versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.05712017
This paper presents a descriptive review of laws and regulations on the management of drugs and the residues thereof adopted by countries in Europe, the Americas and Australia. This review integrates relevant points of official documents of regulatory agencies in these countries, as well as important scientific works. All countries surveyed carry out drug management concomitant with the management of the residues thereof, ranging from awareness programs on the rational use and the risks of drugs through to the collection and safe disposal of such residues. Germany, the USA and Sweden demand a prior assessment of the environmental impact caused by a given drug as a criterion for its registration. Sweden is noteworthy in that it periodically updates a list of essential drugs based on risk assessment and the environmental risks posed by the residues thereof. In Brazil, the legal measures proposed including rational prescription and reverse logistics have not yet been effectively implemented. Prior environmental impact assessment safeguards the risks to human health and the wild biota caused by exposure to drug residues. Therefore, these international models could serve as a basis for discussion and/or legal and regulatory changes in Brazil.
Key words Drug management; Drug residue management; Environmental impact of drugs
Os medicamentos são produtos destinados ao controle de enfermidades e a sua gestão deve assegurar que a população tenha acesso garantido a esses produtos no tempo hábil para sua administração. No entanto, essas substâncias podem causar danos ao meio ambiente e à saúde humana se a quantidade de medicamentos que é adquirida pelos pacientes for superior a que será efetivamente utilizada, levando a uma sobra que, muitas das vezes é descartada de maneira inadequada1-5.
Um fato agravante neste sentido é o aumento no consumo de medicamentos. Estima-se que em 2017 o Brasil ocupe o 4º lugar de maior consumidor mundial de produtos farmacêuticos6. Deste modo, este trabalho evidencia a necessidade de uma integração entre os modelos de gestão de medicamentos e de seus resíduos com o objetivo de minimizar o impacto que a geração de resíduos e o descarte inadequado causam ao meio ambiente e à saúde pública.
No âmbito internacional, há pelo menos 30 países que têm posto em prática algum tipo de gestão de medicamentos, bem como um sistema para coleta de medicamentos fora de validade7. Dentro desta abordagem, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu como grande desafio uma reestruturação na gestão de medicamentos, para obter um melhor rendimento possível de seu uso8. Uma das estratégias recomendadas é o fracionamento de medicamentos que envolve a fabricação de embalagens destacáveis em quantidades de acordo com as que são normalmente dispensadas. A etapa de fracionamento ocorre no momento da fabricação e distribuição, mas no Brasil, embora esta medida esteja prevista em lei9,10, ainda não foi totalmente implementada.
Os medicamentos são considerados micropoluentes emergentes e as possíveis maneiras de seus resíduos atingirem o meio ambiente são: disposição direta, excreção natural e remoção corpórea7,11,12. A disposição direta de medicamentos ocorre quando ele é descartado diretamente no lixo, pia ou vaso sanitário ou, ainda, na água ou no solo. Na excreção natural, os fármacos são biotransformados antes de serem dispostos pelas vias sanitárias normais. Neste caso, a extensão do metabolismo e da transformação do fármaco dependerá da sua farmacocinética bem como da genética e das condições de saúde de cada usuário7,11,12. Por fim, a remoção corpórea de fármacos ocorre pela retirada de medicamentos tópicos durante o banho ou higiene pessoal e estima-se que esta via de disposição seja significativa1. Todas essas rotas justificam a presença de mais de 80 tipos de compostos de diversas classes de fármacos em águas subterrâneas, superficiais e para consumo humano1,7,12.
Considerando as vias hídricas urbanas, os fármacos podem chegar as estações de tratamento de esgoto e, assim, atingirem as águas superficiais podendo ser captados pelas estações de tratamento para o abastecimento de água potável da população7,12. Logo, é possível a exposição humana involuntária a fármacos pelo consumo de água com resíduos de medicamentos12-14. Diante deste risco, a OMS publicou um Guia para Qualidade da Água para Consumo que inclui a adoção de medidas preventivas cuja meta é reduzir a exposição humana aos resíduos de medicamentos, tais como o uso racional e a educação de prescritores e usuários15.
