforcamento ocorreu por suicídio ou por acidente. Nesse sentido, muitas crianças assistem cenas de enforcamento em desenhos animados, em pinturas e em programas de televisão. Ressalta-se que este método não requer habilidades específicas7,12,19. Portanto, devem-se analisar as circunstâncias sociais, psicológicas e psiquiátricas envolvidas na morte das crianças para classificá-las de modo correto.
Houve predominância que variou de 48 a 90% dos casos de mortes por suicídio na infância por enforcamento, seguida de 14% a 22% por arma de fogo e, em menores proporções, 4% a 7% por envenenamento, 7% a 30% por precipitação e 2% a 4% por afogamento4,6-9,12-14,19,21,24,26,28,35,41.
Em Singapura, 90% das mortes ocorreram por precipitação e 9% por enforcamento35. Na Áustria, na década de 1990, houve o dobro de mortes por arma de fogo quando comparada às décadas de 1970 e 198021. Na Inglaterra, não foram registradas mortes por suicídios provocados por arma de fogo24. Esse estudo chama atenção para a intoxicação por álcool e antidepressivos encontrados em 9% dos casos24. Na Turquia, nos EUA e na Inglaterra, encontraram proporção significativa de 13 a 30% de mortes por envenenamento24,36.
As crianças verbalizam menos o desejo de morrer quando comparadas aos adolescentes. Estudo na Noruega constatou que 68% dos adolescentes verbalizaram seu desejo de morrer e apenas 29% das crianças haviam expressado verbalmente a ideação suicida ou escrito um bilhete que denotasse o esvaziamento das forças para viver33,34. Outro estudo na Noruega sinalizou que 40,9% haviam dado avisos verbais sobre o suicídio, expressando seu comportamento suicida para colegas e professores33.
Apesar da inexistência de dados concretos sobre ideação suicida na infância, uma vez que esse tema ainda é pouco investigado em nível mundial, os pesquisadores encontraram mudanças nos comportamentos e alguns conjuntos de sinais. Nos meses que antecederam o suicídio, as crianças tornaram-se mais caladas e quietas, evitaram sair de casa e nos dias que precederam o suicídio não foram à escola7,8,12-14.
As crianças tendem a manifestar seu desejo de morrer na semana que antecede o ato33. Estudo sobre os bilhetes suicidas deixados por menores de 14 anos reportou que 61% escreveram bilhetes nos dias e meses que antecederam o suicídio, o que sugere o desafio em identificar precocemente o comportamento suicida nessa faixa etária29.
Freuchen e Grøholt33 discorrem que os bilhetes suicidas evidenciaram a ambivalência entre a busca de forças para continuar vivendo e a decisão de dar um fim à sua vida. Destaca-se que três bilhetes foram escritos no ambiente escolar, como atividade da disciplina e, destes, dois foram corrigidos pelos professores quanto à gramática e estrutura do texto. Apesar da existência dos bilhetes manifestando explicitamente o desejo de morrer, a escola não tomou nenhuma providência quanto a entrar em contato com os pais ou encaminhar as crianças para avaliação psicológica.
Nessa linha de raciocínio, o interesse por suicídio é um sinal que não deve ser ignorado em crianças. Manifestações verbais, de modo direto ou indireto, que referem a “pensamentos de morte”, mudanças de comportamento e curiosidade pela temática da morte devem ser levadas a sério, exigindo atenção imediata8,14,18,27,33,41.
No caso da manifestação verbal, a criança, na fase final da infância e início da adolescência, pode ir diretamente ao assunto, confidenciando aos seus amigos que quer morrer ou apenas insinuando e comentando sobre seu desejo de morte com professores e, em menor frequência, com seus familiares.
Um dos desafios para a prevenção do suicídio na infância é a detecção precoce da ideação suicida. A mudança do comportamento da criança não deve passar despercebida ou ser confundida com uma fase de temperamento difícil ou retraído42. Além disso, faz-se necessário superar a ideia de que a criança não tem capacidade cognitiva para se matar.
Dados mais concretos sobre tentativa de suicídio reportam que 13,1% das crianças já haviam tentado suicídio anteriormente7,19,23,33,35,38. Quando comparado com as mortes acidentais de crianças, 23% haviam tentado o ato no ano que antecedeu a morte por suicídio27.
A tentativa é o fator de risco mais significativo para o suicídio. A tentativa de suicídio é mais frequente em crianças do sexo feminino que do sexo masculino30. Esse dado também é persistente em outras faixas etárias. Os estudiosos advertem que ter arma de fogo em casa e ausentar-se, deixando a criança sozinha, devem ser considerados verdadeiros alertas aos familiares4,6,7,25,40. Ademais, a ocorrência de tentativa de suicídio na infância é um dos fatores de risco mais significativo para a repetição do ato em outras fases da vida13.
