versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 20-Abr-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00211415
Environmental heat is an aggravating factor for sugarcane workers, and manual cane cutting is one of the heavy work activities that favor the generation of metabolic heat. This can combine with other precarious working conditions to produce heatstroke, potentially leading to serious complications and even death. The study aimed to quantify the risk of overheating in sugarcane cutters in São Paulo, Brazil. Drawing on a specific methodology, the study used four years of data to estimate the Globe Thermometer Wet Bulb Index based on light, moderate, and heavy activities. The results showed that the legal limit was exceeded for continuous activity in periods from 1 to 8 hours, which requires control measures in order to continue working. The principal observation was the risk of heatstroke in the three types of activity: light, moderate, and heavy. The limits were exceeded throughout the work shift on 7% of the days for heavy activity and on 3% of the days for moderate activity. In addition, the areas with the highest risk of heatstroke coincide with predominant cane-growing.
Keywords: Heat Stress Disorders; Rural Workers; Saccharum
El calor ambiental es un agravante para las actividades de los trabajadores de plantaciones de caña de azúcar, siendo el corte manual una de las actividades pesadas que favorece la elevada generación de calor metabólico. Esto, asociado con otras condiciones precarias de trabajo, favorece el estrés térmico, pudiendo provocar graves enfermedades o incluso llevar a la muerte. El objetivo de este estudio es cuantificar el riesgo de sobrecarga térmica a la que los cortadores de caña de azúcar de São Paulo, Brasil, están expuestos. Mediante una metodología específica, se utilizaron cuatro años de datos para estimar el Índice de Bulbo Húmedo-Termómetro de Globo, considerando a las actividades como: leves, moderadas y pesadas. Los resultados muestran la extrapolación del límite legal de exposición para la actividad continua en períodos de 1 a 8 horas, lo que requiere medidas de control para la continuidad del trabajo. La principal constatación es la observancia del riesgo de sobrecarga térmica para los tres tipos de actividad: leve, moderada y pesada. Los límites de tolerancia se sobrepasan durante todo el turno de trabajo en cerca de un 7% dos días, en el caso de la actividad pesada, y en cerca de un 3% en la actividad moderada. Además, se percibió que las áreas con mayor riesgo de sobrecarga térmica son las mismas donde hay predominancia de plantaciones de caña de azúcar.
Palabras-clave: Trastornos de Estrés por Calor; Trabajadores Rurales; Saccharum
O Brasil é hoje o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e de seus derivados, açúcar e etanol. Essa cultura, introduzida no período colonial, representa, atualmente, um dos principais setores da economia agrícola nacional 1. Em 2009, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção nacional foi de 687 milhões de toneladas de cana-de-açúcar 2. Naquele ano, o setor sucroalcooleiro empregou cerca de quatro milhões de trabalhadores 3. Na safra de 2014, o IBGE estimou uma produção de 738 milhões de toneladas 2, dos quais o Estado de São Paulo é responsável por 55,8%.
A crescente mecanização da colheita em São Paulo, decorrente da Lei nº 11.241/024, tem foco ambiental e não de preservação da segurança e saúde do trabalhador. Em 2012, a mecanização atingiu, aproximadamente, 73% da área plantada. Apesar disso, em 2013, cerca de 200 mil trabalhadores atuaram no corte manual da cana-de-açúcar, predominantemente nas pequenas propriedades. Também se deve considerar que há áreas não mecanizáveis devido a inclinações maiores que 12º. Além disso, há a necessidade de a primeira colheita ser manual para não prejudicar a rebrota 5. Portanto, a total mecanização da colheita em São Paulo parece não se apresentar como uma realidade próxima.
As condições de trabalho oferecidas aos trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar não são adequadas, e isso é percebido há muitas décadas. O trabalho infanto-juvenil nos canaviais, já identificado como um grave problema na segunda metade da década de 1990 por Gomes et al. 6, ainda é uma realidade por volta do ano de 2010 7. O emprego formal tem crescido em São Paulo, mas em índices muito aquém ao aumento da produção. A produtividade média diária dos cortadores de cana-de-açúcar passou de 3 toneladas, na década de 1950, para 6 toneladas, na década de 1980, e 12 toneladas, no final da década de 1990 8. Normalmente, esses trabalhadores desenvolvem suas atividades sob péssimas condições de trabalho. A poluição no ar provocada pelo processo de queima da cana-de-açúcar, por exemplo, além de causar impactos ambientais 9, também favorece a ocorrência de problemas respiratórios nos trabalhadores e na população ao redor do cultivo 10,11. Além disso, de acordo com Bitencourt et al. 12, esses trabalhadores, na maioria das vezes, alimentam-se mal, são transportados de forma inadequada, não têm controle do processo de reidratação durante a jornada de trabalho e descansam apenas poucos minutos após a alimentação. Os trabalhadores da cana-de-açúcar não dispõem de todos os equipamentos de proteção individual e frequentemente improvisam para evitar danos físicos. O local do cultivo geralmente não possui equipamentos de primeiros socorros, condições mínimas de higiene e instalações sanitárias.