Os hormônios estrogênicos representam uma das classes de medicamentos que mais possuem dados publicados disponíveis acerca da avaliação geral de risco e mecanismo de ação no meio ambiente12. A exposição a hormônios estrogênicos, por exemplo, pode provocar o desenvolvimento de características femininas em peixes, moluscos e pássaros12.
Em vista do apresentado, este artigo tem o propósito de revisar dispositivos legais e normativos, nacionais e internacionais sobre gestão de medicamentos e de seus resíduos. Objetiva-se encontrar as melhores estratégias que possam minimizar o impacto ambiental provocado pelos resíduos de medicamentos, bem como a exposição humana involuntária a esses compostos com a finalidade de sua aplicação no Brasil.
Este trabalho fez uma revisão documental a partir de leis, regulamentações e normas relativas à gestão de medicamentos e à gestão de resíduos de medicamentos. Foram incluídos nesta revisão países que forneceram as informações necessárias ao estudo como Canadá, Estados Unidos, México, Colômbia, Austrália, Itália, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Suécia e Brasil que disponibilizaram o acesso a seus dados. Por outro lado, foram excluídos países como Japão e China, que não disponibilizaram acesso aos seus dados. Esta busca se deu a partir das páginas eletrônicas oficiais dos órgãos competentes tais como ministérios, agências reguladoras e assembleias legislativas ou correlatos de cada país, bem como pelo contato direto por e-mail a essas instituições. Foram consultados os documentos nos seus respectivos idiomas nativos tendo sido corretamente traduzidos para o inglês e/ou português. Além desses documentos, foi feita uma revisão bibliográfica através das bases de dados Scielo, Lilacs, MedLine e Science Direct utilizando como descritores “impacto ambiental provocado por fármacos”, “avaliação ambiental de fármacos” e “efeito ecotoxicológico de fármacos”. Foram consultadas ainda às empresas autorizadas legalmente para a prestação de serviços de resíduos de medicamentos nesses respectivos países, bem como as leis que autorizam a concessão desses serviços. Foram considerados neste trabalho documentos oficiais vigentes, independente do ano de sua respectiva publicação, e artigos científicos publicados entre 2007 e 2017.
No Canadá existe uma regulamentação federal para a gestão de resíduos de medicamentos pós-consumo onde inclui a logística reversa16. Neste país é mantido o ENVIRx, um programa que orienta os consumidores quanto à coleta seletiva de medicamentos e como as farmácias devem recolher os medicamentos vencidos ou não utilizados. Este programa é administrado e custeado pela Associação de Indústrias Farmacêuticas, a PCPSA (Post-consumer Pharmaceutical Stewardship Association)2,17. Além disso, a província canadense de Alberta mantém um programa específico com o foco no uso racional e na melhoria da assistência farmacêutica. Nele, o farmacêutico dispensa uma quantidade inicial e, somente no caso de tolerância ao medicamento é que o paciente recebe o resto do que foi prescrito17.
Para que uma indústria farmacêutica seja autorizada a comercializar um medicamento nos EUA precisa apresentar um relatório com a avaliação do comportamento do fármaco no meio ambiente com as evidências de que ele não apresente impacto ambiental se descartado nos sistemas sanitários domésticos11,18. No entanto, esta prática de descarte dos medicamentos vencidos ou não utilizados nos sistemas sanitários (lixo ou esgoto doméstico) só ocorre nos estados americanos que não possuem programas de recolhimento11,19. Nestes estados esta prática é adotada devido ao alto custo da logística reversa, que envolve um fluxo de diferentes atores e que encarecem o gerenciamento desses resíduos a serem descartados. Logo, o descarte desses resíduos nas vias sanitárias fica mais barato18.
