versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.27 no.1 São Carlos jan./mar. 2019
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1079
Freud (1996) foi o primeiro autor a iluminar o luto enquanto temática relevante para o entendimento deste como um processo psíquico. Na sua famosa obra “Luto e Melancolia”, o autor descreve o luto como um processo psíquico não-patológico, que acontece após a perda de um ente querido.
Do ponto de vista existencial, pode ser compreendido como uma vivência típica em situações de transformação abrupta nas formas de se dar do ser em uma relação eu-tu. O luto é vivenciado como a morte de um modo de relação entre o morto e o enlutado, decorrente da ruptura da intercorporeidade (FREITAS, 2013).
Com a supressão do outro, há uma perda de sentido do mundo-da-vida com exigência de nova significação (FREITAS, 2013).
Mohr (2011) corrobora com tal ideia e entende que o luto, embora encarado como sendo um evento natural da vida e que todos experimentarão um dia, tem efeitos variáveis sobre as pessoas, devendo ser entendido de forma individualizada.
Matos-Silva (2012) relata que o luto é um processo individual e está diretamente ligado a um processo social, visto que a sociedade em que o indivíduo enlutado está inserido influencia os sentimentos e comportamentos gerados pelo falecimento de uma pessoa.
Assim, o enfrentamento do luto está atrelado à maneira como um grupo social pensa sobre a morte e comporta-se diante dela.
Neimeyer (2001) afirma que, para compreender todas as dimensões da perda, incluindo aspectos privados, é preciso ter claro como o contexto social interfere no luto, podendo ser apoiador, opositor ou simplesmente ignorar a experiência do luto, levando necessidade de mudanças do enlutado.
Aries (1997) aponta que, no século XX, as sociedades ocidentais passaram a ver a morte como uma ruptura inoportuna, que gera uma dor sentida como intolerável.
Reações à perda de uma pessoa significativa muitas vezes incluem impedimentos temporários das funções do dia-a-dia, retiradas das atividades sociais, pensamentos intrusivos e sentimentos de anseio e dormência que podem continuar por períodos variáveis de tempo (KERSTING; WAGNER, 2012).
Kovács (2007) relata que essas reações e esses sentimentos, geralmente, envolvem sofrimento e desorganização psíquica em maior ou menor grau.
Para Neimeyer (2001), um denominador comum da maioria das teorias tradicionais sobre o luto, como Bowlby, Parkes e Worden, é a identificação de uma série de etapas ou fases de adaptação, começando com a morte real ou iminente de um ente querido e prosseguindo por uma viagem através de vários tipos de reações emocionais, até que o indivíduo afetado encontre a recuperação, a reconciliação ou fim similar.
Neimeyer (2001) propõe um modelo de elaboração luto embasado nas teorias da psicologia construtivista. Para o autor, é através da busca e da reconstrução de significados após uma perda significativa, que o luto pode ser elaborado. Para compreender todas as dimensões da perda, incluindo aspectos privados, é preciso compreender o contexto social em que se apoia, se opõe ou ignora a experiência e a necessidade de mudança. A reconstrução de significados após a perda deve considerar as relações estabelecidas com outros recursos, reais, simbólicos e pessoais dos enlutados. Enfrenta-se a tarefa de mudar a identidade para redefinir a conexão simbólica que se tem com o falecido, enquanto mantém-se o relacionamento com aqueles que estão vivos.
Para o autor, o luto, na forma de perda através da morte de uma figura com quem se tinha um vínculo significativo, interrompe as autonarrativas de vida dos sobreviventes e, geralmente, os coloca em uma busca involuntária pelo sentido da perda, bem como de suas vidas alteradas (NEIMEYER, 2001).
Para Stroebe e Schut (1999), o luto é um processo cognitivo de enfrentamento da perda, que consiste em construir estratégias e estilos de gerenciamento da situação de luto. Para os autores, se há o enfrentamento, os danos à saúde física e mental são reduzidos, pois este é um enfrentamento que acontece no dia a dia e inclui todas as tarefas de vida da pessoa em luto, seja assistir televisão, ler um livro ou conversar com amigos.
Esses autores propuseram o Modelo do Processo Dual do Luto, que enfatiza o enfrentamento para a compreensão deste processo, que enfoca a construção de significados e ocorre a partir de três perspectivas: o enfrentamento orientado para a perda (enfoca a busca pela pessoa perdida e está centrada nos aspectos relacionados à pessoa falecida); o enfrentamento orientado para a restauração (enfoca a forma de lidar com os arranjos da vida sem o ser amado) e a oscilação (que é a alternância entre um e outro) (STROEBE; SCHUT, 1999).