A cada jornada de trabalho, os cortadores de cana-de-açúcar realizam 3.792 golpes de facão, exercendo 3.994 flexões de coluna para produzir cerca de 11 toneladas de cana-de-açúcar 13. Um dos aspectos mais graves nesse processo é a remuneração por produção, abordada em vários trabalhos 7,14,15,16,17,18. A expectativa do ganho financeiro leva o trabalhador a ignorar os alertas fisiológicos, podendo ocasionar a exaustão e consequentes danos agudos e crônicos à sua saúde. Esse risco é acentuado pela competitividade estimulada entre os colegas e pela pressão hierárquica 8. Alessi & Navarro 14 destacam a extensa jornada de trabalho, a intensificação do ritmo de trabalho, o decréscimo real do valor dos salários e o descumprimento dos direitos trabalhistas como fatores marcantes nas características gerais do trabalho no campo. A troca térmica entre o corpo dos trabalhadores e o ambiente é prejudicada pela vestimenta típica utilizada no cultivo da cana-de-açúcar, podendo agravar o estado de estresse ao calor. Apesar de as roupas possuírem a finalidade de proteção e serem necessárias a determinados tipos de trabalho, podem restringir a perda de calor por evaporação 19,20.
Para a manutenção do funcionamento saudável do organismo, é necessário que ocorra o equilíbrio do calor gerado e recebido do ambiente com o dissipado, mantendo a temperatura do corpo em valores normais 21. A sobrecarga térmica ocorre quando há desequilíbrio térmico do corpo, isto é, recebe mais calor do que pode dissipar, causando seu aquecimento acima de 38ºC. Quanto maior a temperatura do corpo, maiores são os efeitos fisiológicos provocados pelo calor. A permanência em condições térmicas desfavoráveis pode causar o estresse térmico, resultando em debilidade do estado geral de saúde, alterações das reações psicossensoriais e queda de produção 22.
Há estudos que analisam os agravos ou alterações nas respostas fisiológicas de órgãos ou sistemas do corpo humano, relacionados à exposição ao calor 17,19,23,24,25,26. Outros trabalhos associam o calor com aumento da taxa de morbidade e mortalidade 27,28. No caso de atividade laboral, dependendo das características individuais de cada trabalhador, as doenças do calor podem se manifestar por meio de sintomas comportamentais, tais como irritabilidade, confusão mental, câimbras, fadiga severa repentina e outros. Quanto maior a quantidade de atividade física, maior a quantidade de calor gerada 29. Quantitativamente, a eficiência energética muscular é da ordem de 20%, ou seja, produz-se 5kW de calor a cada 1kW de trabalho realizado 30. No caso de falência do sistema termorregulador do corpo, há risco de morte, conforme abordado por Bitencourt et al. 12 e Paixão & Nogueira 31. E deve-se ainda considerar que existe claro risco de estresse térmico mesmo quando os trabalhadores não exercem atividades físicas extremas, somente pelas condições de clima 32.
Há evidências de que a exposição ao calor associada à atividade representa um risco laboral significativo, sendo inclusive responsável por inúmeras mortes 12,31. Apesar disso, há poucos estudos relacionando o efeito do calor sobre os trabalhadores que exercem atividades específicas, sobretudo no caso dos cortadores da cana-de-açúcar. Contudo, para outras atividades, existem alguns trabalhos relacionando a exposição laboral ao calor com os agravos à saúde. Na Tailândia, por exemplo, Tawatsupa et al. 23 observaram uma relação do calor com as doenças renais. Sett & Sahu 25 relacionaram os efeitos do calor com o decaimento da produtividade no sistema produtivo de tijolos na Índia. No Canadá, Jay & Kenny 19 caracterizaram os riscos de exaustão com possibilidade de choque térmico pelo aumento da temperatura interna do corpo por volta de 3ºC.