No México e na Colômbia existem programas de recolhimento e disposição final dos resíduos de medicamentos domiciliares; no México, o “Sistema Nacional de Gestion de Residuos y Envases de Medicamentos” (SINGREM) em determinação da Lei Federal20 e, na Colômbia, o Ponto Azul em determinação a resolução 0371/2009 do Ministério da Saúde21. Esses programas são mantidos pelos fabricantes, distribuidores e importadores de medicamentos. Além disso, estes dois países investem em campanhas educativas junto à população sobre o uso racional de medicamentos e o descarte seguro de seus resíduos20,21.
O governo australiano realiza campanhas de conscientização junto à população sobre os riscos de resíduos de medicamentos no meio ambiente22. Além disso, o país possui uma política de medicamentos que promove a prescrição racional23. Outra medida adotada é a proibição da disposição de resíduos de medicamentos em aterros ou redes de esgoto. A empresa sem fins lucrativos The National Return & Disposal of Unwanted Medicines Limited (NatRUM) promove ações para facilitar a coleta e a disposição de medicamentos vencidos e não utilizados nos domicílios. As farmácias também participam dessas campanhas de forma voluntária recebendo esses resíduos22.
Os Estados membros da Comunidade Europeia (CE) assumiram um compromisso desde 1993 de incluir a avaliação e o monitoramento do risco ambiental nas ações de farmacovigilância24. Neste contexto foi dado início ao projeto chamado The Knowledge and Need Assessment on Pharmaceutical Products in Environmental Waters (KNAPPE) que teve como metas principais o avanço científico e tecnológico no conhecimento do destino e dos efeitos dos resíduos farmacêuticos bem como o controle da sua emissão no meio ambiente25. A Diretiva 2010/84/UE do Parlamento Europeu e do Conselho obrigou os fabricantes a apresentarem uma avaliação do risco ambiental no dossiê de registro de medicamentos24. Esta avaliação deve ser realizada nas fases que consideram a exposição (persistência, bioacumulação e ecotoxicidade) e que abrangem a sua destinação e os seus efeitos25. Com isso, quando um medicamento possui algum risco ambiental, a bula deve apresentar orientações aos usuários para que não se descarte os resíduos no lixo doméstico e que um farmacêutico seja consultado para orientações sobre o seu descarte seguro24. Neste projeto é recomendado ainda que os medicamentos vencidos e não utilizados retornem às farmácias. No entanto, todos os acordos firmados por este projeto são sugestivos e a adesão pelos Estados membros é voluntária, mas é adotada por grande parte dos países26.
O Ministério do Meio Ambiente italiano regulamentou em 1993 um programa de coleta de medicamentos devolvidos, vencidos ou recolhidos que é coordenado pela Associazione Indennizzo Resi (AssInde)27. Esta instituição reembolsa com créditos financeiros as farmácias e distribuidores participantes do programa através de financiamento das indústrias farmacêuticas27. Além disso, o decreto nº 254/2003 determinou que todos os participantes do ciclo de vida dos resíduos de medicamentos priorizassem as ações de prevenção e redução da geração desses resíduos28.
As farmácias britânicas recebem os medicamentos dos consumidores e encaminham para a sua destruição sob o financiamento do governo29. O programa “Only order what you need” mantido pela companhia britânica “Medicine Waste” alerta à população quanto aos gastos com a logística reversa de medicamentos e no que esses valores poderiam ser usados como no tratamento e em pesquisas de Alzheimer e câncer30. Ainda neste programa são dadas orientações a pacientes e a médicos para a prática de uso racional de medicamentos30.
A lei espanhola nº 11/1997 determina a responsabilidade compartilhada dos agentes que participam da cadeia produtiva, de comercialização e de consumo de medicamentos31. A prescrição e o uso racional de medicamentos também estão previstos em lei. É recomendando que a produção e a dispensação de medicamentos ocorram em embalagem fracionável32,33. A Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos Sanitários exige dos fabricantes um relatório de análise de risco ambiental para o registro de medicamentos em seu país32,33. Além disso, o programa “Sistema Integrado de Gestión y Recogida de Envases” (SIGRE) mantido pelas farmácias e em convênio com universidades promove uma educação aos prescritores em relação a legislação e a iniciativa ambiental do setor farmacêutico34. Uma website educativa, a SINGRELÂNDIA, cria cidades virtuais onde os usuários caminham e enfrentam desafios através do ciclo de vida de resíduos sólidos, inclusive os de medicamentos, para aprender sobre a importância de fazer uso responsável desses produtos sob o ponto de vista sanitário e ambiental34.