Segundo os autores, o enfrentamento orientado para a perda envolve a busca dos laços afetivos, a negação e a evitação da realidade da morte. Também fazem parte deste processo a aceitação da realidade da perda, a elaboração do luto, a necessidade de rememorar a figura do falecido, ver fotografias, falar sobre o ente querido morto e o anseio por sua proximidade (STROEBE; SCHUT, 1999).
O enfrentamento orientado para a restauração envolve retomar as próprias tarefas do dia a dia, fazer coisas novas, se distrair e se divertir sem culpa ou sem se preocupar que está traindo o ente falecido (STROEBE; SCHUT, 1999).
Por fim, a oscilação deve ser vista como saudável e necessária para que possa haver uma reorganização diante da nova realidade, a construção de um novo mundo presumido, abalado com a perda do ente querido (STROEBE; SCHUT, 1999).
O luto é definido como uma crise, uma vez que ocorre um desequilíbrio entre a quantidade de ajustamento necessário de uma única vez e os recursos disponíveis para lidar com tal desequilíbrio. O impacto da morte provoca uma demanda sistêmica sobre a família, de ordem emocional e relacional. A crise vem da necessidade de continuar desempenhando seus papéis, com a sobrecarga do luto dos demais membros da família, agravada pelas reações próprias do luto individual (BROMBERG et al., 1996).
Compreendendo o luto com um evento complexo, com repercussões diferentes para cada sujeito e diferente em cada sociedade, identificou-se a necessidade de pesquisar como terapeutas ocupacionais compreendem o luto, visto que este tem implicações significativas nas ocupações dos sujeitos enlutados.
Trata-se de uma revisão sistemática de literatura, definida como uma forma de pesquisa que utiliza como fonte de dados produções científicas sobre determinado tema. Esse tipo de investigação disponibiliza evidências relacionadas a uma estratégia de intervenção específica, mediante a aplicação de métodos explícitos e sistematizados de busca, apreciação crítica e síntese da informação selecionada (LINDE; WILLICH, 2003). As revisões sistemáticas são consideradas estudos secundários, que têm nos estudos primários sua fonte de dados. Entende-se por estudos primários os artigos científicos que relatam os resultados de pesquisa recentes e inéditos (GALVÃO; PEREIRA, 2014).
Seguiu-se o modelo para realização de revisões sistemáticas proposto por Sampaio e Mancini (2007). A pergunta norteadora do trabalho foi “como terapeutas ocupacionais compreendem e/ou intervém o/no processo de luto?”, a fim de identificar, na literatura nacional e anglófona, estudos de terapeutas ocupacionais vinculados ao processo de enlutamento.
Foram utilizadas cinco bases de dados para realizar a busca Scopus, CINAHL-EBSCOhost, Medline, PubMed, Pepsic. Foram definidos como descritores “terapia ocupacional” e “pesar” ou “luto” ou “atitudes frente à morte” e, em inglês “occupational therapy” e “grief” ou “mourning” ou “bereavement”.
Como critérios de inclusão estabeleceram-se: artigos em inglês ou português, o estudo completo estar disponível online e o artigo relacionar-se ao processo de luto por morte. Foram excluídos os artigos de outras línguas, artigos que relatassem o luto da equipe de saúde por morte de pacientes, luto por perdas funcionais, luto antecipatório, uma vez que o foco do estudo foi enfocar a experiência de luto por morte. Também foram excluídos os artigos que não estivessem disponíveis por completo ou artigos que não se referissem às palavras-chave.
Não se realizou refinamento por data de publicação, devido ao pequeno número de artigos encontrados.
A busca foi realizada no segundo semestre de 2016 por dois examinadores independentes, com tempo estimado de sete dias entre as buscas. Os resultados das buscas pelos dois pesquisadores foram comparados e não foi evidenciada nenhuma diferença quanto ao número de artigos ou a inclusão/exclusão de artigos nas buscas.
Após a comparação entre pesquisadores e a inclusão dos artigos, foi realizada leitura na íntegra dos trabalhos e os resultados analisados pela análise temática de conteúdo proposta por Minayo (2001, p. 316), que “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado”.
A quantidade de artigos encontrados e incluídos por base de dados está apresentada na Tabela 1.