Buscando entender quantitativamente a realidade da exposição ao calor por parte dos trabalhadores do cultivo de cana-de-açúcar, objetiva-se, neste artigo, calcular e analisar, espacialmente para o Estado de São Paulo, o risco de sobrecarga térmica que esses trabalhadores foram expostos durante um período de quatro anos. Para tanto, apresentam-se análises espaciais e pontuais da frequência de dias em que o Índice de Bulbo Úmido - Termômetro de Globo (IBUTG) ultrapassa o limite de tolerância para as atividades leve, moderada e pesada.
O cultivo de cana-de-açúcar é realizado predominantemente nas porções central, norte e oeste do Estado de São Paulo, conforme disponibilizado em http://www.dsr.inpe.br/laf/canasat/cultivo.html. Entretanto, neste estudo, os cálculos e o mapeamento do IBUTG são realizados para todo o Estado de São Paulo. Os dados meteorológicos utilizados na estimativa do IBUTG são temperatura do ar (T), temperatura do ponto de orvalho (Td ), pressão atmosférica (p), radiação solar global (R) e velocidade do vento (V). Esses dados são observados pela rede de estações meteorológicas de superfície do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), distribuídas em 31 localizações, conforme apresentado na Figura 1. As estações meteorológicas são automáticas e fornecem dados atmosféricos a cada hora.
O IBUTG é o principal parâmetro de análise para a quantificação do estresse térmico. Esse índice foi desenvolvido por Yaglou & Minard 33, inicialmente, para estudar as relações entre o calor e suas consequências fisiológicas durante treinamentos militares. É o índice legal apresentado na Norma Regulamentadora de Segurança e Higiene do Trabalho 15 (NR-15) 34 e também foi adotado pela International Organization for Standardization (ISO) 7243 35, tendo aprovação mínima de 75% dos países membros da ISO. A utilização do IBUTG, na análise de sobrecarga térmica laboral, pode ser identificada em estudos de diversas regiões do mundo, tais como na Costa Rica 32 ou no Sudeste Asiático 36.
O IBUTG para ambientes externos com carga solar é dado por:
IBUTG = (0,7 . Tn ) + (0,1 . T) + (0,2 . Tg ) (1)
em que Tn é a temperatura de bulbo úmido "natural", Tg é a temperatura de globo, e T é a temperatura do ar.
Os limites de tolerância (Tabela 1) para trabalhadores expostos ao calor são estabelecidos pela NR-15, a qual define que as medições do IBUTG sejam feitas no local onde o trabalhador executa suas atividades 34. Quando o IBUTG ultrapassa valores de 30ºC (atividade leve), 26,7ºC (atividade moderada) ou 25ºC (atividade pesada), tornam-se necessárias medidas preventivas no trabalho para evitar doenças ocupacionais. Acima desses valores (linhas 2, 3 e 4 da Tabela 1), os intervalos de IBUTG correspondem a períodos maiores de descanso, podendo alcançar 15, 30 ou 45 minutos de descanso a cada hora trabalhada. Nas situações mais extremas, quando o IBUTG ultrapassa os limites de 32,2ºC, 31,1ºC e 30ºC, para atividades leve, moderada e pesada, respectivamente, a condição deve ser entendida como de risco grave e eminente. Para essa condição, não é permitido o trabalho sem adoção de medidas especiais de controle. Ressalta-se ainda que os trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar geralmente trabalham em regime contínuo, por períodos maiores que uma hora, sem gozar de descanso térmico necessário para o resfriamento do corpo. Nesse caso, os limites de tolerância a serem considerados para a avaliação da exposição térmica são os da primeira a última linha da Tabela 1.
Tabela 1 Quadro 1 do Anexo 3 da Norma Regulamentadora 15 (NR-15) que descreve os limites de tolerância (IBUTG, em ºC) para exposição ao calor.
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (NR-15 - atividades e operações insalubres) 34.
Lembra-se que os limites de tolerância são definidos para o pagamento ou não de adicional de insalubridade, enquanto não se adotam medidas de controle. Por outro lado, a origem do IBUTG não foi baseada em estudos sobre a saúde do trabalhador e, portanto, não é fronteira entre a saúde e o adoecimento. As mortes no campo para essa atividade, conforme relatado por Bitencourt et al. 12, talvez sejam indicativos disso. Ainda que não sejam, são notórias as péssimas condições de trabalho as quais esses trabalhadores são submetidos, principalmente se considerarmos o poder econômico do setor sucroalcooleiro.
