Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.28 no.6 São Paulo Nov./Dec. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201500090
Encontrar uma definição para a família tem sido uma tentativa de algumas teorias que se deparam com dificuldades diante da complexidade desse grupo social. No entanto, elas convergem em temas que são comuns como: as famílias são um sistema, compostas por unidades interdependentes e ao mesmo tempo interligadas; as famílias são sistemas guiados por objetivos que desejam equilíbrio e homeostase; e o ambiente interfere em suas características, assim como nos recursos disponíveis e nas respostas da família diante de adversidades.(1)
As adversidades interferem no equilíbrio familiar afetando a dinâmica de todos os seus membros. A doença e a incapacidade são experiências comuns às famílias e representam um grande desafio, uma vez que os problemas psicossociais ocasionados por uma pessoa com dependência desencadeia impacto sobre todo o sistema familiar.(2)
A incapacidade e a dependência provocada pela doença de um dos membros da família é mais intensa quando ocorre a hospitalização. A hospitalização provoca repercussões em todo sistema familiar, principalmente quando necessita de acompanhamento. Apesar de quase sempre, as pessoas hospitalizadas com algum tipo de dependência para o cuidado, necessitarem de apoio e acompanhamento de um membro da família, os estudos não informam que tipo de intervenção a família deve realizar diante do tratamento.(1)
No entanto, independente das intervenções realizadas pelos familiares acompanhantes diante do processo de cuidados no ambiente hospitalar, eles experimentam sensações positivas e negativas. Os aspectos negativos estão relacionados às alterações que ocorrem na sua vida diária, a interferência na sua rotina, ao cansaço físico, emocional e problemas financeiros. Por outro lado, os cuidadores sentem satisfação por poder ajudar seus familiares.(3)
A hospitalização de um dos membros da família provoca desestruturação familiar, alteração de sua dinâmica fazendo com que ela tente se reorganizar para manter o equilíbrio. Essa reorganização está quase sempre acompanhada de sofrimento e conflitos, em que a abdicação de si para o cuidado com o outro é tão intensa que alguns interrompem a cotidianidade de sua vida para realizar o processo de acompanhamento.
Essas alterações foram percebidas empiricamente durante as atividades práticas e acadêmicas. Ao realizarmos um levantamento sobre os estudos com famílias em acompanhamento nos hospitais identificamos que a literatura tem se direcionado para os grupos os quais a legislação brasileira concede legalmente o acompanhamento como as crianças, os idosos e as mulheres em trabalho de parto. Sendo assim, encontramos uma lacuna no acompanhamento de pessoas com dependência para o autocuidado. No entanto, nesse estudo todas essas pessoas estavam sendo acompanhadas em tempo integral por familiares, independente da faixa etária, através de concessão da instituição hospitalar.
Assim, compreender as alterações que ocorrem na vida desses familiares durante o processo de acompanhamento no hospital, irá permitir a enfermagem elaborar estratégias de acolhimento que favorecerá uma melhoria na comunicação, entendimento das relações com consequente organização e elevação da qualidade do cuidado prestado a esse grupo no ambiente hospitalar. O objetivo desse estudo foi compreender as alterações no cotidiano do familiar acompanhante durante a hospitalização de um membro da família.
Trata-se de estudo descritivo, exploratório com abordagem qualitativa, compreensiva, realizado na clínica médica e neurológica de um hospital público de ensino no interior da Bahia, Brasil. A escolha dessas unidades foi por que nestes locais encontramos uma maior concentração de pessoas com dependência para o autocuidado, acompanhadas por familiares, acomodadas em quartos coletivos.
Participaram do estudo,, familiares acompanhantes de pessoas com dependência para o autocuidado que atenderam aos seguintes critérios: ter idade superior a 18 anos, e encontrar-se acomodado em quartos coletivos. Considerou-se como critério de exclusão: receber vantagens financeiras para o acompanhamento do hospitalizado. Configurando-se dessa forma, uma amostra intencional.
Os dados foram coletados no período de maio a julho de 2014 e utilizamos como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada. Foram entrevistados 16 familiares que obedeceram aos critérios de inclusão e que aceitaram participar do estudo.