Tabela 1 Quantidade de artigos encontrados e incluídos por bases de dados.
Base de dados | Encontrados | Incluídos |
---|---|---|
Scopus | 77 | 1 |
CINAHL-EBSCOhost | 22 | 1 |
Medline | 43 | 1 |
PubMed | 41 | 3 |
Pepsic | 1 | 1 |
Total | 184 | 7 |
A Tabela 2 mostra os artigos por autor(es), título, ano de publicação, revista, tipo de estudo e idioma.
Tabela 2 artigos por autor (es), ano de publicação, revista, tipo de estudo e idioma.
Autor (es) | Título | Ano de Publicação | Revista | Tipo de estudo | Idioma |
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Hoppes | Meanings and Purposes of Caring for a Family Member: An Autoethnography | 2005a | The American Journal of Occupational Therapy | Autoetnográfico | Inglês |
Hoppes | When a Child Dies the World Should Stop Spinning: An Autoethnography Exploring the Impact of Family Loss on Occupation | 2005b | The American Journal of Occupational Therapy | Autoetnográfico | Inglês |
Souza; Corrêa | Compreendo o pesar do luto nas atividades ocupacionais | 2009 | Revista do Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas da UFPA | Estudo de caso | Português |
Forhan | Doing, Being, and Becoming: A Family’s Journey Through Perinatal Loss | 2010 | The American Journal of Occupational Therapy | Autoetnográfico | Inglês |
Scaletti; Hocking | Healing through storytelling: An integrated approach for children experiencing grief and loss | 2010 | New Zealand Journal of Occupational Therapy | Estudo de caso | Inglês |
Hoppes; Segal | Reconstructing Meaning Through Occupation After the Death of a Family Member: Accommodation, Assimilation, and Continuing Bonds | 2010 | The American Journal of Occupational Therapy | Exploratório | Inglês |
Rosenwax; Malajczuk; Ciccarelli | Change in carers’ activities after the death of their partners | 2013 | Support Care Cancer | Exploratório | Inglês |
A Tabela 3 mostra os artigos por título, instrumentos para coleta de dados e os resultados dos estudos.
Tabela 3 artigos por título, instrumentos para coleta de dados e resultados.
Título | Instrumento de coleta de dados | Resultados |
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Meanings and Purposes of Caring for a Family Member: An Autoethnography (HOPPES, 2005a) | Anotações, recordação emocional, discussão e reflexão sistemática | Relata a trajetória pessoal de cuidar do pai, de ressignificação das relações familiares e da necessidade de enfrentamento dos problemas com o ente querido, a fim de minimizar os impactos do luto. |
When a Child Dies the World Should Stop Spinning: An Autoethnography Exploring the Impact of Family Loss on Occupation (HOPPES, 2005b) | Anotações, recordação emocional, discussão e reflexão sistemática | Propõe quatro estágios da ocupação durante o luto: 1) manutenção da ocupação: a ocupação é mantida enquanto se nega a gravidade da perda; 2) dissolução ocupacional: as ocupações familiares e diárias tornam-se desvalorizadas e podem perder o significado, 3) ambivalência ocupacional: sentimentos antagônicos são experimentados nas ocupações anteriormente rotineiras; 4) restauração e adaptação ocupacional: as ocupações são restauradas e adaptadas à nova condição, os planos são retomados e vislumbra-se o futuro. |
Compreendo o pesar do luto nas atividades ocupacionais (SOUZA; CORRÊA, 2009) | Entrevista e atividade expressiva | O estudo identificou que o luto é uma manifestação psíquica que influencia a qualidade de expressão e satisfação das atividades humanas ocupacionais, porém compreendeu que assistência Terapêutica Ocupacional ainda pouco investe na compreensão das demandas ocupacionais diante dos diversos processos de perdas e luto possíveis de serem vividos ao longo da vida. |
Doing, Being, and Becoming: A Family’s Journey Through Perinatal Loss (FORHAN, 2010) | Anotações, recordação emocional, discussão e reflexão sistemática | A autora descreve quatro fases vivenciadas por ela e por sua família após a perda perinatal do filho: 1) começando a jornada: momento anterior ao parto até a notícia da morte do filho; 2) percebendo a perda: momento em que a perda é percebida e iniciam-se as despedidas; 3) seguindo em frente: marcado inicialmente pelo sofrimento intenso, necessidade de suporte social e findado com a ressignificação da perda e instauração de esperança; 4) recomeço: marcado pelo equilíbrio entre necessidade de reconhecer a existência do filho e a sua ausência. |