Em Portugal, o Decreto-Lei nº 366A/1997 e a Portaria nº 29B/1998 autorizaram a VALORMED, uma sociedade sem fins lucrativos, como uma sociedade gestora de resíduos de embalagens e de medicamentos35-37. Esta autorização é constantemente renovada por despachos conjuntos entre os Ministérios de Meio Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional e da Economia e da Inovação36. Além da gestão dos resíduos de medicamentos, este programa desde 1999 realiza campanhas de conscientização junto às escolas sobre os riscos ambientais provocados por estes resíduos37.
O decreto francês nº 92-377/1992 obriga a destinação segura de resíduos domiciliares de embalagens de produtos industrializados, inclusive os medicamentos38. Com isso, a CYCLAMED, uma associação sem fins lucrativos autorizada legalmente, passou a receber os medicamentos vencidos e não utilizados39,40. Além da gestão desse tipo de resíduo e suas respectivas embalagens, a CYCLAMED realiza ainda campanhas de conscientização junto à população com a utilização de diversos meios de comunicação inclusive um website sobre os riscos sanitários e ambientais provocados pelos resíduos de medicamentos40.
A Alemanha foi o primeiro país europeu a concentrar seus esforços na gestão segura de resíduos sólidos que, desde 1986, objetivavam a minimização e eliminação de resíduos41. A Agência Federal do Meio Ambiente da Alemanha (Umwelt Budesamt) exige dos fabricantes um relatório sobre a análise de risco ambiental dos medicamentos de uso humano e veterinário para que seja concedido o seu registro. Essas informações devem ser obrigatoriamente divulgadas em suas respectivas embalagens42,43. Os fabricantes implementaram o programa “Green Pharmacy” onde estimula o desenvolvimento sustentável de medicamentos com o foco no desenvolvimento de fármacos biodegradáveis, nas formas de apresentação do medicamento (fracionamento, por exemplo) e nas dosagens mais adequadas ao tratamento43. Além disso, estão vigentes programas de prescrição e venda racional de medicamentos incluindo o treinamento a médicos em conjunto com universidades e a propagandas vinculadas a TV e internet. No entanto, o recolhimento dos resíduos de medicamentos pelas farmácias não é obrigatório sendo permitido o descarte desses resíduos no lixo doméstico42,43.
A gestão de medicamentos na Suécia, além de possuir as mesmas ferramentas de educação e conscientização aos usuários, inclui ainda uma lista de medicamentos essenciais (Kloka Listan) periodicamente atualizada que se baseia não só nos seus atributos de eficácia e custo-efetividade como também na avaliação do seu impacto ambiental44-46. Esta lista é baseada nas características intrínsecas do medicamento e nos dados de monitoramento de seus resíduos na água para consumo humano47,48. Este monitoramento é essencial pois parte-se do pressuposto que a principal via involuntária de exposição humana a esses contaminantes é através da água consumida48. Além disso, campanhas educativas são elaboradas para informar aos pacientes e a médicos sobre os efeitos dos resíduos de medicamentos à saúde e ao meio ambiente47,48. Assim os médicos podem adotar uma medicação que tenha o mesmo benefício, mas que cause o menor impacto ambiental.
