Compartilhar

Saúde Ambiental e atenção à saúde: construção e ressignificação de referências

Saúde Ambiental e atenção à saúde: construção e ressignificação de referências

Autores:

Fábio Luiz Quandt,
Bruna Barbosa Hackbarth,
Douglas Francisco Kovaleski,
Rodrigo Otávio Moretti-Pires

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.22 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400020007

ABSTRACT

This writing aimed to discuss Environmental Health and Primary Care health based on social constructionism. With a multidisciplinary team in Basic Health Units (BHUs), primary care is to organize a population, constructing an integrative relational environment between users and health professionals. The Environmental Health in Primary inserted builds up under a naturalizing and producer of a fallacious morality discourse. Currently, the paradigm that gives sustenance to the current science is organized under assumptions of modernity, and what is outside of this standard will be considered abnormal. This modern conception implied a moral which postulates the "must be" in human relations, aiming models of morality based on facts obtained from empirical knowledge, metaphysics and construction of ideal standards. Society tends to create an idea of the nature and the environmental ideal, linking systems, managing and enforcing limits. Thus, companies end up lifting one of the structures that shape their culture (health care, economic development and education) to their representation influenced by time and space where they were conceived. Therefore, seek criticality in natural phenomena is urgent for the extended singular care and environmental health.

Key words: environmental health; public health; primary health care

INTRODUÇÃO

O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá de valores individuais, concepções científicas, religiosas e filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito sobre as doenças1.

Os termos saúde e doença foram definidos de modo radicalmente novo no início do século XIX, em que as categorias "normal" e "patológico" estavam longe de ser puramente objetivas e científicas2. Os fundamentos epistemológicos da Biologia Moderna e da Medicina estavam interligados com os imperativos políticos, econômicos e tecnológicos. Com isso, observou-se, no século XX, a necessidade do Estado na saúde, principalmente no período Pós-Guerra (1948), quando os Estados de Bem-Estar Social se deflagraram3.

Assim, ao cuidado coletivo em saúde incorporaram-se os sentidos da biologia humana: que compreende a herança genética e os processos biológicos inerentes à vida; do meio ambiente: que inclui solo, água, ar, moradia e local de trabalho; do estilo de vida: fumar ou deixar de fumar, beber ou não, praticar ou não exercícios; da organização da assistência à saúde: a assistência médica, os serviços ambulatoriais e hospitalares4.

Apesar das críticas decorrentes da ideologia e do modo de operacionalizar tais diretrizes, essa elaboração da Organização Mundial da Saúde (OMS) é referência para a construção das concepções de saúde em todo o mundo. Em 1978, sofrendo forte influência dos países socialistas, a OMS aprimorou e ampliou esse conceito a partir dos seguintes pontos: 1) as ações de saúde devem ser práticas, exequíveis e socialmente aceitáveis; 2) devem estar ao alcance de todos; 3) a comunidade deve participar ativamente na implantação e na atuação do sistema de saúde; 4) o custo dos serviços deve ser compatível com a situação econômica da região e do país. Estruturados dessa forma, os serviços que prestam os cuidados primários de saúde representam a porta de entrada para o sistema de saúde5.

No caso do Brasil, o sistema de saúde foi modulado de forma que o acesso aos serviços de saúde fosse garantido pelo Estado e que permeassem as questões de cidadania, pautando-se por uma perspectiva ampliada de saúde, com obrigação legal de formular e executar políticas econômicas e sociais que auxiliem na diminuição do risco de doenças e outros agravos.

A década de 1990 foi um período marcado pelo neoliberalismo - com cortes orçamentários nas áreas sociais - e pela tentativa de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), que caminha no sentido oposto à política neoliberal. Nesse contexto, é iniciado um processo de reformulação na operacionalização do SUS, colocando a Atenção Básica (AB) como ordenadora do sistema e a Vigilância Sanitária com papel estratégico.

Na atual conformação das políticas públicas no Brasil, a AB constitui-se elemento fundamental para o cuidado do cidadão e espaço para intervenção estatal com algumas questões ambientais. O Estado confere para si um poder democrático que pactua e determina os direitos e deveres da população, legitimando, com políticas públicas, o uso, os meios e a orientação do desenvolvimento socioambiental.