Healing through storytelling: An integrated approach for children experiencing grief and loss (SCALETTI; HOCKING, 2010) | Criação de história por meio de caixa de areia (sandtray) | Relata que a criação de uma história em um livro ilustrado permite que as crianças contem repetidamente a história, para o público real ou imaginário, o que possibilita integrar os sentimentos que surgem. Assim, manifestações comportamentais de tristeza e raiva diminuíram à medida que as crianças desenvolveram maior competência ocupacional, observada em casa, na escola e nas interações. Identificam a terapia em grupo de luto e a utilização do sandtray como estratégias significativas para o trabalho com crianças enlutadas. |
Reconstructing Meaning Through Occupation After the Death of a Family Member: Accommodation, Assimilation, and Continuing Bonds (HOPPES; SEGAL, 2010) | Entrevista semiestruturada | O estudo aponta três processos ocupacionais distintos que foram fundamentais para a reconstrução do significado em suas vidas após a perda de um membro da família:1) Acomodação ocupacional: que refere-se à transformação dos padrões ocupacionais em resposta a mudar a realidade; 2) Assimilação ocupacional: refere-se a adaptações nas ocupações como forma de enfrentar a perda; e, 3) Continuação dos laços: refere-se a realização de ocupações como forma de continuar os laços com o falecido. As áres de ocupação investigadas foram: trabalho, lazer e participação social. |
Change in carers’ activities after the death of their partners (ROSENWAX; MALAJCZUK; CICCARELLI, 2014) | 1) Activity Card Sort-Australia (ACS--36 Health Survey v2 (SF-36v2) 3) Multidimensional Scale of Perceived Social Support (MSPSS) | O estudo aponta que as cuidadores se engajaram mais em atividades domésticas comprando o período pré e pós cuidado, no entanto ocorreu um declínio no engajamento de atividades sociais e de lazer dois anos após o falecimento do familiar que necessitava de cuidados. |
Como principais resultados pode-se identificar: escassez de artigos que apontam estudos da Terapia Ocupacional com pessoas enlutadas; a totalidade dos artigos inseridos na revisão apresentam abordagens qualitativas; os tipos de estudos (estudos autoetnográficos (3), estudos de caso (2) e estudo exploratório (2) e a identificação de três categorias principais para a análise temática.
Em relação à escassez de material produzido pela Terapia Ocupacional com pessoas enlutadas, Hoppes e Segal (2010) afirmam que a resposta ocupacional ao luto recebe surpreendentemente pouca atenção na literatura da Terapia Ocupacional. No Brasil, essa atenção é ainda menor, indicando a emergência de estudos que colaborem com a fundamentação teórica e a abordagem prática no cuidado terapêutico ocupacional a pessoa enlutada.
Compreende-se que a assistência terapêutica ocupacional ainda pouco investe na compreensão das demandas ocupacionais diante dos diversos processos de perdas e luto possíveis de serem vividos ao longo da vida (SOUZA; CORRÊA, 2009).
Neimeyer e Hogan (2001) identificaram nas abordagens qualitativas a possibilidade de exploração das realidades construídas social e subjetivamente, com o objetivo de descobrir perspectivas únicas e comuns das pessoas, ao invés de gerar “fatos” incontestáveis. Ao compreender o luto enquanto um fenômeno individual e social, acredita-se que as abordagens qualitativas tendem a melhor contextualizá-lo em sua complexidade.
A perspectiva qualitativa, em pesquisas sobre luto, tende a fornecer um paradigma alternativo para a investigação do tema, uma vez que tem o potencial de adicionar profundidade à avaliação do processo de luto, por meio da utilização de uma ampla gama de técnicas, coleta, análise e interpretação dos dados (STROEBE; STROEBE; SCHUT, 2003).
Em relação aos estudos autoetnográficos, Ellis e Bochner (2000) relatam que a autoetnografia permite o envolvimento do pesquisador, a narrativa de seus pensamentos e suas opiniões, diante do estudo em que está inserido; possibilita que todas as experiências emocionais do autor sejam incluídas no seu estudo, revelando detalhes ocultos da vida privada. Para tanto, a descrição da vida social e suas relações precisa ser a mais completa e envolvente possível. A reflexão na autoetnografia contextualiza a voz do indivíduo e do grupo na experiência vivida. O pesquisador analisa os aspectos culturais e sociais em que está inserido, outward, e após realiza uma análise interna do seu indivíduo, inward, tornando-se assim, vulnerável à resistência cultural e às interpretações.