Diferentemente de outros países, a Suécia utiliza a avaliação do impacto ambiental gerada pelos fármacos como ferramenta de gestão de medicamentos47. Esta avaliação é dada através do perigo e do risco ambiental de cada medicamento. O perigo ambiental é dado pelo índice de PBT de cada medicamento ou de seu princípio ativo (Quadro 1) que corresponde a integração de sua Persistência (P), Bioacumulação (B) e Toxicidade (T) e pode variar de 0 a 3 (pouco perigo ambiental) ou 4 a 9 (perigoso)44-46. O risco ambiental é dado pela razão entre a concentração prevista do fármaco nos sistemas hídricos (PEC) e a maior concentração do fármaco que não causa prejuízo ao meio ambiente (PNEC) (Quadro 2)44-46. Logo, para que seja feita a avaliação do risco ambiental atribuído ao medicamento é necessário um programa de monitoramento destes resíduos nos sistemas hídricos47. A avaliação final do impacto ambiental de determinado medicamento é dada por esses dois atributos (perigo e risco ambiental) de forma independente e esse resultado fica disponível no site podendo ser consultado pelos usuários e médicos47.
Quadro 1 Avaliação do Perigo atribuído aos resíduos de medicamentos baseado no índice PBT47.
Persistência | |
Prontamente biodegradável | 0 |
Não prontamente biodegradável | 3 |
Bioacumulação | |
Log Kow menor ou igual a 3 | 0 |
Log Kow maior que 3 | 3 |
Toxidade | |
CL/EC/CI50 menor que 1 mg/L | 3 (Toxicidade muito alta) |
CL/EC/CI50 entre 1 e 10 mg/L | 2 (Toxicidade alta) |
CL/EC/CI50 entre 10 e 100 mg/L | 1 (Toxicidade moderada) |
CL/EC/CI50 maior que 100 mg/L | 0 (Toxicidade baixa) |
Quadro 2 Classificação de risco ambiental obtida a partir dos dados de PEC e PNEC47,48.
Insignificante | Se PEC/PNEC | ≤ 0,1 |
Baixa | Se PEC/PNEC | > 0,1 - ≤ 1 |
Moderada | Se PEC/PNEC | > 1 - ≤ 10 |
Alta | Se PEC/PNEC | > 10 |
Nota: PEC/PNEC razão entre a concentração prevista das substâncias nos sistemas hídricos e a concentração da substância que não causa prejuízo ao meio ambiente.
De acordo com o Comitê de Drogas e Terapêutica de Estocolmo, até 2010, 420 substâncias farmacêuticas já haviam sido classificadas23,45-47 e mais de 700 substâncias já estavam disponíveis na Kloka Listan44. Observa-se, no entanto, que nem todas as substâncias possuem uma avaliação de risco ambiental concluído já que depende do monitoramento de seus resíduos nos sistemas hídricos, que é alimentado por dados de pesquisas neste campo de concentração. Esta listagem está disponível em uma website e, de acordo com a avaliação divulgada pelo SCC, pelo menos 80% das prescrições na Suécia seguem as recomendações da Kloka Listan44-47.
A aplicação da avaliação de impacto ambiental como uma ferramenta de gestão é exemplificada na substituição do medicamento Felodipina pela Amilodipina quanto ao seu risco e perigo ambiental. A Felodipina, assim como a Amilodipina, é um medicamento usado no tratamento de angina e hipertensão. Sua substituição foi recomendada a partir de 2006 devido, entre outras coisas, a sua bioacumulação e o maior risco ambiental (Tabela 1). A maior resistência desta troca foi gerada pelos usuários que estavam acostumados com o medicamento antigo44. Outro fármaco que possui um alto perigo ambiental (PBT = 9) e representa alto risco ambiental é o etinilestradiol, princípio ativo de pílulas contraceptivas femininas. A literatura científica apresenta dados bem consistentes comprovando a sua ocorrência nos sistemas hídricos em concentrações acima das consideradas seguras48, bem como os seus efeitos no sistema reprodutivo de peixes49. No entanto, ainda não existe um medicamento que possa substituir este hormônio e que possua um menor perigo e/ou risco ambiental44.
Tabela 1 Avaliação de risco e perigo ambiental atribuído aos medicamentos usados em reposição hormonal (etinilestradiol) e no tratamento de angina e hipertensão (felodipina e amilodipina) conforme o SCC47,48.