A Norma Regulamentadora 09 (NR-09) 37, ao abordar o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), recomenda monitoramento sistemático e repetitivo. Embora, por vezes, exista alguma complexidade dos cenários e situações sob as quais os trabalhadores executam suas tarefas 38, espera-se que o IBUTG seja monitorado conforme determina a norma. Entretanto, é senso comum que a maioria das empresas realiza apenas monitoramentos esporádicos ou, na melhor das hipóteses, por períodos de, no máximo, três dias. Em geral, a frequência dessas medidas são anuais, sendo executadas por empresas terceirizadas para elaboração de laudos. Daí, surge a importância da utilização de métodos de estimativa dos valores de IBUTG, calculados a partir de outras variáveis ambientais observadas, operacionalmente, por redes de estações meteorológicas. O IBUTG estimado pode ser comparado com os valores observados em campo, além de subsidiar a ação do estado na vigilância das condições de trabalho, fornecer informações prévias sobre as áreas e épocas do ano de maior risco térmico ou disponibilizar um histórico do comportamento do IBUTG para fins de pesquisa ou ações trabalhistas.
Existem muitos métodos de estimativa do IBUTG propostos na literatura e testados em várias partes do mundo 39,40,41,42,43,44,45,46,47. Neste estudo, utiliza-se o método proposto recentemente por Maia et al. 48, o qual utilizou dados meteorológicos observados no Estado de São Paulo para o seu desenvolvimento. A formulação é baseada no método proposto por Hunter & Minyard 41. Uma das principais adequações apresentadas por Maia et al. 48 foi a consideração de variação da fração de radiação direta do sol (fdb ) e da fração de radiação difusa (fdif ), parâmetros considerados constantes por Hunter & Minyard 41. Segundo Maia et al. 48, essa consideração garante uma maior precisão na estimativa do IBUTG, pois contabiliza os efeitos da nebulosidade, situação que comumente ocorre em dias quentes no Estado de São Paulo.
Os valores de T são diretamente observados pelas estações meteorológicas do INMET, enquanto que Tn e Tg são estimados por meio de expressões matemáticas, em que Tn é obtido por:
Tn = 15,14587 + (0,00047711 . R) - (0,56900 . V) + (0,45258 . Td ) (2)
e Tg é obtido por:
0,115 . U 0,58 . Tg + ε . σ . Tg 4 = A . R . [fdb . F + (1 + αgr ) . fdif ](3) + εa . (1 - αg ) . σ . (T + 273)4 + 0,115 . U 0,58 . T(3)
sendo U a velocidade do vento (m/h) observada pela estação meteorológica do INMET e corrigida da altura de 10m para 1,5m, ou seja, U = V (1,5m/10m)0,21, ε é a constante de emissividade térmica do globo, σ é a constante de Stefan-Boltzmann, A é o coeficiente de absorção de radiação do globo, F é o fator de forma do globo, αgr é o albedo do solo, εa é a emissividade térmica da atmosfera, a qual é uma função da temperatura do ponto de orvalho (Td ), da temperatura do ar (T) e da pressão atmosférica (p), sendo Td , T e p, juntamente com a variável R, observados pelas estações meteorológicas do INMET.
Os procedimentos para obtenção de fdb e fdif , assim como todos os demais detalhes para a estimativa do IBUTG utilizada neste trabalho, podem ser encontrados em Maia et al. 48. Todos os cálculos para estimativa do IBUTG são realizados por meio de um software operacionalizado no Centro Técnico Nacional (CTN) da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO). Esse software possui uma interface de acesso público no endereço eletrônico http://www.fundacentro.gov.br/sobrecarga-termica/inicio.
A matriz de IBUTG foi construída com pontos de latitude e longitude igualmente espaçados a cada 40km. Os valores de IBUTG são atribuídos para cada um desses pontos utilizando os dados atmosféricos observados pelas estações meteorológicas localizadas dentro de um raio de 80km. Assim, a estimativa pontual do IBUTG pode tomar, como base, observações de mais de uma estação meteorológica, sendo o valor final obtido por meio de interpolação espacial. No caso da T, também é feito uma correção para as diferenças de altitude, por meio do lapse rate ambiental. Foram considerados para análise somente os pontos localizados nos limites do Estado de São Paulo, totalizando 137 pontos.
