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Rim pélvico de doador vivo-relacionado para transplante: relato de caso e revisão da literatura

Rim pélvico de doador vivo-relacionado para transplante: relato de caso e revisão da literatura

Autores:

Tobias August Siemens,
Itamara Pereira Danucalov,
Alexandre Tortoza Bignelli,
Sílvia Regina Hokazono,
Luiz Sérgio Santos,
Fernando Meyer,
Ziliane Caetano Lopes Martins,
Miguel Carlos Riella

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.37 no.3 São Paulo jul./set. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150064

Introdução

O aumento do número de pacientes com insuficiência renal crônica terminal e a baixa oferta no número de rins de doadores vivos faz com que, apesar dos esforços dos médicos transplantadores, a fila dos pacientes esperando um rim cresça mais rapidamente que a oferta dos mesmos.1 Isso leva a uma dependência cada vez maior de rins cadavéricos e, nesse sentido, tem se buscado a utilização de rins com critérios expandidos, isto é, que não se encaixam na definição habitual de doador renal. Um exemplo são rins de pacientes falecidos acima de 55 anos ou de portadores de doenças como diabetes mellitus ou hipertensão arterial sistêmica (HAS), os quais podem ser submetidos à biópsia pré-transplante para se determinar viabilidade e sobrevida.2 Outra possibilidade é a utilização de rins ectópicos, como um rim pélvico, conforme relatamos a seguir.

Relato de caso

Paciente masculino de 25 anos, com história de HAS diagnosticada há 4 anos, com possível nefropatia familiar, foi submetido a transplante renal pré-emptivo quando apresentava depuração de creatinina de 11 ml/min/1,73 m2. Exceto cirurgia para retirada de amígdalas e correção de desvio de septo, não apresentava comorbidades. Tinha altura de 172 cm e peso 60 kg, com índice de massa corporal (IMC) de 20. Não tinha história prévia de transfusões, com painel reativo (PRA) de 0 e as sorologias para hepatite B, C e HIV negativas.

Como doador foi escolhido seu pai, de 49 anos, com história de HAS há 2 anos, controlada com monoterapia e monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA) normal. Além disso, apresentava histórico de colecistectomia videolaparoscópica há 3 anos e 2 episódios prévios de litíase urinária, sendo o último há 13 anos. Sua altura era de 163 cm e peso de 70 kg (IMC 26). Na investigação imunológica, apresentava mesmo tipo sanguíneo do filho (O), prova cruzada por citometria de fluxo negativa e 3/6 mismatches. Sua depuração de creatinina era de 132 ml/min/1,73m2 e a urina de 24 horas apresentava proteinúria de 50 mg.

Urotomografia mostrou rim direito em posição habitual e rim esquerdo pélvico com parênquima de 22 mm, apresentando cisto cortical de 11 mm em terço médio e fina septação interna (Bosniak II), sem alterações no sistema coletor. Cintilografia (Figuras 1 e 2) mostrou rim pélvico com função de 45% e vias excretoras pérvias. Angioressonância (Figuras 3 e 4) mostrou rim pélvico irrigado por duas artérias, originando-se do terço inferior da aorta e da artéria ilíaca comum esquerda. A veia renal drenava para veia ilíaca externa e não havia variação anatômica dos ureteres.

Figura 1 Cintilografia. 

Figura 2 Cintilografia. 

Figura 3 Angioressonância. 

Figura 4 Angioressonância. 

A retirada foi realizada por videolaparoscopia, com incisão de Pfannenstiel. Foi utilizada solução de perfusão de Eurocollins®. As artérias foram implantadas separadamente, uma delas apresentando trombo em um de seus ramos e posterior má perfusão. Foram realizadas anastomoses término-laterais, com artéria ilíaca comum, artéria ilíaca externa e veia ilíaca externa, com Prolene® 6.0. Tempo de isquemia fria foi de 1 hora e 36 minutos e tempo de isquemia quente de 3 minutos e 55 segundos. Houve diurese imediata e não foram deixados drenos.

Após melhora inicial da função renal, o receptor apresentou elevação dos níveis de ureia e creatinina plasmática no 3º dia de pós-operatório, necessitando de duas sessões de hemodiálise. Realizou biópsia no 4º dia de pós-operatório, que mostrou rejeição aguda vascular (Banff IIA), sendo submetido à pulsoterapia com 1,5 gramas de metilprednisona e terapia com imunoglobulina depletora de linfócitos (Thymoglobuline®) na dose acumulada de 6 mg/kg. Apresentou queda progressiva das escórias nitrogenadas e recebeu alta no 18º pós-operatório, com creatinina 2,0 mg/dl, usando tacrolimus 6 mg/dia, micofenolato mofetil 2 g/dia e corticoide em esquema de retirada. Atualmente, está com 2 anos e 9 meses pós-transplante renal e mantém creatinina em torno de 2,0 mg/dl. O doador segue tratamento de HAS como monoterapia, com creatinina em torno de 1,5 mg/dl.

Discussão

A incidência de rim pélvico em autópsias gira em torno de 1:1000, com discreto predomínio em homens.3 Portadores de rins pélvicos muitas vezes são excluídos como potenciais doadores por terem rins menores que o habitual, com irrigação arterial e venosa alterada, além de uma possível rotação do eixo de implantação.4 Pouco mais da metade dos casos apresentam hidronefrose, devido a alterações anatômicas na drenagem urinária.4 Até onde temos conhecimento, não existe um grande número de casos de transplante de rim pélvico relatados na literatura.5,11

Por causa dessas possíveis variações anatômicas, o doador com rim pélvico deve ser extensamente estudado, como no caso relatado, com exames mostrando a anatomia da irrigação arterial, venosa e do sistema coletor urinário. No caso relatado, assim como em outros da literatura, houve multiplicidade de artérias renais.6,9,12 Deve-se também comprovar a funcionalidade do rim em estudo, por meio da cintilografia, já que, em virtude das alterações do sistema coletor, esses rins têm risco de pielonefrites de repetição, cicatrizes renais e urolitíase.

No caso relatado, houve três mismatches e apesar de não terem sido encontrados anticorpos anti-DSA e o PRA do receptor pré-transplante ser 0, houve rejeição aguda vascular, com necessidade de terapia com imunoglobulina depletora de linfócitos e pulsoterapia com metilprednisolona, além de duas sessões de hemodiálise por oligúria e congestão. Concluímos que o transplante de um rim pélvico é possível do ponto de vista técnico e, por isso, deve ser considerado como opção viável, como mostra o caso relatado.

REFERÊNCIAS

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