Dos dezesseis participantes do estudo, três foram do sexo masculino e treze do sexo feminino. Desses, cinco encontravam-se na faixa etária dos 50 anos de idade, cinco na dos 40 anos, três na faixa dos vinte anos e um na faixa dos sessenta anos. Das treze mulheres, quatro acompanhavam a mãe, três os filhos, dois os irmãos e um acompanhavam a avó, esposo, sobrinho e cunhado, enquanto os homens um acompanhava a esposa e dois os filhos hospitalizados. Todos os entrevistados afirmaram sua fé em Deus sendo que nove eram católicos e cinco evangélicos enquanto dois não referiram possuir religião.
As entrevistas duraram em média trinta minutos, foram realizadas em local restrito a presença do pesquisador e do participante. Os dados obtidos nas entrevistas foram gravados e transcritos. Após leitura exaustiva, as mesmas foram decodificadas e submetidas à Análise Temática e discutidas através da análise compreensiva, pautada nos pressupostos teóricos e da sensibilidade propostos pela sociologia compreensiva.
Com o intuito de manter o rigor metodológico, utilizamos as seguintes estratégias: as entrevistas foram apresentadas aos participantes que aprovaram o resultado final da gravação e, utilizamos os critérios consolidados no Reporting Pesquisa Qualitativa (COREQ) como ferramenta de apoio. Este é constituído por uma lista de 32 itens de verificação: com relação à equipe de pesquisa; em relação ao projeto de pesquisa e análise dos dados e em relação aos métodos de pesquisa qualitativa.(4)
O desenvolvimento desse estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Da análise das entrevistas emergiram: A ruptura do laço substancial com os filhos; A abdicação da atividade laboral para favorecer o estar-junto; Os rituais do hospital no cotidiano do familiar acompanhante e o cuidado de si e a potência do estar-junto.
A maior dificuldade no acompanhamento relatada pelos familiares foi o sentimento de ter que deixar seus filhos, pois, alguns permanecem no hospital por vários dias consecutivos. Todos os atores que responderam a esta categoria foram mulheres que além de enfrentarem a separação dos filhos ainda enfrentam situações conflitantes nas interações e relações de ajuda com seus companheiros e familiares.
Independente da idade dos filhos, a preocupação por não estar presente no dia a dia, surge como uma preocupação constante nos sentimentos dos familiares.
Delegar o cuidado dos filhos para outras pessoas provoca ansiedade e insegurança principalmente quando não encontram quem possa ser responsável pelo cuidado das crianças. O acompanhamento interfere também nas atividades diárias de outros membros da família, a exemplo do filho que interrompe bruscamente as atividades educativas, pois sua mãe não pode acompanha-lo até a escola por está no hospital. No entanto, quando os filhos acatam as ordens dos pais transmitem uma sensação de tranquilidade para que o acompanhamento seja feito com menor preocupação.
Nesta categoria temática, os discursos refletem que o sentimento de estar-junto com o outro na situação de doença, no ambiente hospitalar, se sobrepõem a necessidade de desenvolvimento das atividades de trabalho, uma vez que os familiares abdicam dessas para estarem em processo de acompanhamento.
Na terceira categoria, os familiares relatam as rotinas do hospital às quais necessitam obedecer, tanto para as entradas e saídas neste ambiente como em relação às acomodações e liberdade durante a sua permanência em processo de acompanhamento. As normas do hospital são muito distintas daquelas vividas e estabelecidas em casa.
Na quarta e última categoria foi possível perceber que os familiares durante o acompanhamento de seus parentes, abdicam do cuidado com sua vida quotidiana e com a saúde para fortalecer os laços de afeto durante o adoecimento e permanência no hospital.
O desgaste emocional e necessidade de descanso durante a noite é comprometido pela necessidade de estar-junto do seu parente. A vida fora do hospital fica em suspensão, os estudos, namorados, maridos, filhos, lazer, assim como o cuidado com a saúde e aparência estética são desconsiderados para favorecer o acompanhamento.
As alterações no cotidiano dos familiares acompanhantes são sentidas e descritas em todos os sentidos da vida, nas relações com os filhos, conjugais, de trabalho, lazer e cuidado com a sua saúde.
Este estudo apresenta limitações no que se refere ao método qualitativo, pois dessa forma não pode ser generalizado. Entretanto, os resultados são relevantes para a compreensão das alterações provocadas na vida do familiar acompanhante de pessoas hospitalizadas, que devem ser consideradas pela equipe de enfermagem.