Substância | P | B | T | Perigo Ambiental (PBT) | Risco Ambiental |
---|---|---|---|---|---|
Etinilestradiol | 3 | 3 | 3 | 9 | Alto |
Felodipina | 3 | 3 | 3 | 9 | Baixo |
Amilodipina | 3 | 0 | 3 | 6 | Insignificante |
O Plano Nacional de Saúde é um dos marcos regulatórios em gestão de saúde no Brasil no qual se reconhece que os medicamentos representam um dos produtos fundamentais de proteção à saúde50. A Política Nacional de Medicamentos (PNM) apresenta como diretrizes importantes a promoção do uso racional de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos essenciais51. Neste mesmo sentido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) atua, inclusive, no contexto dos riscos e agravos à saúde provocados pelos medicamentos52. Isto mostra que a gestão de medicamentos no Brasil sofreu e ainda vem sofrendo uma evolução no campo legal e institucional, mas ações de uso racional como o fracionamento, por exemplo, ainda não estão efetivamente implementadas53.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi instituída em 2010 e sinaliza a necessidade de haver um esforço na redução de geração dos resíduos54. Neste sentido, o seu modelo de gestão proposto tem como alicerce o tripé composto pelo planejamento, produção e consumo sustentável e responsabilidade compartilhada53. A estratégia de uso racional de medicamentos incorpora estes três princípios o que contribui com a efetivação da PNRS54.
A logística reversa é um dos principais instrumentos da PNRS, mas ainda está incipiente devido à necessidade de definição da responsabilidade de cada ator no ciclo de vida do produto54. Em relação aos medicamentos, caberiam as indústrias farmacêuticas não só a produção como a coleta e a destinação final de seus resíduos54. A fim de ajudar na regulamentação e na implementação de ações sobre a gestão de resíduos de medicamentos, foi criado um Grupo de Trabalho Temático no qual o forte das discussões foi a viabilidade de implantação da logística reversa53,55. O principal avanço obtido por esse fórum foi a revisão da RDC 306 no que se refere ao tratamento prévio de resíduos de hormônios e antibióticos55. Porém, todos os acordos setoriais apresentados e firmados neste grupo de trabalho ainda não avançaram e, portanto, medidas práticas ainda não podem ser observadas.
Os programas e as estratégias e/ou ferramentas de gestão de medicamentos e de seus resíduos encontrados (Quadro 3) são específicos para cada país. No entanto, muitos pontos importantes são comuns e podem ajudar na redução dos riscos ambientais provocados pelos resíduos de medicamentos.
Quadro 3 Aspectos importantes na gestão de medicamentos e de seus resíduos encontrados em alguns países americanos, na Europa e na Austrália.
País | Programas | Estratégias/Ferramentas | Responsabilidades | Referências |
---|---|---|---|---|
Canadá | ENVIRx(*) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos, bem como ao descarte seguro de seus resíduos; - Melhorias na assistência farmacêutica; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
PCPSA(*) | 16 |
EUA | - | - Exige a avaliação do impacto ambiental do fármaco; - Permite o descarte direto nas vias sanitárias e/ou no lixo; - Recolhimento e descarte final adequado não obrigatório(†††). |
Órgãoambiental fabricantes, distribuidores e importadores.(***) | 8,17,18 |
México | SINGREM(*) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos, bem como ao descarte seguro de seus resíduos; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
Fabricantes, distribuidores e importadores. | 19 |
Colômbia | Ponto Azul(*) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos, bem como ao descarte seguro de seus resíduos; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
Fabricantes, distribuidores e importadores. | 20 |
Austrália | - | - Campanhas educativas quanto aos riscos dos resíduos de medicamentos; - Prescrição Racional; - Proibição de descarte direto nas vias sanitárias e aterros; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
