versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 20-Abr-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00050915
Este artículo tiene por objetivo caracterizar los internamientos por condiciones sensibles a la atención primaria (ICSAP) entre residentes de Itaboraí, un municipio con elevadas tasas de estos internamientos en el Estado de Río de Janeiro, Brasil, identificar factores asociados y explorar el impacto sobre ellas del cierre de un hospital, alimentando el debate sobre el uso indiscriminado del indicador para inferencias acerca de la expansión y calidad de la atención primaria. El estudio se basó en datos del Sistema de Información Hospitalaria del Sistema Único de Salud. Asociación entre la ocurrencia de ICSAP con variables demográficas e inherentes a los hospitales fueron analizadas con el test χ2. Modelos de regresión logística averiguaron el comportamiento de los ICSAP año a año. Los internamientos más frecuentes fueron por insuficiencia cardíaca, asma, gastroenteritis, enfermedad pulmonar obstructiva crónica y diabetes mellitus. Sus oportunidades de ocurrencia fueron mayores en el sexo masculino, mestizos, en los extremos de edad y en hospitales privados y filantrópicos. La evolución de las tasas de ICSAP en el transcurso de los años fue influenciada por el cierre de un hospital, sugiriendo cautela en su atribución a la mejora de la calidad de la atención primaria.
Palabras-clave: Hospitalización; Atención Primaria de Salud; Calidad de la Atención de Salud
As internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) são internações por doenças passíveis de controle e redução por meio da atenção básica acessível e efetiva, envolvendo prevenção e continuidade do cuidado. Têm sido consideradas indicadoras indiretas da qualidade dos serviços de atenção básica, apontando a possibilidade de barreiras de acesso aos serviços (geográficas, culturais, financeiras ou organizacionais) e prestando-se ao monitoramento da efetividade e desempenho do sistema de atenção básica 1,2. Seguindo a iniciativa de muitos países na década anterior, o Brasil teve a sua primeira Lista de Condições Sensíveis à Atenção Primária publicada em 2008, após iniciativas independentes nos estados do Ceará (2001), Minas Gerais (2007) e Paraná (2006), não comparáveis nem passíveis de uso nacional pelas suas especificidades regionais 2. O objetivo da lista brasileira foi criar um instrumento que pudesse ser usado para a avaliação da atenção primária no país, contribuindo para o planejamento e gestão dos serviços de saúde nos âmbitos nacional, estadual e municipal.
No sentido de melhor compreensão sobre as ICSAP, têm sido frequentes, nacional e internacionalmente, estudos voltados para a sua caracterização e identificação de fatores sociodemográficos e relativos à prestação dos cuidados de saúde a elas associados 3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18. Também têm merecido destaque, no Brasil, estudos ecológicos analíticos associando o declínio de ICSAP à expansão da atenção primária pela Estratégia Saúde Família (ESF) 19,20, assim como trabalhos descritivos de correlação entre a queda das taxas ou proporções de ICSAP e a expansão da ESF em áreas geográficas mais circunscritas 21,22,23.
Originado no âmbito de um esforço de monitoramento epidemiológico na área de implantação do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (COMPERJ) 24, o maior projeto individual da história da Petrobrás, instalado em 2006 e com previsão inicial de funcionamento a partir de 2014, este estudo foi motivado pela observação de elevada ocorrência de ICSAP em Itaboraí, município sede do empreendimento, localizado na Região Metropolitana II do Rio de Janeiro. Estimativas relativas aos anos de 2008 25 e 2010 e 2011 (Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. http://idsus.saude.gov.br/mapas.html, acessado em 23/Mar/2016), indicavam, no município, proporções de ICSAP de, respectivamente, 41,6%, 43,1% e 48,2%, bem superiores às observadas na região onde o município está inserido e no Estado do Rio de Janeiro como um todo, pouco maiores que 30%.