É recente a incorporação, pela OMS, da problemática ambiental na AB. O projeto de Atenção Primária Ambiental (APA), de 1998, é um primeiro esforço nesse sentido, tendo sido elaborado por sua representação na América Latina: a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Essa diretiva revela a urgência do enfrentamento intersetorial dos quadros da saúde e do ambiente.

Desse modo, o presente artigo discute a Saúde Ambiental e a AB em saúde coletiva com base no construcionismo social.

DISCUSSÃO

A emergência da Saúde Ambiental no Brasil

O cuidado em saúde, no Brasil, praticamente inexistiu no Período Colonial. O modelo exploratório de produção e as condições de vida dos trabalhadores assemelhavam-se às condições de vida na Europa no início da Revolução Industrial. O pajé, para os índios, e os boticários europeus eram as únicas formas de assistência6.

Em 1808, foi criada uma estrutura sanitária capaz de dar suporte e manter condições salubres às pessoas com melhor condição econômica que se instalavam no Rio de Janeiro. Em meados do século XIX, as preocupações das atividades de saúde pública estavam restritas às juntas municipais, que se limitavam ao controle de navios e da saúde portuária7. Nesse período, o Estado brasileiro atuava de forma pontual nas situações de epidemia.

As primeiras décadas do século XX são caracterizadas por um crescimento econômico que não repercutiu em desenvolvimento social. Epidemias como a febre amarela ameaçavam a política agroexportadora, pois os navios estrangeiros se recusavam a atracar nos portos brasileiros8. Para o enfrentamento dos problemas sanitários, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor do Departamento Federal de Saúde Pública, numa ação semelhante ao modelo alemão de polícia médica (1764)4.

O modelo de intervenção utilizado por Oswaldo Cruz ficou conhecido como campanhista, concebido numa visão vertical e descontínua de atenção. Esse modelo alcançou avanços no controle de doenças epidêmicas, como a erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro, feito que colocou o campanhismo como referência dentre as propostas de intervenção na área da saúde coletiva no período7.

As preocupações com os problemas ambientais relacionados à saúde foram, no século XX, voltadas ao saneamento básico. Assim, alicerçaram-se os cuidados à saúde e as relações desta com o meio ambiente, configurando o modelo hegemônico de intervenção do Estado brasileiro.

Perspectiva epistemológica da Saúde Ambiental brasileira

O discurso da Saúde Ambiental

No Brasil, a expressão "Saúde Ambiental" é definida pelo Ministério da Saúde (2005) como

uma área da saúde pública que atua junto ao conhecimento científico e à formulação de políticas públicas relacionadas à interação entre a saúde humana e os fatores do meio ambiente natural e antrópico que a influenciam, com vistas a melhorar a qualidade de vida do ser humano, sob o ponto de vista da sustentabilidade (art. 4º, parágrafo único)9.

Nos últimos dez anos, a lógica do Desenvolvimento Sustentável passou a se preocupar em compreender esse fenômeno na sua relação com o Estado e seu poder de disciplinarização do ambiente, com foco no desenvolvimento econômico10 - 17. Em tal paradigma, cabe ao Estado mediar modelos de desenvolvimento nos quais direitos humanos e justiça social sejam assegurados. Reorientado para ir além do desenvolvimento capitalista, o Estado deve almejar uma sociedade democrática e inclusiva, capaz de realizar iniciativas individuais e coletivas criativas e inovadoras.

Introduz-se, assim, o discurso do Desenvolvimento Sustentável. A principal preocupação dos adeptos a essa corrente está na dicotomia entre crescimento econômico e degradação ambiental. Essa corrente epistêmica deu base para a Organização das Nações Unidas (ONU), cúpula internacional que se preocupa com o direito, a segurança e o desenvolvimento econômico internacional dos países, orientar suas ações sobre as nações que mantêm algum tipo de intercâmbio socioeconômico18 , 19.

Em 1983, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (WCED, sigla em inglês), convocada pela ONU, foi criada para atender à crescente preocupação sobre as consequências da deterioração acelerada do ambiente humano e dos recursos naturais20. O resultado do trabalho da WCED foi o relatório "Nosso Futuro Comum". Nele, é fornecida uma visão abrangente da crise global ambiental, com reflexões e sugestões sobre como resolver esses problemas. Tal documento colocou questões ambientais na agenda política, com o objetivo de discutir meio ambiente e desenvolvimento como um problema único e idêntico20 - 22.

Realizou-se, em 2012, a Rio+20, com o título alusivo ao acontecimento de 1992 (Rio-92) do qual participaram 183 nações emergentes e desenvolvidas que elaboraram metas e apresentaram relatórios sobre as ações que realizavam e que já haviam realizado, a fim de fomentar novos diálogos e renovar pactos. Por fim, foi elaborado mais um documento pactuado, no qual, nas suas 53 páginas, transcorre o caminho para a cooperação internacional sobre Desenvolvimento Sustentável. Além disso, governos, empresários e outros parceiros da sociedade civil registraram mais de 700 compromissos com ações concretas que atendem a necessidades específicas, como energia sustentável e transporte. Sendo assim, aos poucos vai se consolidando a lógica do Desenvolvimento Sustentável23.

A discussão sobre Desenvolvimento Sustentável é rica e possui construções diversas. Entretanto, este escrito não se propõe a aprofundar esse item, apesar de sua reconhecida importância.

Efeitos da Rio+20 para a Atenção Básica

O modelo político-social do Desenvolvimento Sustentável pretende dar base material para o desenvolvimento. Ou seja, no começo, investia-se na busca de uma economia de meios, porém não se discutia a natureza dos fins e não se refletia sobre o conteúdo desenvolvimentista. Assim, economizar matéria e energia por uma revolução da eficiência foi o caminho proposto para prolongar um desenvolvimento que não era questionado24.

Tal construção social permitiu a inserção de um novo movimento ambiental, agora não organizado pela sociedade civil, mas institucionalizado. A economia verde é uma corrente que atua sobre mecanismos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) que tentam amenizar os problemas ambientais a partir da lógica do mercado25. O PSA é um recurso para fomentar a criação de um novo mercado que tem como mercadoria os processos e produtos fornecidos pela natureza, como a purificação da água e do ar, a geração de nutrientes do solo para a agricultura, a polinização, entre tantos outros. Para isso, é fundamental que exista a possibilidade de valoração monetária, para viabilizar a comercialização, e também a criação de leis que, por meio do estabelecimento de obrigações, criem demanda para o mercado26 , 27.

Um dos marcos teóricos desse movimento foi a elaboração do Protocolo de Kyoto, ratificado em 2005. O documento propunha um calendário pelo qual os países-membros (principalmente os desenvolvidos) tinham a obrigação de reduzir, entre 2008 e 2012, a emissão de gases do efeito estufa em, pelo menos, 5,2% em relação aos níveis de 1990 (para muitos países, como os membros da União Europeia, isso correspondia a 15% abaixo das emissões esperadas para 2008)28.

O Protocolo de Kyoto permitiu que os países poluidores passassem a comprar permissões e créditos de compensação de países cuja emissão está abaixo do limite permitido. Da mesma maneira, no interior dos países, as indústrias poluidoras podem comprar créditos vendidos por proprietários rurais. Destarte, a agenda da economia verde não prevê a modificação dos padrões de consumo, mas o estímulo à mudança parcial dos padrões de produção, por meio da atribuição de preço à biodiversidade e privatização dos bens comuns. Nas conclusões da Rio+20, declarou-se que os países estão aprendendo a tornar suas economias mais verdes, aprendendo uns com os outros29.

A proposta da economia verde traz consigo aprimoramentos que estendem seus efeitos para a atenção à saúde, sob a influência da diretriz que prioriza o desenvolvimento econômico a partir dos meios de proteção estatal. Estes ganharam força em decorrência das crises econômicas, embargos políticos e ditaduras sociais nos países30 - 32.

Os modelos de atenção à saúde propostos pela OMS colocam a concepção de Saúde Ambiental sustentada por duas iniciativas: promoção da saúde e prevenção das doenças. Tais perspectivas constituem estratégias que buscam melhorar as condições de trabalho, moradia, alimentação, meio ambiente e lazer, entre outros fatores que determinam a saúde da população33 - 35.

No Brasil, a Saúde Ambiental se faz presente na proposta da Vigilância à Saúde35, sustenta o projeto de cidades saudáveis36 e influencia práticas de Educação em Saúde37. Segundo Carvalho38, a promoção à saúde é uma mudança por meio da linguagem dos movimentos sociais, usando termos como autoajuda, equidade, empowerment e controle comunitário. Tal linguagem, apesar da ressonância que tem alcançado, mantém-se vinculada aos objetivos do Estado. Ela serve, também, para mascarar mudanças que envolvam a redefinição dos direitos de cidadania. A promoção à saúde não se constitui em projeto libertário ou voltado para a justiça social.

Nesse mesmo sentido, a utilização dos conceitos de risco e de empowerment demonstra a possibilidade de intervenções que reforçam estratégias voltadas para a regulação e a vigilância sobre os corpos, com profundas implicações políticas e morais38. Verifica-se ainda a presença marginal de temas como a luta de classes e a relação entre vida material e saúde, despolitizando o debate e sinalizando para uma sociedade romântica, na qual os indivíduos são induzidos a mudar seus hábitos de vida para terem saúde39.

Naturalização falaciosa

A questão socioambiental desnaturaliza a categoria natureza, pois é uma dinâmica de construto social entre o conhecimento humano e a reapropriação social do ambiente40. Como explica Gonçalves41, toda sociedade acaba por criar, numa utopia, uma ideia do que seja a natureza ou o ideal ambiental, relacionando sistemas, impondo e gerenciando limites, indo à deriva num canal de fuga, o qual a realidade nunca parece surgir no horizonte, mas há sempre a possibilidade eterna de se alcançar um paraíso. Assim, as sociedades acabam por erguer uma das estruturas que forjam sua cultura (atenção à saúde, desenvolvimento econômico e educação). De acordo com Lenoble:

não existe uma Natureza em si, existe apenas uma natureza pensada [...] A natureza em si, não passa de uma abstração. Não encontramos senão uma ideia de natureza que toma sentido radicalmente diferente segundo as épocas e os homens (p. 16)42.

O construto natureza define-se por aquilo que se opõe à cultura. A cultura é trabalhada e apreendida como algo superior e passível de controlar e dominar a natureza. Surge daí a agricultura e, com ela, o homem passa de coletador para agricultor41.

Edgar Morin43, em O paradigma perdido: a natureza humana, coloca uma interessante observação sobre a temática. Para o autor, admite-se um grau de parentesco entre os homens e os primatas, embora os primeiros não mais se considerem pertencentes a essa ordem filogenética. Convencem-se de que, descendentes da árvore genealógica tropical em que vivia esse antepassado, dela escaparam para sempre, para construírem, fora da natureza, o reino independente da cultura43.

A partir da Constituição Brasileira de 1988, emergem algumas interpretações sobre o conceito de ambiente e meio ambiente. Por ambiente entende-se a configuração de condições que envolvem e sustentam os seres vivos na biosfera, como clima, solo, água e organismos. O meio ambiente seria o conjunto das condições externas circundantes a um organismo, uma comunidade ou população44.

A natureza não se sintetiza ao físico, ela é uma construção, uma invenção, um resultado da visão que as relações humanas têm dela no tempo e no espaço42. Em decorrência, o meio ambiente tem um sentido dinâmico entre seus elementos componentes, tanto vivos como não vivos.

De acordo com essa postura de conhecimento, meio ambiente não é apenas o espaço em que se vive, mas o espaço no qual o ser humano aprende a viver45. Para Tostes46, meio ambiente é a multiplicidade de relações e, especialmente, a relação: entre os homens e os elementos naturais; entre homens e as relações que se dão entre as coisas; entre os homens e as relações de relações, pois é essa multiplicidade de relações que permite, abriga e rege a vida, em todas as suas formas.

Essa visão reconhece claramente o direito de preservação do meio ambiente específico de cada espécie. Além disso, não incorre no antropocentrismo característico da maioria das políticas ambientais contemporâneas, que somente preocupam-se com os elementos do ambiente necessários à sobrevivência da espécie humana, com uma visão reducionista. Ao mesmo tempo, reafirma situações acerca de como o conceito de meio ambiente depende fundamentalmente do conhecimento e da cultura local. Por exemplo, o fato de que um local onde um estrangeiro só consegue perceber um deserto árido, um beduíno (cujas raízes históricas aí foram construídas) consegue perceber e (re)conhecer a existência de um meio ambiente significante para a sua qualidade de vida. O mesmo se aplicaria aos habitantes das regiões desérticas geladas e das cidades industriais47.

Por fim, tal concepção moderna do natural implicou numa moral que postula o "deve ser" nas relações humanas. Heemann48 faz referência à falácia naturalística denunciada por Hume, em 1740, e Moore, em 1903. Tais autores referiam-se aos sistemas de moralidade baseados nos fatos obtidos do conhecimento empírico, da construção metafísica e das revelações divinas, estabelecendo as derivações lógicas da natureza. Nesse sentido, o conhecimento privilegiado no acordo social torna-se aceito e é reproduzido sem questionamentos, os quais orientam as condutas sociais, fato que Gonçalves41 aponta como um dos pontecializadores dos conflitos e tensões sociais no debate acerca do meio ambiente.

Outra abordagem de Saúde Ambiental para a Atenção Básica

O caminho da Saúde Ambiental não é linear, apresenta-se como uma das possibilidades que podem ser assumidas no modelo de atenção à saúde pública. Observa-se o privilégio de uma forma de pensar, organizar e intervir nas relações humanas no seu ambiente físico, implicando a naturalização e moralização das mesmas.

Institucionalmente, a AB nacional assume uma postura organizacional diante da questão ambiental, sob uma lógica epidemiológica de agir, ou seja, estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados, propondo medidas específicas de prevenção, controle ou erradicação de doenças, fornecendo indicadores que sirvam de suporte para o planejamento, gestão e avaliação das ações de saúde49.

Nas duas últimas décadas, o conceito de "território" chama a atenção como uma variante de interesse na AB nacional50. Porém, essa aproximação se deu pela construção do "espaço" no SUS. Os espaços são, institucionalmente, conjuntos de territórios e lugares onde os fatos acontecem. Assim, entende-se o território como o ambiente físico habitado e delimitado pelas relações humanas, que envolvem: cultura, políticas, poder e moral51. E a multiplicidade de territórios modifica a percepção das pessoas sobre os riscos distribuídos no ambiente.

Para Santos52, o território precede o espaço e as unidades territoriais se tornam espaços quando submetidas a sucessivas ocupações históricas efetivadas por um povo. Haesbaert, citado em Sposito53 analisa o território com diferentes enfoques, elaborando uma classificação em que são verificadas três vertentes básicas:

i) jurídico-política, segundo a qual o território é visto como um espaço delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal"; ii) cultural(ista), que "prioriza dimensões simbólicas e mais subjetivas, o território visto fundamentalmente como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade social sobre o espaço"; iii) econômica, "que destaca a desterritorialização em sua perspectiva material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho (p. 18)53.

Nesse âmbito, está imbricado o reconhecimento do espaço-território e do ambiente como uma forma de molde, rígido e delimitado, similar aos que moldam engrenagens para maquinarias de processos industriais. Logo, as condições ambientais e a vida do ser no seu espaço, assim como o processo de adoecimento, podem ser entendidas com o aval de protocolos institucionais.

Como exemplo desse movimento contemporâneo, a OPAS lançou, em 1999, uma cartilha sobre o programa de qualidade ambiental para a AB. Resumidamente, almeja-se: a elaboração de diagnósticos ambientais participativos; o apoio à fiscalização ambiental; a vigilância ambiental; os programas de manejo de resíduos; a elaboração de planos estratégicos participativos; as campanhas de saúde pública e de educação ambiental; as ações preventivas; as ações de manejo ambiental; as campanhas de reflorestamento, construção e cuidado de áreas de preservação permanente; os planos e programas de conservação biológica e controle da erosão e usos do solo.