Considera-se também a exposição de crianças ao comportamento suicida de familiares e pessoas próximas. Soole8 e Dervic14 mostram que crianças que tiveram familiares com depressão ou que um dos pais ou outro parente efetuou e obteve êxito no suicídio foram significativamente mais propensos a tentá-lo. Freuchen e Grøholt33 encontraram que 43% das crianças que morreram por suicídio haviam tido exposição ao fenômeno na comunidade ou na família.
Desse modo, reflete-se como o suicídio é um evento complexo que acarreta estresse para a família e provoca uma desorganização de seus membros, especialmente entre os filhos que vivem mais próximos de seus pais e tendem a ser mais visivelmente afetados.
Esses resultados apontam que as experiências de cada criança com os sinais de depressão, morte e suicídio, assim como aquilo que lhes é dito sobre isso, são cruciais para a compreensão que ela terá sobre o suicídio. Pesquisa realizada por Mishara43 encontrou que crianças com idades entre 5 e 11 anos possuem entendimento minucioso sobre suicídio. As crianças aos 8 e 9 anos conseguiram elaborar conceitos de vida e morte, embora ainda sejam um pouco imaturos43. Portanto, é uma barreira para a detecção do risco de suicídio considerar que as crianças não entendem o conceito de suicídio.
Estudo teórico sobre suicídio na infância narra que o desenvolvimento cognitivo da criança não deve ser subestimado, pois as crianças demonstraram ter dificuldade em julgar e gerir as circunstâncias estressantes devido à imaturidade do córtex anterior e posterior13,14. Nesse sentido, alterações neurocomportamentais desencadeadas na puberdade, como os impulsos e as mudanças emocionais, podem estar relacionados ao suicídio nessa faixa etária14.
Vale ressaltar que a impulsividade, oriunda também da imaturidade cerebral, é característica acentuada nesse ciclo de vida e agrava o fato dela estar intimamente relacionada ao risco de tentativas de suicídio.
Essas mudanças podem não ocorrer de forma concomitante com os processos cognitivos, como seu desenvolvimento, o amadurecimento da capacidade reflexiva e crítica e a maturação do juízo. Desse modo, os componentes cognitivos e afetivos do comportamento envolvem sistemas neurobiológicos e estão entre as últimas regiões cerebrais a amadurecer14.
Estudo na Noruega34 não encontrou diferença entre o desenvolvimento e a maturação cognitiva entre crianças menores de 13 anos e adolescentes entre 15 e 20 anos. Nessa linha de pensamento, novas pesquisas devem ser conduzidas para aprofundar a relação entre a imaturidade cognitiva e o suicídio em crianças menores de 14 anos.
Os problemas escolares constituem um importante fator precipitante para o suicídio na infância. Compreende-se por problemas relacionados à escola: o bullying, o abandono escolar, as crises disciplinares e a dificuldade de interação social.
Numerosos estudos encontraram que quase metade das crianças apresentaram, recentemente, problemas disciplinares na escola4,13,19,20,24,25,27,29-31,34,35. Dentre os problemas disciplinares, 25,3% falharam na nota escolar, 18,3% abandonaram a escola e 16,3% foram suspensos24. A abstenção na escola é um evento que está interligado ao isolamento social e ao comportamento suicida27,30,38. A ausência na escola pode estar relacionada à vergonha, à culpa e ao medo em lidar com os problemas escolares expressados por problemas disciplinares, notas baixas, dificuldade de se relacionar afetivamente com os colegas e por violência sofrida pelos seus pares.
As crianças que morreram por suicídio apresentaram maiores problemas de desempenho escolar e dificuldades acadêmicas. Entretanto, não se sabe se a queda no rendimento escolar é mediada por eventos estressantes na vida ou por distúrbios de atenção, aprendizagem, conduta, ansiedade e depressão. Sabe-se que sentimentos depressivos podem influenciar no desempenho escolar na medida em que a criança não consegue acreditar na sua capacidade de superar as adversidades42.
O Manual de Prevenção do Suicídio para professores e educadores reforça que qualquer mudança súbita ou dramática que afete o desempenho, a capacidade de prestar atenção ou o comportamento de crianças ou adolescentes deve ser levado a sério42.
Nos dias atuais, outro problema grave que acomete as crianças no ambiente escolar diz respeito ao bullying. Bullying se refere ao comportamento violento manifestado por intimidação e o maltrato entre escolares de forma repetida e mantida no tempo com a intenção de humilhar e submeter abusivamente uma vítima indefesa44.
Na Noruega, 29% das crianças que morreram por suicídio haviam sido vítimas de bullying30. Estudo de coorte encontrou associação significativa entre bullying e comportamento suicida. As vítimas de intimidação e maus-tratos pelos seus colegas eram significativamente mais susceptíveis a sofrer impacto na saúde mental e apresentaram baixa autoestima, isolamento social e sintomas depressivos20.