Itaboraí tem uma extensão territorial de 429km2 e registrou, em 2010, uma população de 218.008 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. http://www.sidra.ibge.gov.br/pnad/default.asp, acessado em 23/Mar/2016). Apresenta perfil urbano (98,8%, em 2000) e densidade demográfica média de pouco mais de 500 habitantes/km2, que chega a ultrapassar 1.000 habitantes/km2 em distritos mais centrais 26. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apontam que, em 2010, somente 30% dos domicílios eram conectados à rede geral de distribuição de água, 40,8% tinham esgotamento sanitário via rede geral ou pluvial e 95,9% contavam com coleta regular de lixo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. http://www.sidra.ibge.gov.br/pnad/default.asp, acessado em 23/Mar/2016). O município já fez sua transição epidemiológica, sendo as quatro principais causas de óbito as doenças do aparelho circulatório (23%), as causas externas (13%), as doenças do aparelho respiratório - principalmente gripe, pneumonia e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) - (11%) e as doenças endócrinas (11%) 24.
A atenção primária à saúde no município foi estruturada inicialmente nos anos 1990, consolidando-se com o Programa Saúde da Família (PSF)/ESF na primeira década deste milênio, com cerca de 45 equipes - compostas por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde - distribuídas em 34 unidades, e cobertura de aproximadamente 70% da população (Ministério da Saúde. http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php, acessado em 23/Mar/2016). Entre 2009 e 2012 enfrentou problemas de descontinuidade de gestão, insuficiência de recursos e baixa capacidade de coordenação do trabalho das equipes de saúde 27. Em 2012, o desempenho do Sistema Único de Saúde (SUS) no município foi avaliado como precário (4,95, entre 0 e 10), situando-se próximo ao do Estado do Rio de Janeiro (4,58) e abaixo da média nacional (5,47) (Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. http://idsus.saude.gov.br/mapas.html, acessado em 23/Mar/2016).
Este artigo objetiva caracterizar as ICSAP entre residentes de Itaboraí, identificar fatores associados à sua ocorrência no conjunto de internações de residentes no município cobertas pelo SUS e explorar o impacto do fechamento de um hospital sobre as taxas de ICSAP, alimentando o debate que tem sido travado sobre o uso indiscriminado do indicador para inferências acerca da expansão e qualidade da atenção primária 28,29,30. O período em foco é o compreendido entre 2006 e 2011, quando a cobertura do PSF/ESF no município variou, de forma irregular, entre 65 e 71% aproximadamente (Ministério da Saúde. http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php, acessado em 23/Mar/2016).
O estudo desenvolvido baseou-se em dados secundários oriundos do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), contemplando o conjunto de internações cobertas pelo SUS em residentes no Município de Itaboraí, entre 2006 e 2011, excluindo aquelas de longa permanência e por partos.
Constituiu-se um banco de dados baseando-se na junção dos arquivos das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) reduzidas, disponibilizados no site do DATASUS (http://www.datasus.gov.br). Os arquivos eletrônicos, obtidos em formato comprimido "dbc", foram unidos e descompactados em formato "dbf", usando-se o TabWin do DATASUS.
Na composição do banco, foram selecionadas variáveis relativas aos hospitais (identificação, natureza e município de localização), aos pacientes (data de nascimento, sexo e raça/cor) e às internações propriamente (data de internação, data de saída, diagnóstico principal, desfecho, valor total pago pelo SUS, valor pago por uso de unidade de terapia intensiva - UTI). As análises aqui apresentadas consideram dois triênios, 2006-2008 e 2009-2011.
Para a caracterização geral da ocorrência de ICSAP, as respectivas taxas de hospitalização foram calculadas com base no quociente entre o número de pacientes internados por diagnósticos classificados pelo Ministério da Saúde (Portaria SAS/MS nº 221/200831) como condições sensíveis à atenção primária (CSAP) no município e a população total do município, multiplicado por 10.000; a população do município foi obtida no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Análises bivariadas foram realizadas no sentido de explorar associações entre a ocorrência de ICSAP (vs. outras causas) e variáveis potencialmente explicativas da sua variação, disponíveis no banco de dados. Sendo as variáveis independentes categorizadas, utilizou-se o teste estatístico do qui-quadrado (χ2), verificando-se a hipótese nula de não associação. Modelos de regressão logística foram explorados no sentido de identificar o efeito independente das variáveis explicativas na ocorrência de ICSAP, optando-se por considerar possíveis diferenças nas suas chances ano a ano, tomando o ano de 2009 como referência. Todas as análises estatísticas foram realizadas com o pacote estatístico SAS, versão 9.2 (SAS Inst., Cary, Estados Unidos).