Para a análise temática estudada, foram elencadas três categorias para essa discussão: 1) a relação entre os participantes do estudo e o falecido; 2) o impacto do luto nas ocupações; e, 3) a ocupação como meio e fim do processo terapêutico ocupacional com o sujeito enlutado.
Todos os estudos foram realizados com sujeitos que vivenciaram a morte de familiares.
Hoppes (2005a) relata toda a sua própria trajetória de cuidar do pai, desde o início de seu processo de dependência até o falecimento, refletindo sobre a importância da ressignificação da relação com o pai e o impacto desta ressignificação no enfrentamento do próprio luto.
Hoppes (2005b) relata o itinerário familiar após a perda de uma criança, no caso, seu sobrinho Marc. Conta da sua experiência enquanto tio, mas também faz apontamentos sobre a organização dos avós, pais e irmãos de Marc.
Forhan (2010) narra a sua história de perda perinatal e todos os sentimentos envolvidos nas três horas que esteve com o seu filho Quinn. Aborda o funcionamento da sua família nuclear após a perda, principalmente em relação ao enfrentamento do luto dos seus outros dois filhos Jessica e Benjamim.
Scaletti e Hocking (2010) descrevem o processo de enfrentamento de Emily, uma criança de 8 anos que perdeu o pai em um acidente automobilístico e começou a apresentar sentimentos de raiva, tristeza e comportamentos fora de controle, principalmente na escola. Recusava a ir à aula, evitava contato com sua família, dizia se sentir doente, expressando desejo de ficar na cama em tempo integral.
Hoppes e Segal (2010) realizaram um estudo com trinta e uma pessoas com histórias de perdas de um ente familiar: 18 participantes tinham perdido um dos pais, 5 perderam filhos, 4 tinham perdido os avós, 2 tinham perdido os cônjuges, 1 tinha perdido um irmão e 1 tinha perdido duas sobrinhas.
Rosenwax, Malajczuk e Ciccarelli (2014) avaliaram 40 mulheres que foram cuidadoras primárias de pacientes em cuidados paliativos, dois anos após o falecimento deles.
Do ponto de vista fenomenológico, o luto é descrito como uma vivência típica em situações de transformação e mudança abrupta nas formas de se dar do ser em uma relação eu-tu. Dessa forma, o sentido da perda e da relação são elementos fundamentais para a compreensão desta experiência, especialmente quando se trata de um ente querido (FREITAS, 2013).
Do ponto de vista ocupacional, compreende-se que a relação estabelecida com o falecido foi mediada pela ocupação que frequentemente é compartilhada e realizada com outros indivíduos. As ocupações que envolvem duas ou mais pessoas podem ser chamadas de “co-ocupações” (AMERICAN..., 2014).
Quando ocorre a interrupção no desempenho das “co-ocupações”, surgem mudanças no estilo de vida, havendo destituição de papéis, ou impossibilidade de realizar atividades com e/ou para aquele ente querido que faleceu. Nessas condições, observou-se a ausência das atividades realizadas anteriormente e direcionadas àqueles que morreram, o afastamento das ocupações e um “não saber o que fazer” (SOUZA; CORRÊA, 2009).
Souza e Corrêa (2009) relatam que o vazio da perda é a ausência do outro e das ocupações compartilhadas ou direcionadas a este. Em situação de luto, o enlutado questiona o que irá fazer sem a presença do ente querido, tendo que abandonar ou assumir novas funções. Nessas condições, o processo de luto não ocorre somente em decorrência do afastamento da pessoa falecida, mas também pela falta, pela perda da condição de desenvolver tal tarefa relacionada à pessoa que se foi. Assim, será então necessário desocupar-se de antigas e prazerosas atividades compartilhadas, reconstruindo seu mundo e adaptando-se a outras atividades que substituíram o conhecido pelo novo: outros fazeres, outra realidade, sem mais a presença no real da pessoa amada (SOUZA; CORRÊA, 2009).
Dessa forma, é no desempenho das ocupações e na “co-ocupação” que se estabelece a relação eu-tu, e a ausência do outro nas ocupações do “eu” oferece uma vivência inédita, na qual o enlutado terá que restabelecer seu desempenho ocupacional, reorganizar a sua rotina, rever os seus papéis ocupacionais e sociais e ressignificar a experiência do luto no seu cotidiano.