NatRUM(**) | 21 |
Itália | - | - Recolhimento e descarte final adequado; - Redução na geração de resíduos de medicamentos(†††). |
AssInde(*) | 26,27 |
Reino Unido | Only order what you need | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
Medicine Waste (NHS-National Health Service)(***) | 28,29 |
Espanha | SINGRE(*) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos; - Campanhas educativas quanto aos riscos dos resíduos de medicamentos; - Exige a avaliação do impacto ambiental do fármaco; - Prescrição Racional; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
Farmácias e Universidades | 30,31,32,33 |
Portugal | - | - Campanhas educativas quanto aos riscos dos resíduos de medicamentos; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
VALORMED(**) | 34,35,36 |
França | - | - Campanhas educativas quanto aos riscos dos resíduos de medicamentos; - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
CYCLAMED(**) | 37,38,39 |
Alemanha | Green Pharmacy (*) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos; - Exige a avaliação do impacto ambiental do fármaco; - Permite o descarte direto no lixo; - Prescrição Racional; - Promove o desenvolvimento de medicamentos biodegradáveis; - Recolhimento e descarte final adequado não obrigatório(†††). |
Órgãoambiental fabricantes, distribuidores e importadores. | 40,41,42 |
Suécia | Kloka Listan (***) | - Campanhas educativas quanto ao uso racional de medicamentos; - Campanhas educativas quanto aos riscos dos resíduos de medicamentos; - Exige a avaliação do impacto ambiental do fármaco(†); - Prescrição racional(††) - Recolhimento e descarte final adequado(†††). |
Governo, Fabricantes, distribuidores, prescritores e consumidores | 43,44,45,46 |
Brasil | - | - Recolhimento e descarte final adequado(†††); - Uso racional de medicamentos. |
(****) | 50,53 |
Notas:
(†)embora esta estratégia/ação seja adotada por outros países, a Suécia utiliza a avaliação ambiental como uma ferramenta de gestão dos medicamentos com o propósito de auxiliar na prescrição racional de medicamentos;
(††)a prescrição racional é normalmente baseada na Kloka Listan (uma lista de medicamentos essenciais que mostra a relação custo-efetividade do medicamento e os valores de risco e perigo ambiental do fármaco);
(†††)nos casos onde esta estratégia/ação é mantida pelo produtor (indústria farmacêutica), ela pode ser considerada de "logística reversa";
(*)empresa/programa mantido pelos fabricantes e/ou distribuidores;
(**)empresa sem fins lucrativos;
(***)sistema mantido pelo governo;
(****)estratégias/ações exigidas por lei, mas com as suas responsabilidades ainda não bem definidas.
Um aspecto comum em todos os modelos internacionais consultados é a gestão de medicamentos concomitante com a gestão de seus resíduos, ou seja, as ações de gestão de medicamentos são aplicadas atentando para as consequências da geração de seus resíduos1,2,7,26,41. Em todos os países estudados (Países Americanos, Austrália e Comunidade Europeia) foram observadas campanhas de conscientização quanto ao consumo racional de medicamentos, normalmente realizadas por empresas responsáveis pela gestão de resíduos de medicamentos17,19-22,28,30,34,37,40,42. Este resultado mostra que não se podem planejar os mecanismos, ferramentas e/ou estratégias de gestão de medicamentos sem prever os possíveis resíduos que podem ser gerados bem como administrá-los. No Brasil as medidas de gestão de medicamentos ainda ocorrem de maneira isolada sem uma interlocução entre os fabricantes e os distribuidores de medicamentos e as companhias de coleta de resíduos. Por outro lado, há avanços propostos pela PNRS sobre a necessidade de redução na geração de resíduos agindo no consumo consciente inclusive os de medicamentos. No entanto, ações concretas e efetivas ainda não puderam ser observadas no Brasil.