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, sob o número 09410712.7.0000.5240.
Excluídas as internações de longa permanência ou por parto, foram registradas 38.702 e 30.910 internações cobertas pelo SUS de indivíduos residentes em Itaboraí, nos triênios 2006-2008 e 2009-2011, das quais 39,2% e 32,4% foram por CSAP, respectivamente. Em ambos os triênios, os pacientes internados por CSAP foram, em média, significantemente mais velhos (2006-2008, 48,3 ± 27, 3 anos; 2009-2011, 44,0 ± 29, 1 ano) do que os internados por outras causas (2006-2008, 34,5 ± 22, 6 anos; 2009-2011, 35,0 ± 22, 7 anos). Também tiveram internações com custo médio mais baixo e menor variabilidade (2006-2008, R$ 447,90 ± 376,70; 2009-2011, R$ 546,60 ± 525,10) do que aqueles internados por outras causas (2006-2008, R$ 574,50 ± 1.154,30; 2009-2011, R$ 742,50 ± 1.902,80).
A Figura 1 demonstra a evolução das taxas, por 10.000 habitantes, de ICSAP, em contraste com as de internações por outras causas, ao longo dos seis anos de estudo, indicando tendência de queda de ambas, entre 2006 e 2009, com 2010 apresentando um pico de aumento na taxa de internações por outras causas e uma inflexão, no sentido de queda mais abrupta na taxa de ICSAP. No período, a taxa de ICSAP caiu gradativamente de 234,7 para 179,8/10.000 habitantes, entre 2006 e 2010, e entre 2010 e 2011, sofreu queda acentuada, atingindo o nível de 60 internações por 10.000 habitantes. A taxa de internações por outras causas manteve um padrão de queda mais suave, variando, no período, entre cerca de 360 e 300 internações/10.000 habitantes.
Figura 1 Evolução das taxas de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) e por outras causas por 10.000 habitantes, residentes em Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, 2006-2011.
De acordo com a Tabela 1, Itaboraí apresentou um padrão de distribuição das ICSAP por causas bem concentrado, com as cinco primeiras correspondendo a 69,7 e 62,7% do total, entre 2006 e 2008, e 2009 e 2011, respectivamente. A insuficiência cardíaca foi a primeira causa de ICSAP nos dois triênios considerados, seguida de asma, gastroenterites, outras DPOCs e diabetes mellitus. Apesar da queda no número absoluto de internações pelas cinco causas, chama atenção o fato delas serem as mesmas, na mesma ordem, nos dois triênios. De um triênio para o outro, observa-se queda na frequência relativa da insuficiência cardíaca e aumento na frequência relativa da asma. Contudo, em termos absolutos, há queda no número de ambas.
Tabela 1 Frequência, proporções e taxas das cinco principais causas de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP), entre residentes em Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, 2006 a 2011.
CID-10: Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão; DPOC: doença pulmonar obstrutiva crônica.
* Taxa por 10.000 habitantes.
Considerando-se as ICSAP entre indivíduos com 60 anos ou mais, é marcante a concentração de doenças crônicas, destacando-se a insuficiência cardíaca, o acidente vascular cerebral, DPOC, hipertensão e diabetes mellitus. Entre crianças de 1 a 4 anos, em contrapartida, destacam-se as gastroenterites, as pneumonias bacterianas e a asma.
A Tabela 2 explorou possíveis associações entre a ocorrência de ICSAP (vs. internações por outras causas) e variáveis categóricas sociodemográficas e relativas aos hospitais. Observou-se, em ambos os triênios, maior ocorrência de ICSAP entre indivíduos com 1 a 4 anos ou 60 ou mais anos, assim como os do sexo masculino. Em relação à variável raça, vale destacar o fato de ter sido incluída no SIH/SUS mais recentemente, sendo a possibilidade de consideração dos dados do primeiro triênio praticamente invalidada pela grande proporção de observações não devidamente classificadas. Entre 2009 e 2011, entretanto, a ocorrência de ICSAP foi maior para a raça parda (40,6%). A Tabela 2 ainda evidencia a importante concentração das ICSAP em hospitais privados contratados pelo SUS e no próprio município. Observa-se demarcada queda dessas internações entre um período e o outro nos hospitais contratados, mantendo-se, entretanto, a sua proporção no total de internações acima de 65%.