Hoppes (2005a) afirma que a experiência de cuidar do pai e de participar da família durante o processo de adoecimento e morte do seu ente querido envolve sentimentos contraditórios, mas também proporciona aprendizado e tem valor terapêutico para o enfrentamento do luto, uma vez que possibilita ressignificar os laços com o ente falecido.
Hoppes (2005b) faz uma correlação teórica com as fases do luto de Rando: a fase de evitação, a fase de conflito e a fase de acomodação. Destas, Hoppes (2005b) caracterizou quatro estágios da ocupação durante o luto: 1) manutenção da ocupação: a ocupação é mantida enquanto se nega a gravidade da perda; 2) dissolução ocupacional: as ocupações familiares e diárias tornam-se desvalorizadas e podem perder o significado; 3) ambivalência ocupacional: sentimentos negativos são experimentados nas ocupações anteriormente rotineiras; 4) restauração e adaptação ocupacional: as ocupações são restauradas e adaptadas à nova condição, os planos são retomados e vislumbra-se o futuro.
Forhan (2010) utiliza-se dos estágios identificados acima para descrever o impacto da perda perinatal nas próprias ocupações: na fase de manutenção ocupacional a autora afirma que continuou a executar tarefas profissionais e pessoais inerentes ao seu papel como terapeuta ocupacional, de paciente que precisava de cuidados médicos, esposa e mãe; na segunda fase relata que questionou o interesse e a capacidade de retornar ao trabalho; na terceira fase aponta o sentimento de culpa e a raiva que sentia pela perda do filho; e, por fim, na quarta fase reconhece o poder terapêutico de retomar as atividades cotidianas junto com sua família.
Souza e Corrêa (2009) encontraram nos familiares enlutados afastamento ou a baixa motivação para desempenhar ocupações e o isolamento social como fatores que implicavam no desenvolvimento das atividades significativas do dia a dia. Reforçam que o terapeuta ocupacional deve perceber o desligamento das pessoas de suas ocupações, inclusive daquelas relacionadas aos cuidados do seu próprio corpo, destinadas à manutenção de sua vida: o enlutado poderá deixava de ter prazer em manter seus cuidados pessoais (banho e alimentação), além do isolamento e afastamento sociais que geram grandes mudanças no desempenho das atividades de trabalho, participação social e de lazer.
Scaletti e Hocking (2010) descrevem que, após a perda do pai, a criança iniciou com comportamentos fora de controle, principalmente na escola. Também se recusava a ir à escola, a participar de atividades familiares, sentia-se doente e só queria ficar na cama. Também apresentava sentimentos de raiva e tristeza. Tais dificuldades apresentadas pela criança dificultavam a sua participação nas ocupações pertinentes a idade.
Hoppes e Segal (2010) identificaram relatos de que a experiência de perder um membro da família provocou um processo de reflexão sobre a vida e a natureza da sua participação na vida, o que levou a alterações no desempenho das ocupações. Quando nenhuma mudança ocorreu em uma determinada área de ocupação, a perda foi assimilada em esquemas anteriores. Se as experiências provocaram alguma mudança em áreas de ocupação, a perda foi acomodada.
Rosenwax, Malajczuk e Ciccarelli (2014) identificaram que o nível de atividades de cuidadoras de pacientes terminais se modifica antes e após o período em que oferece cuidados. O estudo apontou que, após dois anos de vivência do luto, existiu uma diminuição nas atividades sociais e de lazer, permanecendo as atividades domésticas, as atividades de sociais e de lazer, anteriormente associadas com saúde e bem-estar, foram reduzidas ou abolidas após a morte.
Assim, evidencia-se de forma clara que o luto tende a produzir mudanças no cotidiano e no desempenho ocupacional do enlutado, uma vez que perder alguém produz um movimento singular e único de ressignificação da própria vida.
O termo ocupação é entendido como o envolvimento na vida construído por múltiplas atividades. Assim, tanto as ocupações quanto as atividades são usadas para as intervenções dos terapeutas ocupacionais. A participação em ocupações é considerada o resultado final das intervenções e os profissionais utilizam ocupações durante o processo de intervenção como o meio para o fim (AMERICAN..., 2015).
Francisco (2004) afirma que a atividade humana é também compreendida enquanto recurso para criar, recriar, e produzir um mundo humano, repleto de simbolismo, intenções, vontades, desejos e necessidades. Tal fato justifica o uso das ocupações como meio. Nessa vertente é possível utilizá-las enquanto material para coleta de dados em pesquisa, como também identificar questões que possam estar interferindo no desempenho ocupacional como fim.