Os resultados mostraram que treze dos participantes do estudo foram mulheres, portanto as principais alterações na vida diária ocorreram na vida delas que apesar de apresentarem disposição, solidariedade e sensibilidade para permanecerem em processo de acompanhamento no hospital são as que mais sofrem com as mudanças na sua rotina diária.
Estudo realizado, nos Estados Unidos, mostrou que a experiência de cuidado entre homens e mulheres apresentam diferenças em decorrência das diferentes formas de socialização e papéis atribuídos a eles na sociedade. As mulheres, desde a infância, são preparadas para se responsabilizar pela alimentação da família, para realizarem trabalhos manuais e pelo cuidado diante do adoecimento de um dos membros da família. Sendo assim, as mulheres podem apresentar mais experiências negativas diante do processo de cuidados do que os homens. Esse mesmo estudo mostrou que os cuidadores familiares do sexo feminino são as mães, filhas e cônjuges na sua maioria.(3)
O acompanhamento às pessoas com dependência para o autocuidado é realizado, na maioria das vezes, por mulheres na faixa etária de 36 a 59 anos de idade, verificando-se a diversidade de papéis desempenhados por essas mulheres, elas são mães, filhas, irmãs e cônjuges.(5)
Historicamente as mulheres são as responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos. Diante dessa constatação, o estar junto em processo de acompanhamento, no hospital, de um membro da família desencadeia o sentimento de ter que romper, mesmo que temporariamente, com o laço que as une aos filhos, que são deixados em casa e cuidados por outras pessoas. O rompimento dessa unicidade não ocorre somente com os filhos pequenos, os adultos também necessitam de cuidado e apoio, e o familiar acompanhante sofre com o distanciamento.
Apesar de sofrerem com o rompimento do laço substancial, os filhos, essas mulheres apresentam sentimentos positivos e de satisfação pelo fato de está em processo de acompanhamento, fazendo com que a carga física e emocional não seja percebida como pesada.(6)
O cuidado prestado pelo familiar a um membro da família hospitalizado é uma resposta das famílias para atender a uma situação nova e extremamente estressante. Esses cuidadores familiares se apoiam no sentimento de manutenção da sobrevivência do ser humano nas várias etapas do ciclo vital. Diante desse processo, a dinâmica familiar se altera desencadeando dificuldades nas tomadas de decisões e nas interações com outros membros da família.(7)
A permanência no hospital por longos períodos de tempo provoca conflitos, pois alguns membros da família sentem-se abandonados e podem demonstrar tristeza. Esse fato é considerado uma experiência negativa, pois o familiar, durante sua permanência no hospital, possui menos tempo livre para os outros membros da família.(3)
Na segunda categoria temática, a abdicação da atividade laboral para favorecer um estar junto, os familiares acompanhantes relatam as alterações na rotina de trabalho. Estudo mostra que mesmo com a participação ativa de vários membros da família no cuidado, a responsabilidade na maioria das vezes, recai sobre um familiar. Dessa forma, o cuidador principal experimenta um rompimento em seu modo de vida, caracterizado pela inexistência de limites entre sua vida e a do paciente, havendo, assim, menos tempo para o trabalho, lazer, vida social, familiar e afetiva.(8)
Para estar junto em processo de acompanhamento é necessário que a individualidade seja negada num movimento quase autodestrutivo. O familiar acompanhante abdica de suas atividades de trabalho para permanecer no hospital. A necessidade de cuidar e estar junto do membro da família adoecido dificulta as atividades laborais.(9)
A hospitalização de um membro da família repercute no querer viver e nas atividades de trabalho do acompanhante, pois o mesmo necessita permanecer no hospital muitas vezes por longos períodos de tempo.(10)
Fortalecendo a lógica do estar-junto, apesar da ruptura das atividades de trabalho e o sofrimento provocado com essa ruptura, os familiares acompanhantes compreendem que a permanência no hospital é um dever moral para com o seu parente. As frustrações e o sofrimento gerado pelas mudanças e dificuldades vivenciadas, emergem no familiar o sentimento de responsabilidade e obrigação de permanecerem firmes incentivando, ajudando e dando força.(10)
Outro aspecto que emergiram dos discursos interferindo no cotidiano do familiar é a rotina do hospital, apresentada na terceira categoria “os rituais do hospital no cotidiano do familiar acompanhante”. A hospitalização prolongada e as necessidades dos familiares acompanhantes de permanecerem junto à pessoa adoecida interferem negativamente na dinâmica familiar, na necessidade de trabalhar, no cumprimento das normas hospitalares, consideradas rígidas, despertando o sentimento de impotência.(11)
O hospital como parte da sociedade moderna instituiu um processo de trabalho baseado em normas e rotinas, com horários estabelecidos para atender às necessidades do serviço, como: horários de visitas, limites de responsabilidade dos cuidados, controle do sono, do banho, da temperatura, da alimentação, dentre outros. O hospital não foi planejado nem direciona suas normas para os cuidadores familiares.(12) Nessa perspectiva, o ritmo de vida do familiar nem sempre é compatível com os horários da maioria dos hospitais, pois geralmente tem seus empregos e outros afazeres.