Tabela 2 Distribuição de variáveis categóricas sociodemográficas e relativas aos hospitais, por internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) e por outras causas, cobertas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre residentes no Município de Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, 2006-2011.
* Teste qui-quadrado.
A Tabela 3 apresenta dois modelos que identificam os efeitos independentes de fatores associados à ocorrência de ICSAP entre residentes no Município de Itaboraí entre 2006 e 2011, considerando a não inclusão e inclusão da variável independente "natureza jurídica". Em ambos foram eliminadas as poucas observações relativas a indivíduos amarelos e indígenas. Verifica-se o grande impacto da referida variável, diferenciando hospitais contratados, filantrópicos e demais sobre as estimativas, evidenciando, especialmente, uma mudança de comportamento das variáveis indicadoras do ano de internação. Enquanto no modelo 1, que não controla a natureza jurídica do hospital, o gradiente de queda nas chances de ocorrência de ICSAP é consistente, no modelo 2, que controla esta natureza, o gradiente não se mantém.
Tabela 3 Regressão logística - fatores associados à ocorrência de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) cobertas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre residentes no Município de Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, 2006-2011.
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.
Nota: os modelos excluem observações relativas às internações de indivíduos amarelos e indígenas.
Resultados do modelo 2 mostram que, considerando a variável idade e tomando a faixa etária entre 18 e 59 anos como referência, as chances de ocorrência de ICSAP (vs. não ocorrência) são maiores entre indivíduos mais novos (< 1 ano, OR = 1,493; 1-4 anos, OR = 1,727; 5-17 anos, OR = 1,122) e, mais expressivamente, entre os mais velhos (60-69 anos, OR = 3,336; 70-79 anos, OR = 3,570; ≥ 80 anos, OR = 3,819). Observa-se ainda que, mantendo as demais variáveis constantes, as chances de ocorrência de ICSAP são 11,9% menores entre indivíduos do sexo feminino e 8,7% maiores entre aqueles classificados como pardos, quando comparados, respectivamente, aos do sexo masculino e brancos. Levando-se em conta a natureza jurídica do hospital, chama a atenção o peso das ICSAP em hospitais privados contratados e filantrópicos. Enfim, a análise multivariada indica a maior ocorrência de ICSAP entre os residentes de Itaboraí no próprio município, e maiores chances de ocorrência de ICSAP em 2009, tomado como ano de referência, cuja ocorrência de ICSAP só não se diferencia estatisticamente daquela registrada em 2011.
Uma contribuição importante que advém deste trabalho e corrobora com os achados de estudos recentes é a indicação da necessidade de cautela na interpretação de achados e a realização de inferências associando a redução de ICSAP ao sucesso de intervenções na atenção primária, tais como a ESF, ainda que estudos ecológicos mais robustos possam ser pertinentes e eficientes em avaliações mais globais 19,20. Em estudos mais localizados, é fundamental apreender questões contextuais, eventualmente muito específicas, que podem concorrer para a explicação do evento. A observação superficial dos resultados aqui obtidos poderia facilmente levar a uma associação da queda nas ICSAP ao processo de expansão do PSF/ESF no Município de Itaboraí, iniciado na década de 1990 e cobrindo em 2011, segundo dados do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, 71,2% da população (http://dab.saude.gov.br/portaldab/historico_cobertura_sf.php, acessado em 23/Mar/2016). Entretanto, a presença de outros fatores intervenientes é clara, mesmo não tendo sido possível considerar condições socioeconômicas e a distribuição dos serviços e acesso da população, também potencialmente relevantes. Ainda que se possa afirmar que a mudança de paradigma na organização do modelo de saúde, realizada pela implantação e expansão do PSF/ESF desde a década de 1990, reorganizou e qualificou os serviços de saúde em Itaboraí, não seria possível associar a queda de ICSAP observada à melhoria da atenção à saúde.