Os cálculos são realizados para todos os dias do período de 1º de setembro de 2010 a 31 de agosto de 2014. E, para cada dia, obtém-se o valor de IBUTG a cada hora, entre 9 e 16 horas (desconsiderando o horário brasileiro de verão). O valor de IBUTG estimado para cada hora cheia é representativo dos 60 minutos anteriores. Portanto, a análise neste estudo é efetivamente realizada para um turno de 8 horas, compreendido entre 8 e 16 horas. Esse período é o turno normalmente utilizado pelos trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar para o desenvolvimento de suas atividades.
A análise final é realizada por meio de mapas de frequência. Assim, para cada ponto, é calculado o percentual de dias com impedimento de trabalho contínuo, durante 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 horas consecutivas, considerando trabalhos do tipo leve, moderado e pesado. O tipo de atividade é classificado conforme o calor metabólico gerado, o qual pode ser obtido por diversos métodos, tais como consumo de oxigênio, batimento cardíaco, decomposição de movimentos na execução da tarefa ou por meio de tabelas. Neste artigo, considera-se atividade pesada aquela que despende mais que 440Kcal/h, conforme Quadro nº 3 da NR-15 34. A atividade de corte manual de cana-de-açúcar, por meio da decomposição de movimentos, por exemplo, despende 532Kcal/h (ISO 8996) 49.
O percentual de dias (Pd(n) ) no ponto n, com n = 1, 2, ..., 137, é dado pela expressão:
Pd(n) = [Nd(n) /N(n) ] x 100 (4)
em que Nd(n) é o número de dias com impedimento de trabalho contínuo no ponto n, e N(n) é o número total de dias que o IBUTG foi estimado no ponto n. O N(n) depende da disponibilidade dos dados meteorológicos contidos na série de dados. Os pontos com mais de 15% de dias faltantes foram desconsiderados. A análise final dos resultados é realizada pelo mapeamento de Pd(n) no Estado de São Paulo. Esse mapeamento consiste na plotagem em isolinhas realizada por meio do software Grid Analysis and Display System (GrADS; http://cola.gmu.edu/grads/).
A vestimenta utilizada pelos trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar exerce um importante papel para a condição de estresse térmico. A vestimenta atua como uma barreira à troca de calor entre o corpo e o ambiente, dificultando ou impedindo o resfriamento. A eficiência dessa troca de calor depende de vários fatores, entre eles, o tipo e cor do tecido. Por isso, algumas legislações e normas internacionais recomendam ajustes nos valores de IBUTG para diminuir os limites de tolerância, de acordo com o tipo de vestimenta utilizado na atividade laboral. A Associação Americana de Higiene Industrial, nesses casos, recomenda a diminuição do IBUTG em 2ºC, o que tornaria ainda mais crítica a situação de exposição ao calor. No entanto, a legislação brasileira não leva, em conta, a vestimenta utilizada pelo trabalhador. Desde a sua criação, em 1978, a NR-15 não foi atualizada nesse aspecto. Assim, todas as faixas de valores do IBUTG, utilizadas para os cálculos de frequência e discutidas nessa seção, não foram definidas sob a consideração da vestimenta do trabalhador, seguindo estritamente os valores previstos na NR-15.
Considerando o tipo de atividade leve, o limite de tolerância nunca é ultrapassado durante períodos de 2 a 6 horas consecutivas nas áreas de maior altitude (Figuras 2 e 3; em especial 2d, 2g, 2j, 3a e 3d) e durante períodos de 7 a 8 horas consecutivas em áreas mais abrangentes de São Paulo (Figuras 3g e 3j). Percebe-se ainda que, considerando o tipo de atividade moderada, o limite de tolerância nunca é ultrapassado durante 8 horas consecutivas na região da Serra da Mantiqueira (Figura 3k). No entanto, em todas as outras situações, ou seja, para qualquer tipo de atividade e qualquer período de tempo considerado, foi verificado algum nível de risco de sobrecarga térmica no Estado de São Paulo. No caso de atividade leve, a frequência máxima (entre 6 e 9%) de dias com o IBUTG superando o limite de tolerância durante 1 hora ocorre no norte de São Paulo (Figura 2a).