Em relação ao gênero, agressores e vítimas do sexo masculino estiveram mais propensos a ter comportamento suicida do que aqueles que nunca estiveram envolvidos em bullying e as meninas que eram vítimas de intimidações frequentemente estiveram mais susceptíveis a efetuar o suicídio20.
Revisão sistemática sobre bullying e suicídio não encontrou associação significativa entre esses dois eventos44. Em contraste a isso, estudos têm reportado o papel do bullying no sofrimento mental manifestado pela solidão, isolamento social, dificuldade de se relacionar com os pares, depressão infantil e comportamento suicida8,13,14,21,23,30,31,33,34.
Bauman et al.44 em estudo transversal com 1.491 estudantes nos EUA encontraram que a depressão é um mediador significativo entre o bullying e a vitimização tradicional e as tentativas de suicídio, independente do sexo. Dentre aqueles que apresentaram depressão, 42% das meninas estiveram mais propensas a tentar suicídio enquanto que para os meninos o risco foi de 60%. Esse mesmo autor discorre que as ações de bullying são tentativas de humilhar publicamente a vítima, com o objetivo de prejudicar suas amizades e seu status social, fazendo com que a vítima se sinta melancólica, angustiada e sem suporte social. Existe ainda uma associação entre a insatisfação com a imagem corporal e as chances de ser mais vitimado ou de praticar o bullying35.
A fragilidade psicológica dessas crianças em aceitar/reconhecer suas próprias características físicas e as intensas mudanças que ocorrem nessa fase da vida, assim como em lidar com a diferença do outro, reforçam a necessidade de que os pais e os professores investiguem e reconheçam o sofrimento mental dessas crianças para o encaminhamento ao tratamento psicológico e psiquiátrico. Adicionalmente, há a urgência na criação de estratégias preventivas que trabalhem as habilidades pessoais e sociais das crianças para a manutenção de um ambiente escolar saudável5,35.
Várias pesquisas4,13,18,19,24,26-28,30,35,40 evidenciaram diferenças significativas entre os fatores sociais desencadeantes do suicídio nas crianças e nos adolescentes. Jovens que tentam ou cometem suicídio são impelidos por problemas amorosos e envolvimento com álcool e outras drogas. Já para as crianças menores de 14 anos, tais fatores são principalmente: conflitos familiares com dinâmica permeada por tensões, rigidez e ausência de diálogos; separação ou divórcio dos pais e histórico de abuso sexual.
Estudos oriundos de autópsias psicológicas reportaram intensos conflitos familiares em um contexto de transição de lar e de cuidados entre os pais, assim como a mudança, a suspensão ou os problemas escolares. A separação dos pais também foi reportada, entretanto, a associação entre esse fato e suicídio foi mediada por fatores psicossociais7,8,22,30. Portanto, tais situações sociais acarretaram em discussões e resultaram em eventos estressantes que culminaram no ato suicida como a única solução para esses problemas.
Numerosos estudos13,18,19,22,24,38 mostraram a associação existente entre risco de suicídio e ausência de diálogo entre os pais, sobretudo a ausência de comunicação da mãe28. Com efeito, a maioria das crianças foi exposta à negligência dos pais e teve um suporte social inadequado para lidar com os momentos difíceis38. Conflitos entre pais e filhos são mais comuns em crianças do que em adolescentes8.
A ausência ou as barreiras para uma comunicação efetiva entre os pais e as crianças reflete que o comportamento suicida das crianças permanece silencioso. As crianças que morrem por suicídio encontram-se sozinhas, isoladas e desamparadas24,42.
Adicionalmente, a presença de abuso físico, sexual e emocional esteve fortemente associado ao maior risco de suicídio na infância8,18-20,22,23,26,27,33. A presença de violência evidencia o ambiente hostil e as adversidades a que as crianças foram expostas, fazendo-as se sentirem um fardo, resultando em intenso sofrimento psíquico.
Estudo de Buffraerts et al.45 em 21 países encontrou que as adversidades na infância estiveram mais associadas com a tentativa de suicídio nessa fase da vida do que na adolescência. Crianças entre 4 e 13 anos que sofreram abuso sexual tiveram 10 vezes mais chance de tentar o suicídio; esse risco diminuiu para 6 vezes em adolescentes entre 14 e 19 anos.
Pffeifer13 descreve que a exposição a situações estressantes na infância pode ampliar o sentimento de desesperança, implicando na percepção de que essas circunstâncias possuem pouca probabilidade de resolução. Juntamente com a imaturidade das habilidades para enfrentar os problemas das crianças, encontra-se a ausência de um suporte social adequado, fazendo-as sofrer em silêncio, sozinhas e sem amparo.