Autores apontam limitações do uso das ICSAP como indicador de qualidade da atenção primária prestada, dependendo da cultura de uso dos serviços de saúde pela população estudada, da política de internação hospitalar, da morbidade e prevalência das doenças, de fatores individuais que se relacionam à hospitalização, assim como da própria definição das doenças ditas "sensíveis" à atenção primária 1,32. O uso do indicador para inferências sobre a expansão e qualidade da atenção não pode prescindir da consideração de fatores relativos à organização e práticas dos serviços de saúde. Rodrigues-Bastos et al. 28, em estudo ecológico, não encontraram correlação entre áreas com expansão da cobertura PSF/ESF e diminuição das ICSAP em municípios do Estado de Minas Gerais, entre 2000-2010. Em um estudo realizado no México 29, os autores concluíram que as ICSAP não constituíram uma medida válida da efetividade da atenção primária no país entre 2001 e 2011, dado o contexto de expansão da cobertura de seguro-saúde; contudo, ratificaram a aplicabilidade do indicador para comparar diferentes regiões ou fazer comparações regionalmente, desde que a cobertura do seguro-saúde seja considerada e permita a identificação de possíveis diferenças na provisão dos serviços de atenção primária à saúde. Gonçalves et al. 30, utilizando um instrumento de avaliação da atenção primária à saúde validado - PCATool Brazil - em um estudo de coorte realizado em Porto Alegre, verificaram que a melhoria da oferta de serviços públicos de saúde não influenciou a taxa de ICSAP num quadro prévio de pouca oferta de serviços. Enfim, um trabalho realizado no Estado do Espírito Santo mostrou, em análise bivariada, uma associação positiva entre a cobertura PSF/ESF e ICSAP, o que, segundo os autores, pode também ser explicado pela prévia escassez de acesso/disponibilidade de serviços de saúde; na medida em que os serviços passam a ser ofertados, um aumento breve nas hospitalizações estaria relacionado ao atendimento de uma demanda reprimida 33.
Considerados todos os pontos colocados, os resultados deste estudo indicaram uma tendência à redução na frequência de hospitalizações em residentes no Município de Itaboraí, bem como declínio de ICSAP, que corresponderam a 39,2% do total de internações no primeiro triênio (2006-2008) e 32,4% entre 2009-2011.
Quando transformadas em taxas, tanto as hospitalizações por CSAP como as por outras causas, em Itaboraí, declinaram ao longo dos seis anos estudados. Porém, as taxas de ICSAP sofreram uma queda abrupta entre 2010-2011, que parece ser explicada, em grande parte, pelo fechamento de um hospital contratado pelo SUS, que recebia boa parte destas internações no município 34.
A tendência de redução no total de hospitalizações e a redução da frequência e taxas de ICSAP têm sido mostradas em muitos trabalhos publicados no Brasil.
Um estudo também baseado em dados do SIH/SUS observou, no período compreendido entre 1998 e 2009, redução anual de 3,7% na taxa de ICSAP no Brasil 15. Ainda no Brasil, outras pesquisas encontraram, respectivamente, diminuição de 15,8% nas hospitalizações por CSAP e 10,1% para as demais condições, entre 2000-2006, e declínio anual de 5% nas taxas de hospitalização por CSAP entre os anos de 1999 e 2007 2,35.
O caráter mais abrupto de queda das ICSAP observado neste estudo, entretanto, grandemente relacionado ao fechamento de um hospital, levanta especulações sobre a real necessidade de grande parte das internações antes realizadas, que não parece ser redistribuída, e sobre a fidedignidade do dado observado à realidade. A análise multivariada ao considerar o efeito de hospitais privados contratados pelo SUS sugere crescimento das chances de ocorrência de ICSAP no conjunto de internações entre 2006 e 2009, queda em 2010 e um patamar de ICSAP, em 2011, não diferenciado estatisticamente daquele observado em 2009.
Os três principais grupos da Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10) observados em Itaboraí nos dois triênios estudados foram insuficiência cardíaca, asma e gastroenterites, com redução ao longo do tempo da primeira e terceira, e incremento na frequência relativa da asma entre 2006-2011. Salienta-se a existência de um padrão de elevadas taxas, concentradas em alguns grupos diagnósticos bem estabelecidos no município ao longo dos dois triênios do estudo.
