Compartilhar

Risco de reintrodução da febre amarela urbana no Brasil

Risco de reintrodução da febre amarela urbana no Brasil

Autores:

Karina Ribeiro Leite Jardim Cavalcante,
Pedro Luiz Tauil

ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.26 no.3 Brasília jul./set. 2017

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000300018

A febre amarela (FA) é uma doença infecciosa aguda, febril, não contagiosa, de curta duração (no máximo de 12 dias) e de gravidade variável. É produzida por um arbovírus do gênero Flavivirus, família Flaviviridae. A doença mantém-se endêmica e enzoótica em diversas regiões tropicais das Américas e da África, e é responsável por surtos periódicos, de magnitude variável.1 A forma grave caracteriza-se clinicamente por manifestações de insuficiência hepática e renal, que podem levar à morte. Não existe um tratamento etiológico específico para a FA. A vacinação é a medida mais importante para prevenir a doença.1

Do ponto de vista exclusivamente epidemiológico, podem ser diferenciados dois ciclos de transmissão: urbano e silvestre. Em ambos os ciclos, a doença é a mesma sob os aspectos etiológico, clínico, imunológico e fisiopatológico. No ciclo urbano, a doença é uma antroponose, não se reconhecendo reservatórios animais de importância epidemiológica. O Aedes aegypti é seu principal vetor, tanto na América do Sul como na África. Apesar de ser susceptível à infecção pelo vírus amarílico, em laboratório, o Aedes albopictus nunca foi encontrado infectado na natureza. No ciclo silvestre, a FA é uma zoonose transmitida, no continente americano, por mosquitos de dois gêneros, Haemagogus (H. janthinomys e H. albomaculatus) e Sabethes (S. chloropteros), tendo como principal fonte de infecção primatas não humanos, particularmente macacos dos gêneros Allouata, Cebus, Atelles e Callithrix.2

Desde 1942, não há registro do ciclo urbano da FA no Brasil. Os três últimos casos foram notificados na cidade de Sena Madureira, no Estado do Acre. A última grande epidemia ocorreu no Rio de Janeiro nos anos de 1928 e 1929, com o registro de 738 casos e 478 óbitos.3 No Caribe, a última epidemia havia sido registrada em Trinidad e Tobago, em 1954, trazendo, além do sofrimento humano e dos custos diretos com a assistência aos doentes, prejuízos econômicos de elevada monta, relacionados à redução do turismo e do comércio exterior. Em 2008, foi registrado um surto da forma urbana da doença no Paraguai.4

Na África, continua havendo transmissão urbana da FA. Em Angola, onde a FA é endêmica, em dezembro de 2015, foi notificado o primeiro caso de FA urbana desde 1988, quando foram registrados 37 casos e 14 mortes. A transmissão local em Luanda desencadeou a vacinação de mais de 6 milhões de pessoas na província. A epidemia propagou-se a vários outros grandes ambientes urbanos do país.5 No período de dezembro de 2015 a junho de 2016, foram distribuídos quase 18 milhões de doses da vacina antiamarílica, para campanhas de emergência em Angola, República Democrática do Congo e Uganda.5

O Grupo Consultivo Estratégico de Peritos (Strategic Advisory Group of Experts - SAGE) em Vacinação, da Organização Mundial da Saúde (OMS), na África, revisou as evidências existentes e concluiu que usar um quinto da dose normal da vacina continua a oferecer proteção contra a doença durante pelo menos 12 meses e, possivelmente, durante um período maior. Essa dose fraccionada pode ser uma opção segura e eficaz para as campanhas de vacinação em massa e o controle de surtos urbanos em situações de insuficiência de vacinas.5

No entanto, desde 2010, a FA se deslocou da África Ocidental para a África Central e Oriental, onde não foram realizadas campanhas de vacinação. O surto de Angola sublinha a necessidade de reforçar a avaliação de riscos e da vacinação em massa na África Central e Oriental.5

No Brasil, a reemergência da FA fora da Região Amazônica, a partir de 2000, reacendeu a preocupação das autoridades de saúde com a expansão das áreas de circulação viral, documentada durante a década anterior. As áreas mais recentemente atingidas, nas regiões Sudeste e Sul do país, são próximas a grandes centros urbanos densamente povoados e cuja população, em grande parte, não estava imunizada contra a FA. Em diversos grandes centros urbanos dessas regiões, a infestação por Aedes aegypti propicia a ocorrência de períodos sucessivos de elevada transmissão de dengue.6

O aumento do número de casos de FA silvestre, a alta densidade de infestação pelo Aedes aegypti e a baixa cobertura vacinal são fatores que favorecem o risco da reurbanização da FA no Brasil. Por sua vez, a manutenção de baixa densidade de infestação pelo Aedes aegypti, e de altas coberturas vacinais em áreas endêmicas, aliadas ao curto período de viremia (transmissibilidade) do vírus da FA em relação ao da dengue, são fatores que dificultam a reintrodução da transmissão urbana da FA no país.

O Brasil vive, desde dezembro de 2016, um dos maiores surtos de FA de transmissão silvestre da sua história, com ocorrência em estados da região Sudeste, principalmente Minas Gerais e Espírito Santo, mas também no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Na série histórica de 2000 a 2012, no Brasil, foram confirmados 326 casos de FA e 156 óbitos, com letalidade média de 47,8%.7 De dezembro de 2016 até a segunda quinzena de março de 2017, 448 casos e 144 óbitos foram confirmados no país. O Estado de Minas Gerais registrou 349 casos e 118 óbitos confirmados, superando os números da série histórica de 2000 a 2012, quando foram confirmados 101 casos e 41 óbitos no estado. Os estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, que até então não eram considerados áreas endêmicas, registraram 93 casos confirmados e 22 óbitos, e 3 casos confirmados e 1 óbito, respectivamente, de dezembro de 2016 até março de 2017.