Considerando atividade moderada, a frequência de dias em que o IBUTG ultrapassa o limite de tolerância em período de 1 hora é superior a 15%. Esse máximo ocorre no norte do estado, enquanto que, na maior parte das demais áreas, esses valores de frequência ficam entre 9 e 15% (Figura 2b). Conforme se contabiliza maiores períodos (2 a 7 horas) com o IBUTG ultrapassando o limite de tolerância para atividade moderada, a frequência de dias com essa situação passa a ser cada vez menor (Figuras 2e, 2h, 2k, 3b, 3e e 3h). Contudo, os maiores valores de frequência sempre ocorrem nas áreas do centro, norte e oeste de São Paulo. Observa-se que, na condição em que todo o turno de trabalho (8 horas consecutivas) fica com IBUTG acima do limite de tolerância para atividade moderada, a frequência de ocorrência é baixa, ficando entre 0 e 3% em todo o Estado de São Paulo (Figura 3k).
Entre todas as situações verificadas, o maior risco de sobrecarga térmica, com valores de frequência entre 18 e 21%, também é atribuído para o norte do estado (Figura 2c). Esse é o caso em que o IBUTG ultrapassa o limite de tolerância para atividade pesada durante 1 hora. Ainda considerando o período de 1 hora de atividade pesada, as demais áreas do estado também mostram frequência alta, em que 9 a 18% dos dias apresentam valor de IBUTG maior que o limite de tolerância. Computando períodos maiores (2 a 8 horas - Figuras 2f, 2i, 2l, 3c, 3f, 3i e 3l) com o IBUTG acima do limite de tolerância para atividade pesada, nota-se que a frequência de ocorrência diminui gradativamente. Porém, é bastante claro que os maiores valores de frequência geralmente ocorrem no centro, norte e oeste do Estado de São Paulo. Para as situações de 8 horas consecutivas com IBUTG acima do limite de tolerância para atividade pesada, a frequência de ocorrência é menor, ficando entre 6 e 9% no norte de São Paulo.
Figura 2 Frequência de dias com Índice de Bulbo Úmido - Termômetro de Globo (IBUTG) acima do limite de tolerância durante períodos de 1, 2, 3 e 4 horas.
Figura 3 Frequência de dias com Índice de Bulbo Úmido - Termômetro de Globo (IBUTG) acima do limite de tolerância durante períodos de 5, 6, 7 e 8 horas.
Referenciando novamente as informações contidas em http://www.dsr.inpe.br/laf/canasat/cultivo.html, que mostram as áreas de safra do cultivo de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo, nota-se que as áreas onde predominantemente há cultura de cana-de-açúcar são coincidentes com as áreas de maior risco de estresse térmico (Figuras 2 e 3).
Evidentemente que há uma gradativa diminuição da frequência de dias com IBUTG ultrapassando os limites de tolerância, conforme aumenta o número de horas em que o IBUTG é extrapolado (Figura 4). No entanto, considerando as áreas mais críticas de São Paulo em termos de sobrecarga térmica (máxima frequência na Figura 4), percebemos que o trabalhador que desenvolve atividade leve estará exposto a 1 hora com IBUTG acima do limite de tolerância com uma frequência de 7,8% dos dias de trabalho (Figura 4a). Contudo, ainda considerando atividade leve no local de maior exposição à sobrecarga térmica, o risco do IBUTG ultrapassar o limite de tolerância durante todo o turno de trabalho (8 horas) é nulo (Figura 4a). No caso de atividade moderada, a situação mais provável (frequência de 15,59%) é a de o trabalhador ficar exposto a 1 hora com IBUTG acima do limite de tolerância (Figura 4b). Já para atividade pesada, que inclui o corte da cana-de-açúcar, o trabalhador estará sujeito a uma frequência de 19,49% de dias em que estará exposto durante 1 hora a valores de IBUTG acima do limite de tolerância (Figura 4c).
Figura 4 Frequência máxima (▲), mínima (▼) e média (■) de dias com Índice de Bulbo Úmido - Termômetro de Globo (IBUTG) acima do limite de tolerância por período de 1 a 8 horas, de acordo com o tipo de atividade.