Outros trabalhos indicam a importância da insuficiência cardíaca no conjunto das ICSAP no Brasil, ainda que as taxas aqui observadas sejam bem superiores. A doença foi indicada como a segunda causa de ICSAP no país, com taxa, em 2006, de 16,8 por 10.000 habitantes 2. Também identificada como a segunda causa de ICSAP em estudo no Distrito Federal, a insuficiência cardíaca foi relacionada, em 2008, a uma taxa de 14,4 por 10.000 habitantes, concentrada principalmente no sexo masculino e na faixa etária de 60 anos ou mais 10. Ainda, um trabalho realizado entre 1995 e 2004 em Pelotas, Rio Grande do Sul, mostrou que a insuficiência cardíaca foi a principal causa de ICSAP no sexo masculino em oito dos dez anos pesquisados 17.
A asma configura como o segundo grupo mais frequente de ICSAP em Itaboraí, não devendo-se ignorar que a doença constitui hoje um grande problema de saúde pública, com aumento de incidência nas últimas três décadas, e taxas de prevalência entre 15-20% em países como a Austrália, Inglaterra, Nova Zelândia, Irlanda, Brasil e Costa Rica 36. Existem muitos fatores associados à prevalência da asma descritos na literatura: ambientais, os alérgenos, aumento da poluição atmosférica, variações climáticas e tabagismo 12. Foram associados à ocorrência de internações por asma o sexo feminino, faixa etária entre 60-69 anos, baixas escolaridade e renda familiar, histórico familiar de asma, atopia pessoal, tabagismo e distúrbios psiquiátricos menores 37. Focalizando na população infantil, fatores associados ao desenvolvimento dessa doença descritos na literatura seriam carga genética, dieta, estresse, uso de antibióticos, parto por cesariana, aleitamento materno, exposição a animais e tamanho e estrutura familiar 38. Ressalta-se que um importante fator de risco para a elevada ocorrência da doença no Município de Itaboraí seja a poluição ambiental, uma vez que o município é historicamente famoso pelas indústrias de cerâmicas instaladas, e a construção do polo petroquímico tenda a contribuir neste sentido.
As gastroenterites aparecem como a terceira causa de ICSAP em Itaboraí nos dois triênios. Estudos realizados no Espírito Santo (2005-2009) e em Minas Gerais (1998-2004), que incluem as gastroenterites entre as principais causas de ICSAP, encontraram a doença expressivamente presente em áreas de grande concentração de pobreza e condições sanitárias precárias 16,39. Condições sanitárias precárias caracterizam Itaboraí, já tendo sido reportada a associação da ocorrência de internações por diarreia em crianças residentes no município a fatores como o crescimento desordenado e adensamento populacional em áreas periurbanas e rurais 40.
Vale sublinhar o importante peso das doenças crônicas como causas de ICSAP, apontando a compatibilidade dos resultados aqui encontrados com outro estudo sobre estas Internações entre idosos no Estado do Rio de Janeiro, entre 2000 e 2010, que evidenciou, em particular, a relevância das doenças pulmonares obstrutivas crônicas e da insuficiência cardíaca 41. As doenças crônicas estão hoje na pauta de desafios para a organização e coordenação de serviços de saúde, pressupondo-se o papel fundamental da atenção primária efetiva, envolvendo detecção das populações expostas, tratamento adequado e continuidade do cuidado, na redução de internações.