Dias (2015, p. 27), ao relatar o seu próprio processo de perda perinatal, utiliza-se da escrita como forma de enfrentamento: “Nesse nada que se faz presente, escrevo. Escrevo para não me perder no excesso vazio do falatório, quando o que se impõe é da ordem do indizível”.
Souza e Corrêa (2009) e Scaletti e Hocking (2010) relatam, respectivamente, a coleta de dados do estudo e uma intervenção terapêutica utilizando atividades expressivas como meio para compreender o luto nas ocupações. No primeiro estudo, os autores utilizaram oficina para livre expressão, enquanto o segundo utilizou a construção de história através da caixa de areia (sandtray).
O uso das atividades expressivas/criativas e a contação de histórias para ajudar as crianças a resolver problemas psicossociais é endossado na literatura da terapia ocupacional como forma de apoiar as crianças para contar sua história de sofrimento e perda, provocando a sua interpretação de eventos e auxiliando-as a dar sentido para a experiência (SCALETTI; HOCKING, 2010).
Souza e Corrêa (2009) identificaram, através da oficina para livre expressão, a dificuldade do enlutado em retomar as ocupações e o sofrimento pela ausência das “co-ocupações” com o ente falecido.
Scaletti e Hocking (2010), através da narrativa criada pela criança utilizando a caixa de areia (sandtray), afirmam que trata-se de uma estratégia terapêutica de modalidade projetiva não-verbal, recomendada para ajudar crianças a externalizar seu sofrimento. É uma abordagem terapêutica na qual as crianças são convidadas a escolher entre uma gama de figuras em miniatura e objetos para construir ou talvez se desfazer do que as incomoda (JEFFREYS, 2005; TAYLOR, 2009; ZARZAUR, 2004 apud SCALETTI; HOCKING, 2010). Na narrativa construída no estudo, foi possível identificar e tratar comportamentos que estavam interferindo as ocupações de educação, lazer e participação social da criança enlutada.
Assim, as autoras identificaram que a história é uma poderosa estratégia que terapeutas podem aproveitar para fins terapêuticos, tendo como objetivo ajudar as crianças a contarem suas histórias, fornecendo ao terapeuta com entendimentos a partir dos conteúdos desenhados na perspectiva das crianças. Conteúdos esses, que podem vir a ser compartilhados com familiares e colegas. E, que contar e recontar a história da perda e do luto, ajudaram a criança a construir sentido e integrar suas experiências e sentimentos (SCALETTI; HOCKING, 2010).
Nos estudos de Hoppes (2005a, 2005b), Forhan (2010), Hoppes e Segal (2010) e Rosenwax, Malajczuk e Ciccarelli (2014), o termo ocupação é utilizado como fim, visto que os achados estão relacionados ao desempenho do enlutado nas ocupações.
Hoppes (2005a) relata ocupações que foram inseridas na sua rotina, após iniciar os cuidados do pai. Relata a ressignificação da relação pai-filho e da sua própria história, a construção de novos olhares sobre tal relação e sobre a sua própria vida e a importância das “co-ocupações” neste processo. Finaliza o texto afirmando que
poucos meses foram necessários para o processo de luto, até que os significados e propósitos de cuidar de meu pai e participar socialmente da vida familiar, começaram a se cristalizar. Na triagem através de memórias e emoções com a esperança de compreender mais sobre a “interação entre forma ocupacional” e minha “história do desenvolvimento descobri outros significados” (HOPPES, 2005a, p. 268).
Hoppes (2005b) narra a trajetória de seus familiares após a perda de uma criança na família. Conta a reorganização da sua rotina, como a retomada do ciclismo, jardinagem e passear com os cães, além das atividades de professor. Relata que as atividades familiares (jantares em família, passeios de barco, assistir um jogo de beisebol) foram importantes para o fortalecimento familiar no processo de luto.
Segundo Giannini (2011 apud FREITAS; MICHEL, 2014), nos Estados Unidos da América, as famílias mais bem-sucedidas no processo de luto são aquelas que contam com suporte social, vivenciando inclusive um estreitamento de laços dentro da família.
Delalibera et al. (2015) encontraram que o mau funcionamento familiar durante o luto está relacionado com maior sintomatologia psicopatológica (ansiedade, depressão e estresse excessivo). Também relaciona-se a um processo de luto mais complicado, maior morbidade psicossocial e pior funcionamento social.