Estudos neurobiológicos apresentados por Dervic et al.14 encontraram também uma desregulação da serotonina em crianças que foram abusadas e negligenciadas por seus pais. Neste sentido, futuras investigações neurobiológicas podem aprofundar a interação entre as alterações séricas de serotonina, eventos estressantes na vida e comportamento suicida em crianças.
Numerosas pesquisas mostram que transtornos mentais estão fortemente relacionados com suicídio em crianças. Metade das crianças tinha o diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), um terço apresentou transtorno de personalidade antissocial, depressão e em menor proporção problemas com álcool4,7,12,22-25,29,33,35. Em contraste a isso, em outras faixas etárias encontra-se uma proporção elevada de transtornos mentais em comparação às crianças8.
No que tange ao acompanhamento de serviço de saúde mental, uma minoria estava em contato com estes e apenas uma pequena parcela recebeu tratamento psiquiátrico no ano que antecedeu o suicídio. Cerca de 85% não estavam em tratamento psiquiátrico no mês anterior ao suicídio22.
Beautrais27 destaca que as crianças do sexo feminino tiveram mais contato com os serviços de saúde do que os homens. O estudo de Freuchen et al.34 foi o único a apontar que 17% das crianças que morreram por suicídio receberam algum tipo de serviço psicológico e psiquiátrico na escola. O risco de suicídio é maior em crianças com algum transtorno mental do que entre aquelas que não possuem diagnóstico psiquiátrico.
Vários pesquisadores mostraram associação entre traços de personalidade e risco de suicídio20,27-29,39. Hoberman e Garfinkel18 descrevem que as crianças eram mais propensas a serem raivosas, nervosas, ansiosas e impulsivas antes do ato fatal.
Estudo recente conduzido por Freuchen e Grøholt33 mostrou que as crianças que morreram por suicídio eram mais sensíveis, preocupadas e impulsivas em comparação com aquelas que morreram por mortes acidentais. Revisão sistemática apontou que serem extremamente inteligentes, desconfiadas, raivosas, sensíveis à críticas e isolamento social foram características marcantes em crianças que morreram por suicídio8.
Diferentemente de outras faixas etárias, a impulsividade foi associada ao risco de suicídio em crianças8,13,14,22. Na infância, as ações são frequentemente precipitadas, por essa razão, encontra-se a tentativa de suicídio mais frequente após eventos estressantes.
Entende-se, assim, que apesar de nem todos os jovens com transtornos psiquiátricos pensarem em suicídio, aqueles que apresentaram comportamento suicida indicavam em sua maioria esse fator predisponente.
Sobre o acervo estudado, ressalta-se: (1) São fatores predisponentes para o suicídio na infância: problemas escolares, dentre os quais se destacam o bullying e o rendimento ruim; histórico de violência física e sexual e conflitos familiares, em que as tensões e a rigidez das relações são barreiras para a comunicação e um relacionamento harmonioso entre pais e filho, e a morte de parente ou pessoa próxima por suicídio. Portanto, é de suma importância conversar com as crianças sobre suicídio; (2) Metade das crianças apresentaram algum tipo de transtorno mental, especificamente, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade antissocial e depressão. Nesse sentido, reconhece-se a intrínseca relação entre transtornos mentais e suicídio em crianças. (3) Apesar da imaturidade cognitiva, as crianças têm capacidade e compreensão do ato suicida; (4) As crianças dão menos pistas verbais do seu desejo de morrer e são mais impulsivas na tentativa de suicídio; (5) Nos meses que antecedem o suicídio, ocorrem mudanças de comportamento e de atitude, as crianças apresentam falta de interesse em atividades prazerosas, abstenção da escola e isolamento social (6) As crianças que morreram por suicídio não possuíam estratégias de enfrentamento de situações de estresse.
Dentre as limitações deste artigo podem ser citadas: a bibliografia estudada se restringiu às bases de dados indicadas no método de revisão; escassez da bibliografia brasileira sobre suicídio em crianças menores de 10 anos, o que impede que sejam feitas generalizações dos dados, uma vez que as informações apresentadas dizem respeito à realidade de outras sociedades e de outras faixas etárias.
A literatura ressalta a grande existência desse fenômeno, muitas vezes desconhecido na faixa etária estudada, e que é possível prevenir o suicídio na infância. Portanto, é extremamente necessário o reconhecimento do sofrimento psíquico e do comportamento suicida na infância para que essas crianças possam ter tratamento psiquiátrico adequado. Devem ser desenvolvidos protocolos visando o reconhecimento precoce do comportamento suicida. Os profissionais de saúde e os professores devem ser capacitados para que sejam capazes de ajudar as crianças com sinais que predispõem o risco para o suicídio.