De acordo com os resultados encontrados, a probabilidade de que o diagnóstico principal de internação de residentes de Itaboraí no SUS fosse uma CSAP aumentou com as características: ser do sexo masculino, extremos de idade (especialmente 1-4 anos e 60 anos ou mais), declarar-se de cor parda, ter sido internado em unidades privadas contratadas ou filantrópicas do SUS, e ter sido internado no próprio município. Não obstante não se ter privilegiado a aplicação do modelo teórico proposto por Nedel et al. 42 para a análise do impacto da atenção primária sobre as ICSAP, o que implicaria maior ênfase na inclusão de variáveis indicadores do desempenho do sistema de saúde (fatores ligados à forma de organização, estrutura, governabilidade, modelo de atenção), consideradas proximais, os resultados encontrados dialogam com o modelo, identificando o forte peso da variável "natureza jurídica", que certamente reflete diferenças organizacionais relevantes. Entre as variáveis sociodemográficas, a "idade" é considerada muito importante, mas os pesos de "sexo" e "raça" parecem menores. A identificação de mais ICSAP entre indivíduos do sexo masculino é vastamente descrita na literatura. Um estudo realizado em 2002 concluiu que mulheres utilizam mais os serviços de saúde preventivos, enquanto os homens possuem registros maiores de uso de serviços de urgência e emergência 43. Maior consumo de álcool, drogas e tabagismo é outro fator que expõe os homens a mais riscos de saúde ao longo da vida, quando comparados às mulheres 44. Marques 41 encontrou que a população masculina idosa no Estado do Rio de Janeiro tem maior risco de ser internada por CSAP, especialmente por DPOC.
Grosso modo, a associação positiva entre ICSAP e extremos de idade observada no presente estudo também já foi apontada em outras pesquisas 9,10. Dentre os mais jovens, aqui destaca-se a maior ocorrência de ICSAP na faixa etária entre 1 e 4 anos, comparada à de menos de 1 ano. No Distrito Federal foram identificadas taxas de ICSAP elevadas em crianças com menos de 1 ano de idade, importante redução destas taxas nas faixas etárias seguintes (1 a 29 anos) e aumento gradual com o avançar da idade 32. Em Bagé, no Rio Grande do Sul, também foi encontrada maior ocorrência de ICSAP nos extremos de idade, tanto entre homens como em mulheres 44. E, mais especificamente, achados de outro estudo apontam para a associação estatisticamente significante entre ICSAP e idade igual ou superior a 60 anos 18.
Interpretações acerca dos resultados pertinentes à variável "raça" ficam um pouco comprometidas pela elevada ocorrência de valores desconhecidos no primeiro triênio considerado. Entretanto, a opção por não se ignorar a destacada frequência de ICSAP entre pardos justifica-se pela consistência dos resultados, apesar dos limites reconhecidos. A raça parda é disparadamente a mais frequente e associam-se a ela, junto à raça preta, condições socioeconômicas menos favoráveis. A maior ocorrência de ICSAP entre indivíduos pardos aqui consistentemente observada é passível de ser explicada por condições socioeconômicas desfavoráveis e consequentes dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Sob essa lógica, no entanto, a menor ocorrência de ICSAP entre pretos do que entre brancos surpreende, mas não tem significância estatística. Essa diferença deve ser melhor explorada e explicada.
Enfim, este trabalho indica que, mantendo outras variáveis constantes, as ICSAP estão concentradas nos extremos de idade (crianças e idosos), com um padrão que privilegia doenças crônicas majoritariamente em idosos, mas também contempla a importante presença de gastroenterites e pneumonias bacterianas em crianças.
Em termos gerais, este estudo ratifica a importância de se ter precaução em inferências acerca do significado de reduções de ICSAP em situações locais, mais limitadas e fortemente dependentes do contexto. A capacidade de inferências fidedignas em estudos ecológicos pode ser favorecida por um conjunto robusto de dados, dando conta de uma diversidade de contextos e permitindo compensações entre realidades e apreciação do comportamento médio. Por outro lado, em nível mais específico, o estudo endossa a elevada ocorrência de ICSAP em Itaboraí, com um padrão que privilegia doenças crônicas concentradas em idosos, mas também contempla a importante presença de gastroenterites e pneumonias bacterianas em crianças. Tais resultados parecem não somente revelar a persistência de problemas no sistema de saúde e, mais especificamente, no acesso a serviços de saúde de atenção primária, consistente com o desempenho precário do SUS no município, como também refletir condições sanitárias inadequadas, aqui previamente descritas. Eles remetem à necessidade de um monitoramento dessas condições e aprofundamento sobre a questão da organização dos serviços de saúde em um município que deverá sofrer o impacto da construção de um complexo petroquímico.