A expansão de cobertura da área com recomendação para vacinação contra a FA no Brasil é ainda assunto controverso. Os que se manifestam favoráveis à expansão da área atual baseiam-se na detecção de transmissão silvestre de FA em regiões infestadas por Aedes aegypti, mas que não apresentavam casos autóctones de transmissão silvestre há muitos anos, como na Bahia e em São Paulo (2000), e em Minas Gerais (2001). Em 2001, no oeste do Rio Grande do Sul, houve registro de circulação do vírus da FA, com óbitos de macacos confirmados laboratorialmente. Nessa região, também não houve registro de epizootias por FA por mais de 20 anos. Sem dúvida, as áreas de risco para ocorrência de FA silvestre estão se ampliando no Brasil.2

Antes do surto atual, a imunização contra a doença já era recomendada para os estados brasileiros do Acre, Amapá, Amazonas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, bem como no Distrito Federal, além de determinadas áreas da Bahia, Paraná, Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. No Estado do Espírito Santo, em março deste ano, foi recomendada a vacinação para viajantes internacionais. Em abril de 2017, a OMS incluiu 88 novos municípios brasileiros como áreas com recomendação de vacina contra FA para viajantes internacionais. Estas áreas incluem as cidades do Rio de Janeiro/RJ, Niterói/RJ, Salvador/BA, e a área urbana de Campinas/SP.8

A epidemia de FA silvestre que atinge os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, desde dezembro de 2016, e a ocorrência de óbitos de macacos com confirmação laboratorial da infecção pelo vírus da FA em outros estados, trouxeram novamente a discussão da necessidade da adoção de medidas para redução do risco de reurbanização da doença. O controle da infestação pelo Aedes aegypti, a manutenção de elevada cobertura vacinal em áreas com recomendação e a inclusão dessa vacina no calendário de vacinação infantil em todo o país são medidas importantes para reduzir o risco de reurbanização da doença.

No que concerne à prevenção da reurbanização da doença, a vacinação universal da população brasileira tem sido questionada em termos de risco/benefício, tendo em vista os seguintes aspectos: (i) a escassez da vacina antiamarílica para imunização de toda a população de grandes áreas metropolitanas do Brasil; (ii) a ocorrência de alguns eventos adversos vacinais graves e até fatais, porém raros; e (iii) a existência de grupos populacionais com contraindicação relativa da vacina - imunossuprimidos, pessoas em tratamento de neoplasias malignas, portadores de alergias aos componentes da vacina (proteínas do ovo, por exemplo), mulheres grávidas (exceto aquelas com avaliação de alto risco de infecção e situações em que há recomendação expressa de autoridades de saúde) e pessoas com 60 ou mais anos de idade que só podem receber a vacina após uma avaliação médica cuidadosa.8 Porém, a extensão da cobertura vacinal a todas as crianças do país - um grupo populacional considerado de fácil acesso, com possibilidade de avaliação adequada de eventuais contraindicações, sem relatos de importantes eventos vacinais adversos e podendo contar com disponibilidade de vacina - parece ser uma medida atualmente mais aceita, com proteção gradual de toda a população brasileira.

Em abril de 2017, o Ministério da Saúde passou a adotar dose única da vacina contra a FA para as áreas com recomendação para vacinação, em todo o país, em conformidade com orientação da OMS. A partir de agora, as pessoas que já tomaram uma dose não precisam se vacinar mais contra a FA ao longo da vida.9

O Ministério da Saúde também anunciou a preparação dos serviços para um possível fracionamento das doses da vacina, com o objetivo de conter a expansão da doença nas regiões metropolitanas que necessitarem de bloqueio.

Outra medida a ser considerada nesse momento é a implantação de unidades móveis de vacinação, especialmente nos municípios em áreas com transmissão silvestre da doença, para atingir maiores coberturas vacinais em populações rurais mais vulneráveis à infecção.

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de vigilância de epizootias de primatas não humanos. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
2. Tauil PL. Aspectos críticos do controle da febre amarela no Brasil. Rev Saude Publica. 2010 jun;44(3):555-8.
3. Franco O. A história da febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 1969.
4. Organización Pan-americana de la Salud. Brote fiebre amarilla em Paraguay [Internet]. Washington: Organización Pan-americana de la Salud; 2008 [citado 2017 maio 08]. Disponível em: Disponível em:
5. Organização Mundial da Saúde. P&R: surto de febre amarela em Angola e na República Democrática do Congo [Internet]. Washington: Organização Mundial da Saúde; 2016 [citado 2017 maio 08]. Disponível em: Disponível em:
6. Romano APM, Ramos DG, Araujo FAA, Siqueira GAM, Ribeiro MPD, Leal SG, et al. Febre amarela no Brasil: recomendações para a vigilância, prevenção e controle. Epidemiol Serv Saude. 2011 jan-mar;20(1):101-6.
7. Cavalcante KRLJ, Tauil PL. Características epidemiológicas da febre amarela no Brasil, 2000 - 2012. Epidemiol Serv Saude. 2016 jan-mar;25(1):11-20.
8. Organização Pan-Americana da Saúde. OMS atualiza recomendação de vacina contra febre amarela para viajantes internacionais do Brasil [Internet]. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2017 [citado 2017 maio 08]. Disponível em: Disponível em:
9. Ministério da Saúde (BR). Portal da Saúde. Febre amarela: Brasil adota dose única da vacina por recomendação da OMS [Internet]. Brasil: Ministério da Saúde; 2017 [citado 2017 maio 08]. Disponível em: Disponível em: