versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.90 no.2 Porto Alegre mar./abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2013.08.003
A ruptura prematura das membranas fetais pré-termo (RPMpt) é definida como perda de líquido amniótico antes do início do trabalho de parto, em gestações com menos de 37 semanas.1 Esta patologia ocorre em cerca de 3% das gestações.2
A RPMpt está associada com patologias maternas e fetais, contribuindo para o nascimento de crianças prematuras.3 Quanto maior o tempo que transcorre entre a ruptura e o parto, maior a chance de infecção tanto materna quanto fetal.4
A causa mais comum de RPMpt é a espontânea, que tem etiologia multifatorial, e que pode estar relacionada ao defeito da fabricação das membranas por deficiência ou malformação de colágeno, ao enfraquecimento das membranas por destruição enzimática em processos inflamatórios ou infecciosos e à exposição da bolsa por incompetência istmo cervical. O risco de RPMpt se encontra aumentado se a gestante teve ocorrência prévia de RPMpt e baixo índice de massa corporal.5 Também estão relacionados com a sua ocorrência fatores mecânicos, como a gemelaridade, pois distendem o volume uterino.6 Existe a hipótese da associação de RPMpt com as infecções geniturinárias, mas não há consenso desta relação.
Os estudos sobre a RPMpt em países desenvolvidos são de casos e controles e não consideram fatores como a escolaridade e a idade materna.7 - 9 Estes fatores são importantes quando se observa o aumento do número de recém-nascidos prematuramente.10
A associação da RPMpt com prematuridade indica a necessidade de investigar a ocorrência de RPMpt em gestações únicas, e a associação com fatores maternos socioeconômicos e as infecções geniturinárias autorreferidas, e, assim, levantar hipóteses para sua ocorrência e orientar medidas de prevenção desta doença.
Estudo transversal de base populacional. Foram incluídas todas as mães dos recém-nascidos dos partos únicos ocorridos no ano de 2010, com peso ao nascer igual ou superior a 500 gramas, em que as mães residissem no município de Rio Grande - RS, e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram excluídas as mães que não residissem no município de Rio Grande - RS, as mães de partos múltiplos e aquelas que não concordassem em entrar no estudo.
As informações foram coletadas pelas entrevistadoras, por meio de questionário único pré-codificado, semiaberto, nas duas maternidades da cidade durante a internação hospitalar, nas primeiras 72 horas após o parto. Foram avaliados retrospectivamente os sinais e sintomas apresentados pela gestante anteriores à internação hospitalar, como perda de líquido, sangue ou a presença de contrações uterinas. Foram investigadas as ocorrências de todas as doenças maternas apresentadas durante a gestação e aquelas anteriores à ela, assim como as condições sociodemográficas.
Foram consideradas gestantes com RPMpt aquelas que tiveram perda de líquido amniótico antes da internação hospitalar e com tempo de gestação inferior a 37 semanas. A variável idade gestacional foi avaliada a partir da data da última menstruação. No caso de valores ignorados para a data da última menstruação, foi utilizada a idade gestacional pela ultrassonografia realizada entre a 5ª e 20ª semanas de gestação, seguida pelo método de Capurro,11 realizado pelo pediatra. Para a classificação socioeconômica, foram utilizados os critérios de classificação econômica Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, baseada em posse de itens e escolaridade do chefe da família.12 A cor da pele foi observada pelo entrevistador.
Foram considerados casos de infecção urinária autorreferida, aquelas infecções sintomáticas e a bacteriúria assintomática, esta última, detectada na rotina do pré-natal.13 Foram considerados casos de corrimento genital autorreferido aquelas mulheres que apresentaram corrimento vaginal diferente de branco, associado a mau cheiro, prurido ou dispareunia.14
Os valores ignorados não foram analisados, sendo que 4,7% das informações sobre a idade gestacional eram desconhecidas. A variável com maior número de informações ignoradas foi nível econômico, pela ausência 5,2% das informações sobre os anos de escolaridade do pai da criança. As análises tinham um nível de significância de 95%. Para o cálculo do tamanho amostral, foi utilizada como referência a idade gestacional, para encontrar uma razão de prevalência de 1,6, levando em consideração a ocorrência de 10% da ruptura prematura da membrana nas gestações a termo (85% na população estudada). Foram acrescentados 15% ao tamanho da amostra para controle de fatores de confusão. Para isso, seriam necessárias 2.231 entrevistas.
A análise multivariável teve como base o modelo conceitual hierarquizado por níveis,15 e foi realizada por meio da regressão de Poisson, controlando para fatores de confusão. Foram incluídas na análise multivariável aquelas que na análise univariada mantiverem um valor p < 0,20. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Foram entrevistadas 2.355 mulheres com gestações únicas; 18 se recusaram a entrar no estudo e ocorreram 51 perdas pela alta hospitalar antes de 72 horas após o parto. A taxa de RPMpt foi de 3,1%. Esta proporção foi 23,6% nas gestações pré-termo.
Observou-se que 18,8% eram adolescentes, 44,7% tinham oito anos ou menos de escolaridade, 69,9% eram de cor de pele branca e 20,1% eram tabagistas. A ocorrência de RPMpt foi maior nas mulheres com menor nível econômico, menor escolaridade e naquelas com idade superior a 29 anos (tabela 1).
Tabela 1 Fatores sociodemográficos relacionados à ocorrência de ruptura prematura das membranas fetais pré-termo. Rio Grande, RS, 2010
Variáveis do nível 1 n | n | RPMpt (%) | RP Bruta (IC95%) | Valor p | RP ajustadaa (IC95%) | Valor de p |
---|---|---|---|---|---|---|
Classificação econômica | 0,001b | 0,010b | ||||
por pontos em tercis | ||||||
Primeiro | 504 | 4,2 | 1,82 (1,26-2,61) | 1,94 (1,27-2,97) | ||
Segundo | 840 | 3,2 | 1,40 (0,99-1,98) | 1,49 (1,03-2,17) | ||
Terceiro (rico) | 785 | 2,3 | 1,00 | 1,00 | ||
Idade da mãe em anos | < 0,001c | < 0,001c | ||||
Menos de 20 | 422 | 3,6 | 1,67 (1,15-2,41) | 1,43 (0,96-2,14) | ||
20 a 29 | 1.172 | 2,1 | 1,00 | 1,00 | ||
30 ou mais | 650 | 4,6 | 2,16 (1,59-2,94) | 2,49 (1,81-3,44) | ||
Escolaridade da mãe em anos | 0,005b | 0,035b | ||||
0 a 8 | 1.004 | 3,6 | 2,73 (1,41-5,50) | 2,43 (1,20-4,89) | ||
9 a 11 | 1.007 | 3,1 | 2,39 (1,21-4,74) | 2,30 (1,11-4,77) | ||
12 ou mais | 233 | 1,3 | 1,00 | 1,00 | ||
Cor da pele | 0,169c | 0,171c | ||||
Branca | 1.569 | 3,3 | 1,24 (0,91-1,69) | 1,26 (0,92-1,73) | ||
Mulata ou preta | 675 | 2,7 | 1,00 | 1,00 |
IC, intervalo de confiança
n, número de mulheres
RP, razão de prevalência.
a As variáveis do nível 1 foram ajustadas umas às outras.
b Teste do Qui-quadrado para tendência linear.
c Teste do Qui-quadrado para heterogeneidade de proporções.
Em relação aos hábitos e doenças maternas, após ajuste, a ocorrência de RPMpt foi maior naquelas mulheres que realizaram tratamento para ameaça de abortamento e de trabalho de parto pré-termo durante a gestação, e nas gestantes tabagistas (tabela 2).
Tabela 2 Doenças maternas relacionadas à ocorrência de ruptura prematura das membranas fetais pré-termo. Rio Grande, RS, 2010
Variáveis do nível 1 | n | RPMpt (%) | RP Bruta (IC95%) | Valor de p | RP ajustadaa (IC95%) Valor de p |
---|---|---|---|---|---|
Trabalhou fora durante | 0,581b | ||||
a gravidez | |||||
Sim | 972 | 3,0 | 1,00 | ||
Não | 1.272 | 3,2 | 1,08 (0,82-1,42) | ||
Parto pré-termo prévio | 0,002b | 0,232b | |||
Não | 2.033 | 2,9 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 211 | 5,2 | 1,80 (1,24-2,60) | 1,27 (0,86-1,88) | |
Aborto prévio | 0,767b | ||||
Não | 1.939 | 3,0 | 1,00 | ||
Sim | 305 | 3,3 | 1,06 (0,72-1,56) | ||
Ameaça de aborto | 0,004b | 0,019b | |||
Não | 2.100 | 3,0 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 144 | 5,6 | 1,88 (1,23-2,88) | 1,68 (1,09-2,60) | |
Fumou na gestação | < 0,001b | < 0,001b | |||
Não | 1.782 | 2,5 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 447 | 5,8 | 2,36 (1,78-3,12) | 2,04 (1,49-2,78) | |
Infecção urinária na gestação | 0,250b | ||||
Não | 1.377 | 2,9 | 1,00 | ||
Sim | 849 | 3,4 | 1,18 (0,89-1,55) | ||
Corrimento genital na gestação | 0,263b | ||||
Não | 1.272 | 2,9 | 1,00 | ||
Sim | 972 | 3,4 | 1,17 (0,89-1,53) | ||
Ameaça de trabalho | < 0,001b | < 0,001b | |||
de parto pré-termo | |||||
Não | 2.044 | 2,5 | 1,00 | 1,00 | |
Sim | 189 | 9,0 | 3,54 (2,58-4,85) | 3,40 (2,44-4,73) |
IC, intervalo de confianca
n, numero de mulheres
RP, razao de prevalencia
a Ajustada para as variaveis do primeiro nivel e para as variaveis do segundo com valor de p . 0,20.
b Teste do Qui-quadrado para heterogeneidade de proporcoes.
A mortalidade infantil, principalmente associada ao componente neonatal,16 e o impacto da prematuridade na morbimortalidade infantil indicam a necessidade de conhecer os mecanismos relacionados à RPMpt, fator de risco para o nascimento pré-termo.
Na população de mulheres estudadas, 3,1% apresentaram RPMpt. Esta proporção é compatível com aquelas encontradas na literatura.1 , 2 Este estudo identificou maior taxa de RPMpt nas mulheres de menor nível econômico e escolaridade. Nestas, a assistência no pré-natal tem menor qualidade, pois elas realizam menor número de consultas e de exames laboratoriais,17 o que pode contribuir para a ocorrência desta afecção entre as mulheres mais pobres.
A associação de RPMpt nas gestantes com idade superior a 29 anos pode ser explicada pela alteração endógena do feto e de seus anexos, já que as aneuploidias fetais são maiores com o aumento da idade materna.18 Os estudos encontrados na literatura não identificaram a idade como fator de risco para esta patologia, por emparelharem os casos de RPMpt com os controles para idade.7 - 9
A ameaça de abortamento durante a gestação mostrou--se associada à RPMpt, o que também foi encontrado em outros estudos.19 , 20 Pode haver fragilidade no desenvolvimento embrionário nos casos de RPMpt. Este estudo também evidenciou associação entre tabagismo materno e RPMpt, semelhante à encontrada em estudo de revisão de Castles et al.21
A ausência de associação entre RPMpt e infecções geniturinárias durante a gestação, neste estudo, pode ser atribuída à realização de tratamento das infecções pela maioria das mulheres. Outros pesquisadores também não identificaram maiores valores de mediadores de processos infecciosos ou de bactérias após a RPMpt.22 - 24
Existe associação entre a RPMpt e o tratamento prévio para a ameaça de trabalho de parto pré-termo. A presença de contrações uterinas na ameaça de trabalho de parto pré-termo pode enfraquecer a membrana amniótica. Outro estudo também encontrou associação entre presença de contrações precoces na gestação e RPMpt.25
A principal limitação deste estudo é o delineamento transversal, que detecta apenas associação, e não infere causalidade. Dessa forma, a pretensão do estudo é levantar novas hipóteses sobre a ocorrência de RPMpt. A utilização de questionário recordatório com informações autorreferidas é o método de eleição para os estudos transversais que tentam buscar associação. Outros estudos sobre ruptura prematura das membranas fetais26 e sobre infecções do trato urinário e genital27 também utilizaram informações autorreferidas. Uma outra limitação é a não detecção por parte do estudo dos casos de infecção genital assintomática. Mas este tipo de infecção não parece ter associação com RPMpt ou prematuridade. Por exemplo, o rastreamento do Streptococco do grupo B é recomendado a partir da 35ª semana de gestação.28
A infecção materna e fetal não parece ser anterior à ocorrência de RPMpt, e sim uma consequência desta. O que poderia aumentar o risco de infecção materna e fetal da RPMpt seria o maior tempo de ruptura anterior ao parto nas gestação pré-termo tardias (de 34 até 37 semanas), em relação às gestações a termo.29
As associações encontradas indicam a importância da qualidade da atenção pré-natal, principalmente às gestantes de menor nível socioeconômico. Também o combate ao tabagismo materno, conhecido fator de risco para vários agravos à saúde na infância, deve ser uma das metas na promoção de saúde durante a gestação. Recomenda-se que os estudos sobre RPMpt estratifiquem os dados por idade materna. As evidências do aumento de risco de RPMpt entre as gestantes de idade superior a 29 anos mostra a relevância da identificação de fatores de risco e sua inclusão nos protocolos de atenção ao pré- -natal e ao parto.