Nas áreas de São Paulo com maior exposição à sobrecarga térmica, a situação em que todo o turno de trabalho (8 horas) registra IBUTG acima do limite de tolerância ocorre com uma frequência de 7,07%, 3,29% e 0,07% para as atividades pesada, moderada e leve, respectivamente (Figura 4). Essa é uma situação muito crítica em que, durante todo o turno de trabalho (8 horas), os valores de IBUTG ultrapassam os limites de tolerância previstos em lei. É importante ressaltar que, de acordo com os limites apresentados na Tabela 1, nessas situações, o trabalho passa a não ser permitido sem que se adote o regime trabalho descanso e algumas medidas preventivas.
As duas situações marcadas com círculo na Figura 5 ocorreram nas áreas de maior risco de sobrecarga térmica para atividade do tipo pesada, considerando as situações em que o IBUTG ultrapassa o limite de tolerância durante 1 hora (ponto 1) e durante 8 horas (ponto 2). Os gráficos na Figura 5 mostram a evolução do IBUTG no dia em que o seu valor foi o mais alto em toda a série histórica analisada. Nota-se que, nos dois pontos analisados, o valor de IBUTG ultrapassa os limites de tolerância para atividades leve e moderada (25ºC e 26,7ºC, respectivamente) durante todo o turno de trabalho. Também, nesses dois pontos, o IBUTG se igualou ou ultrapassou o limite de tolerância para atividade pesada (30ºC) em 6 das 8 horas, sendo que, no ponto 1, o valor máximo do IBUTG chega a 34,2ºC às 14 horas. Nessa situação, sem que medidas especiais sejam adotadas, há exposição a risco grave e eminente. Para tanto, a norma determina a obrigação de adoção de medidas que garantam a integridade da saúde da pessoa exposta. Ressaltamos, ainda, que ambos os pontos, considerados aqui como os que possuem os maiores riscos de exposição à sobrecarga térmica no Estado de São Paulo, localizam-se em uma das áreas de maior atividade da cultura de cana-de-açúcar, conforme informação disponibilizada em http://www.dsr.inpe.br/laf/canasat/cultivo.html. O ponto 2, em especial, faz parte da região mais densamente caracterizada pela cultura.
Vários fatores devem ser considerados na avaliação dos efeitos do calor à saúde dos trabalhadores, tais como as vestimentas e a vulnerabilidade socioeconômica do indivíduo. A desconsideração desses fatores é um limite aos resultados de risco provenientes do estresse térmico, tais como os apresentados neste estudo. Contudo, a combinação dos fatores atividade física e calor ambiental colabora de forma sinergética e se apresenta como um importante papel para o aumento do risco de agravos à saúde. Neste estudo, analisou-se o risco de sobrecarga térmica por meio do cálculo de frequência de dias com valores de IBUTG acima dos limites previstos em lei, sob a consideração das características de trabalho dos trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo. O IBUTG foi estimado a partir de dados meteorológicos, por meio de metodologia desenvolvida especificamente para São Paulo.
Os resultados deste estudo revelaram considerável frequência de dias com IBUTG elevado, justamente nas áreas de maior produção de cana-de-açúcar. Os valores de IBUTG ultrapassam os limites de tolerância para os três tipos de atividade: leve, moderada e pesada. Nas áreas de São Paulo com maior exposição à sobrecarga térmica, em 1 das 8 horas de trabalho, o IBUTG ultrapassa o limite de tolerância em cerca de 20% dos dias de trabalho para atividade pesada, cerca de 16% para atividade moderada e cerca de 8% para atividade leve. A situação em que o IBUTG ultrapassa os limites de tolerância durante todo o turno de trabalho (8 horas) ocorre em cerca de 7% dos dias de trabalho, para atividade pesada, e em cerca de 3%, para atividade moderada. O risco de essa situação ocorrer para atividade leve é praticamente nulo. No dia mais crítico de toda a série histórica de um dos pontos de maior exposição à sobrecarga térmica, o valor máximo para o IBUTG alcançou 34,2ºC.
Os resultados apresentados neste estudo são potencialmente importantes de serem considerados no planejamento de políticas públicas e/ou adequações de normas trabalhistas, especialmente aquelas voltadas para trabalhadores que exercem atividades pesadas a céu aberto, como é o caso dos trabalhadores da cana-de-açúcar. Essa temática merece maior atenção ainda ao considerarmos os cenários futuros de mudanças climáticas. Com o advento do aquecimento global, períodos com excessivo calor devem passar a serem mais comuns no Brasil, tendendo a agravar o risco de exposição à sobrecarga térmica.