O estudo supracitado também apontou que o mau funcionamento da família está associado a pouco ou nenhum apoio social, dificuldade para recorrer aos recursos da comunidade, impedimentos para procurar apoio espiritual e menor capacidade funcional no trabalho. Dessa forma, o terapeuta ocupacional deve identificar o funcionamento familiar a fim de potencializar as ocupações familiares significativas, para contribuir com o enfrentamento familiar do luto, minimizando possíveis danos emocionais e/ou sociais a seus membros.
Forhan (2010) descreve a sua jornada e a de sua família após uma perda perinatal. Identifica as dificuldades do luto materno, do esfacelamento dos planos e da construção das lembranças do filho morto. Narra a sua experiência com o luto a partir das fases descritas por Hoppes (2005b). A ocupação se torna fim quando relata o seu retorno e do marido ao trabalho, o regresso dos filhos à escola e a construção de novos planos e esperanças futuros.
Freitas e Michel (2014) apontam o luto materno como “a maior dor do mundo”, isso porque, afirmam que ao nascer de um filho nasce uma mãe, porém o que dizer quando uma mãe perde seu filho? Em outros modos de enlutamento, o status social do enlutado muda: de casado para viúvo, ou de filho para órfão, mas a mãe não adquire um novo lugar. Ela continua a ser mãe, agora, porém, de um filho morto. Dessa forma, o terapeuta ocupacional precisa identificar as peculiaridades no processo de enfrentamento de uma mãe enlutada, visto que esse processo tem singularidades e diz de uma condição única de existir.
Hoppes e Segal (2010) analisaram três áreas de ocupação: trabalho, lazer e participação social e encontraram que 16 dos 31 participantes descreveram acomodações ocupacionais em pelo menos uma área de ocupação analisada. Isso significa que os participantes transformaram seus padrões ocupacionais em resposta a mudança da realidade.
Os participantes no estudo experimentaram a acomodação ocupacional quando os padrões ocupacionais anteriores tornaram-se insustentáveis ou irrelevantes após a morte de um membro da família. Exemplo disso foi uma mulher de 33 anos, cuja mãe morreu de câncer de mama. Depois de engajar-se em trabalho administrativo insatisfatório, ela saiu para trabalhar para “The Race for the Cure”, parte de uma fundação para a captação de recursos dedicados à educação, tratamento e busca de uma cura para o câncer de mama.
Hoppes e Segal (2010) relatam também que todos os participantes tiveram assimilação nas ocupações analisadas. A assimilação refere-se a adaptações nas ocupações como forma de enfrentar a perda. Exemplo disso foi a realização de atividades de lazer imediatamente após a morte de um membro da família, que incluía a manutenção de rotinas importantes como um jantar de família semanal, a continuidade nas aulas e taekwondo para os meninos após a morte de um filho, a manutenção das rotinas de exercícios físicos, de esportes como o golfe e o handebol.
Como conclusão do estudo, foram enfatizados os apontamentos dos participantes que consideram importantes a retomada do trabalho, a manutenção e o fortalecimento da participação social como fatores que influenciaram positivamente no enfrentamento do luto.
Rosenwax, Malajczuk e Ciccarelli (2014) analisaram a participação de cuidadoras de pacientes terminais dois anos após a morte deles nas atividades domésticas, sociais e de lazer e identificaram que houve a manutenção das atividades domésticas em detrimento das atividades de lazer e sociais. Os autores acreditam que a manutenção das atividades poderia ser facilitada se houvesse a participação em serviços comunitários, grupos recreativos e outros grupos de apoio e de interesse, tanto durante como depois de cuidar.
Conclui-se que o luto interfere nas ocupações e no desempenho ocupacional dos enlutados de forma significativa, e que o terapeuta ocupacional deve compor as equipes de apoio às pessoas enlutadas, a fim de proporcionar espaços de fala, ressignificação e reflexão para minimizar perdas ocupacionais a partir da vivência do luto.
Também foi possível identificar que as ocupações são potentes ferramentas para a intervenção com enlutados, seja como meio ou como fim, e que terapeutas ocupacionais devem observar, identificar e avaliar a influência do luto nas ocupações para auxiliar enlutados neste processo.
Por fim, estudos adicionais são necessários e urgentes a fim de oferecer evidências para a construção teórico-prática da terapia ocupacional com enlutados.