Três pontos importantes foram encontrados nos modelos internacionais de gestão. O primeiro diz respeito às companhias responsáveis pela gestão de resíduos de medicamentos que são, na grande maioria, empresas sem fins lucrativos22,37,40, ou ainda, aquelas que são mantidas pelas indústrias farmacêuticas17,20,21,27,34,43. No Brasil, ainda não há uma definição de qual ator vai atuar na coleta e destinação adequada dos resíduos de medicamentos. O segundo ponto é relativo a conscientização dos riscos dos resíduos de medicamentos junto à população no qual todos os países mantêm alguma ferramenta como programas educativos17,20,21,22,34,37,40,43,47. Não foi encontrada no Brasil, medida alguma relativa à orientação e/ou ferramenta educativa informando à população sobre o risco do descarte inadequado dos resíduos de medicamentos. O que se pratica é o descarte desses resíduos diretamente nas vias sanitárias e no lixo sem a orientação técnica necessária. É evidente que medidas educacionais são importantes e responsabilizam o usuário como um dos atores no ciclo de vida dos medicamentos. Essas medidas devem ser contínuas para que os resultados em termos de conscientização da população possam ser observados.
O terceiro ponto está relacionado a responsabilidade compartilhada entre os atores no ciclo de vida dos medicamentos. A logística reversa de medicamentos é uma ferramenta da gestão de resíduos adotada pela maioria dos países investigados16,17,20-22,27,29,31,37,39. No entanto, no Brasil, as discussões sobre as responsabilidades, prevista na PNRS, não avançaram e, ainda não está definido quem vai atuar na gestão de resíduos de medicamentos.
Em relação a avaliação de impacto ambiental provocado pelos resíduos de medicamentos, alguns países já adotaram esta ferramenta na gestão de medicamentos. Os Estados Unidos exigem uma avaliação prévia dos riscos ambientais para o registro do medicamento com o objetivo de seu descarte seguro nas vias sanitárias11,18. O Conselho Europeu também sugere que seja realizada esta avaliação para orientar os usuários quanto ao descarte seguro dos medicamentos24. Esta ferramenta de gestão é adotada pela Alemanha42,43 e pela Suécia44-46 que se destaca pela informação aberta aos usuários e prescritores do índice de perigo e risco ambiental dos medicamentos. No Brasil, a avaliação de impacto ambiental é restrita as instalações das unidades fabris farmacêuticas, mas não há aplicação dessa ferramenta no ciclo de vida dos medicamentos. O uso da avaliação de impacto ambiental como ferramenta de gestão não é uma realidade brasileira. No entanto, para que haja o registro, fabricação e comercialização de agrotóxicos é necessária uma avaliação prévia de seu impacto ambiental56. Neste caso, a gestão de medicamentos e de seus resíduos no Brasil poderia se basear nas mesmas estratégias adotadas para os agrotóxicos. Para que este mecanismo possa ser usado seria necessária à obtenção de dados sobre a ocorrência desses resíduos na água superficial e na usada para consumo humano, o que ainda é pouco discutido e pesquisado no Brasil57. Esta medida deveria incluir as companhias de saneamento responsáveis pelos serviços de água e esgoto para alimentar os dados de risco ambiental.
Algumas das ferramentas de gestão adotadas nos países consultados já fazem parte de leis brasileiras, mas essas medidas ainda não podem ser observadas na prática. A aplicação dessas leis no Brasil requer uma definição incisiva das responsabilidades de cada ator no ciclo de vida dos medicamentos e uma fiscalização mais efetiva quanto a aplicação da PNRS. Destaca-se que os resíduos de medicamentos não fazem parte das discussões dos grupos de trabalho sobre resíduos especiais e/ou perigosos que estão definidos nos acordos setoriais de implantação da logística reversa.
Ações de comunicação/educação junto à população quanto aos riscos ambientais dos medicamentos e de seus resíduos ainda não é usada no Brasil. Na maior parte dos países consultados, esta ferramenta é realizada por empresas terceirizadas que são responsáveis pela gestão de resíduos de medicamentos.
Ainda não existe uma definição clara quanto a responsabilidade de cada ator no ciclo de vida dos medicamentos no Brasil como observado nos demais países consultados.
Por fim, um sistema de avaliação de impacto ambiental provocado pelos resíduos de medicamentos não é uma realidade brasileira apesar de muitos países já terem esta ferramenta implantada.