As alterações apresentadas na dinâmica das famílias que acompanham seus parentes em situação de hospitalização decorrem das necessidades internas, equilíbrio emocional, das pressões externas como a quebra da rotina de trabalho e também das dificuldades financeiras. Tudo isso interfere no autocuidado, na qualidade de vida e podem surgir sentimentos de depressão, angústia, raiva, tristeza, medo, culpa e frustração. Estudo aponta que esses cuidadores possuem mais chances de apresentarem sintomas psiquiátricos e problemas de saúde, entre os quais hipertensão arterial, desordens digestivas e respiratórias, depressão, além de vivenciarem conflitos familiares e problemas no trabalho com maior frequência, em comparação com pessoas da mesma idade que não exercem tal função.(11)
Os efeitos desencadeados pela permanência no hospital foram observados na quarta e última categoria quando o familiar reflete a abnegação do cuidado de si para favorecer o estar junto. Nessa categoria, apesar dos familiares se mostrarem solidários com o parente hospitalizado, foi possível verificar nas falas dos entrevistados que conviver com a doença neste ambiente fragiliza o familiar acompanhante. Eles referem perda de força, desgaste emocional, principalmente quando o mesmo já apresenta predisposição para a fragilidade emocional. Percebem a ambiência hospitalar como desagradável, sofrível, confusa e apresentam sentimentos de rejeição, insatisfação, insegurança e a hospitalização como a interrupção do previsto, a desordem do costumeiro, a urgência do enfrentamento do duvidoso, do temível, do desconhecido.(13)
Estudo realizado na Carolina do Norte (EUA) com 488 famílias, mostrou que o envolvimento da família no cuidado aos parentes com dependência teve como consequência a sobrecarga física e sintomas depressivos.(14)
Os familiares de crianças hospitalizadas revelaram que se manter em processo de acompanhamento no hospital, prejudica o sono e o repouso, trazendo consequências físicas que podem comprometer sua saúde. Afirmaram sentir cansaço e falta de tempo para cuidar de si.(10)
Os principais sintomas psicológicos associados aos familiares cuidadores são os que dizem respeito à depressão e a transtornos de ansiedade, que ocasionam o estresse agudo.(15)
Além dos sintomas depressivos, o familiar acompanhante se depara com a interrupção abrupta das suas atividades quotidianas. As atividades agora são para o cuidado do parente hospitalizado numa pratica solidária de ajuda mútua e no desenvolvimento de ações caritativas.
Desse modo, os familiares acompanhantes estão mais propensos a adoecer do que os outros familiares e amigos, pois a permanência no ambiente hospitalar, a negação do cuidado de si e o contato direto com a pessoa dependente de cuidados mobilizam as tensões interiores e acarretam sofrimento psíquico.
Compreender as diversas formas de manifestação do sofrimento, da ansiedade e das alterações na dinâmica da família durante o acompanhamento de um dos seus membros no ambiente hospitalar, pode determinar a melhoria da qualidade do cuidado familial. Entender essas alterações e adotar um comportamento profissional que contemple a sensibilidade, a disponibilidade para ouvir esse grupo importante e cada vez mais presente nos ambientes de cuidado, fortalece a enfermagem à família através do cuidado globalizado.
Os familiares acompanhantes apresentaram alterações significativas na sua vida durante o processo de acompanhamento do seu parente no ambiente hospitalar. As mulheres sofrem por deixar seus filhos e enfrentam situações conflitantes com outros membros da família e companheiro. O sentimento de estar-junto é fator determinante para que elas abdiquem de todas as suas atividades para estar no hospital. As normas e rotinas do hospital provocam interferência nas atividades quotidianas, pois é incompatível com as atividades das famílias. O cuidado de si é desconsiderado para fortalecer o estar-junto.