Assim, a expressão da AB com a questão ambiental ocorre sobre a produção de saúde em espaços controlados institucionalmente. O aperfeiçoamento das ações em saúde51 é produzido a partir do ponto de vista funcional dos ambientes e daqueles que dele dependem.

Diante do exposto, seria possível olhar para a relação homem-ambiente de outra forma? E se não houvesse essa dicotomia entre o homem e seu ambiente? E se o ambiente não fosse considerado apenas em sua ascensão "natural", assim como as relações sociais? Quais seriam os efeitos desse posicionamento para o planejamento e a gestão na AB?

Com a modernidade, o homem se torna o centro, a medida do conhecimento ligado à razão. A vontade da divindade e as entidades não mais garantem ou definem o sentido do agir humano: é o próprio sujeito quem dá significado à sua existência, o próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida54.

Contudo, essa postura filosófica sofreu abalos no fim do século XVIII, quando Kant propôs que a experiência é sentida por categorias da consciência humana, impossibilitando uma representação neutra da realidade. Em Crítica da razão pura, Kant55 considerou a mente humana como construtora de significados, e não como receptáculo das forças da natureza. Kant considerou que a mente estrutura e reestrutura ativamente as experiências, produzindo uma forma organizada e cognoscível frente aos fenômenos da vida.

Quando Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, no século XIX, contribuem para os pensamentos de Kant, questionando os discursos e fundamentos da ciência moderna, provocam a crise do paradigma, colocando outro entendimento entre a suposta segurança das representações claras como fundamento de um conhecimento "válido" e a possibilidade de separação entre o sujeito epistêmico e o objeto de seu conhecimento.

Portanto, a ciência é atravessada por essa lógica, que ao mesmo tempo a transforma. O Pós-Modernismo, como conceito, surgiu pela primeira vez na década de 1970, mas só alcançou popularidade após a publicação de Jean-François Lyotard, "A condição Pós-moderna", um relatório sobre conhecimento (edição francesa, 1979). O autor define o momento pós-moderno como incredulidade das metanarrativas. O autor se refere à metanarrativa oferecida pela ciência moderna, especializada e fragmentada.

O discurso pós-moderno nega que pode haver uma metanarrativa capaz de explicar de forma abrangente o mundo como é conhecido. Por outro lado, cada um é capaz de construir a sua própria narrativa, ou a realidade, que geralmente depende do próprio contexto sócio-histórico. A essência do pós-modernismo é a de que não há absolutos fixos. O homem acabou se acostumando a pensar em termos de duas metanarrativas concorrentes: a cristã, que consiste na revelação de Deus nas Escrituras, e a humanista, racionalista, da evolução e do progresso56. Buscar um conhecimento é beneficiar a descoberta das relações entre os significados e símbolos. Aceitar o desconhecido é poder reconhecer nos acontecimentos "não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece" (p. 54), construindo o saber como espaço responsivo57. Essa compreensão de caminho epistêmico é o que constitui o campo da experiência contemporânea57.

Assim, sem focar em leis gerais, o especialista/pesquisador posiciona-se aberto às diferenças, dando importância à singularidade do espaço e do tempo em que está interagindo, enfatizando a pluralidade de significados e a descrença de verdades dadas58. Os efeitos dessa postura legitimam outras bases epistemológicas, colaborando para as ciências em geral e as práticas delas decorrentes. Um exemplo decorrente desse pensar recai sobre o observador, que se entende como parte complementar do acontecimento a ser observado, compreendido como co-construtor dessa realidade.

CONCLUSãO

A partir do leque de autores consultados e das construções desenvolvidas neste escrito, é possível fazer algumas afirmações que caminham no sentido de um aperfeiçoamento da incipiente relação entre saúde e meio ambiente.

Inicialmente, há que se aprofundar o debate teórico sobre a relação saúde e meio ambiente. Para se desenvolver essa atividade, o construcionismo social se apresenta como um referencial adequado.

Ao mesmo tempo, o locus privilegiado para considerar as questões ambientais no campo da saúde coletiva é a AB, pois ela trabalha com a concretude das determinações materiais e sociais construídas em sociedade. O campo da saúde deve romper com a dicotomia entre o homem e meio ambiente, integrando olhares e, consequentemente, ações.

Percebe-se que é necessário desconstruir historicamente a associação entre ambiente e natureza, considerando ambiente e relações sociais enquanto construções sociais, devendo-se vincular esse posicionamento que envolve as relações entre homem e meio ambiente com o cotidiano da ação da equipe na AB, orientando o planejamento, a gestão e a avaliação na AB.

REFERÊNCIAS

1. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis. 2007;17(1):29-41.
2. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.
3. Helman CG. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.
4. Rosen G. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec; 1994.
5. Trigo M. Modelos em saúde: perspectiva critica sobre as origens e a história. Rev Port Saúde Pública. 2000;18(2):5-21.
6. Indriunas L. História da saúde pública no Brasil [Internet]. [cited 2012 Dec 12] 2012 Available from: http://pessoas.hsw.uol.com.br/historia-da-saude.htm
7. Polignano MV. História das políticas de saúde no Brasil: uma pequena revisão [Internet]. [cited 2012 Dec 12] 2012 Available from: http://internatorural.medicina.ufmg.br/saude_no_brasil.pdf
8. Scliar M. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L± 1987.
9. Brasil. Ministério da Saúde. Instrução normativa nº 01 de 7 de março de 2005. Regulamenta a portaria nº 1.172/2004/GM, no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito Federal na área de vigilância em saúde ambiental [Internet]. [cited 2013 Dec 15] 2013 Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/2005/int0001_07_03_2005_rep.html
10. Buss PM, Machado JMH, Gallo E, Magalhães DP, Setti AFF, Netto FAF, et al. Governança em saúde e ambiente para o desenvolvimento sustentável. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(6):1479-91.
11. Ferrarini AV. Desenvolvimento local integrado e sustentável: uma metodologia para políticas e programas de superação da pobreza [Internet]. [cited 2014 Jan 15[ Interações. 2012;13(2):233-41. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1518-70122012000200010
12. Melo PTNB, Salles HK, Van Bellen HM. Quadro institucional para o desenvolvimento sustentável: o papel dos países em desenvolvimento com base na análise crítica do discurso da Rio+20. Cad EBAPE.BR [Internet]. [cited 2014 Jan 20]. 2012;10(3):701-20. Available from: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=323227835013
13. Brunelli M, Cohen M. Definições, diferenças e semelhanças entre empreendedorismo sustentável e ambiental: análise do estado da arte da literatura entre 1990 e 2012. Anais do XXXVI EnANPAD; 2012 Sep 22-16; Rio de Janeiro: ANPAD; 2012.
14. Emmendoerfer ML. Desenvolvimento territorial sustentável no Brasil: subsídios para uma política de fomento. Rev Adm Contemp. 2012;16(6):889-90.
15. Goldemberg J, Lucon O. Energia, meio ambiente e desenvolvimento. São Paulo: EUSP; 2008.
16. Sachs I. Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond; 2008.
17. Veiga JE. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.
18. Bossel H. Indicators for sustainable development: theory, method, applications - a report to the Balaton Group. Winnipeg: International Institute for Sustainable Development; 1999.
19. Hardi P, Barg S. Measuring sustainable development: review of current practice. Winnipeg: International Institute for Sustainable Development; 1997.
20. Brundtland GH. Nosso futuro comum: comissão mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas; 1991.
21. Canepa C. Cidades sustentáveis: o município como lócus da sustentabilidade. São Paulo: RCS; 2007.
22. Cavalcanti C, organizador. Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; 2003.
23. Brasil. Ministério do Meio Ambiente, de Articulação Institucional e Agenda 21, coordenador. Bezerra MCL. Construindo a Agenda 21 brasileira. Brasília: IBAMA; 2000.
24. Acselrad H. Environmentalism and environmental conflicts in Brazil. In: Conference Social Movements in the South; 2002. Cambridge: Kennedy School of Government, Harvard University; 2002.
25. Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Rumo à economia verde: caminhos para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza, síntese para tomadores de decisão Internet. 2013. Available from:
26. Frischtak CR. O Brasil e a economia verde: fundamentos e estratégia de transição. In: Política ambiental economia verde: desafios e oportunidades/conservação internacional [Internet]. Belo Horizonte: Conservação Internacional; 2011(8). [cited 2013 Dec 28] Available from: http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/politica_ambiental_08_portugues.pdf
27. Ayres R, Bassi A, Clememts-Hunt P, Dalkmann H, Eaton D, Grieg-Gran M, et al. Rumo a uma economia verde: caminhos para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza - síntese para tomadores de decisão [Internet]. PNUMA; 2011. [cited 2012 Apr 11] Available from: http://www.pnuma.org.br/admin/publicacoes/texto/1101-GREENECONOMY-synthesis_PT_online.pdf
28. Nobre M, Amazonas M, organizadores. Desenvolvimento sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: IBAMA; 2002.
29. Escola Nacional de Saúde Pública. Blog saúde em pauta [Internet]. [cited 2013 Jan 10] 2013 Available from: http://saudeempauta.ensp.fiocruz.br/
30. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica [Internet]. Rev Saúde Pública. 2006;40(N Esp):64-72. [cited 2014 Jan 13] 2014 Avaiable from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v40nspe/30624.pdf
31. Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA, editores. O clássico e o novo: tendências e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003.
32. Minayo MCS, Coimbra JR, CEA, editores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2005.
33. Silveira LS. Prevenção de doenças e promoção da saúde: diferenciais estratégicos na conjuntura do mercado de saúde suplementar dissertação Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2004 .
34. Czeresnia D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003. p. 39-53.
35. Teixeira CF, Paim JS, Vilasboas AL. SUS: modelos assistenciais e vigilância da saúde. Inf Epidemiol SUS. 1998;7(2):7-28.
36. Westphal MF, Mendes R. Cidade saudável: uma experiência de Interdisciplinaridade e intersetorialidade [Internet]. Rev Adm Pública. 2000;34(6):47-61. [cited 2013 Sep 04] Available from: http://www.ebape.fgv.br
37. Hills M. Workshop for teachers of health promotion. VI Brazilian Congress on Collective Health; 2000; Rio de Janeiro, Brazil. Rio de Janeiro: Abrasco/ENSP/CPHA; 2000.
38. Carvalho SR. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de promoção à saúde [Internet]. Cad Saúde Pública. 2004;20(4):1088-95. [cited 2013 Sep 10] Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v20n4/24.pdf
39. Carvalho SR. Saúde coletiva e promoção à saúde: uma reflexão sobre o tema do sujeito e da mudança [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2002.
40. Carvalho ICM, Steil CA. A sacralização da natureza e a "naturalização" do sagrado: aportes teóricos para a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade. Ambient Soc. 2008;11(2):289-305.
41. Gonçalves CWP. Os (des)caminhos do meio ambiente. 14ª ed. São Paulo: Contexto; 2006.
42. Lenoble R. História da ideia de natureza. Lisboa: Edições 70; 1969.
43. Morin E. O paradigma perdido: a natureza humana. 5ª edição. Lisboa: Publicações Europa América; 1991. p. 74-8.
44. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado; 1988.
45. Primavesi AM. Agroecologia: ecosfera, tecnosfera e agricultura. São Paulo: Nobel; 1997.
46. Tostes A. Sistema de legislação ambiental. Petrópolis: Vozes/CECIP; 1994.
47. Ehrenfeld D. Beginning again: people and nature in the new millennium. New York: Oxford University Press; 1993.
48. Heeman A. Natureza e ética. Curitiba: UFPR; 1998.
49. Rouquayrol MZ, Goldbaum M. Epidemiologia: história natural e prevenção de doenças. In: Rouquayrol MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia & saúde. 6ª edição. Rio de Janeiro: Medsi/Guanabara Koogan; 2003. p. 108-86.
50. Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, Monken M, organizadores. Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2008.
51. Barcellos CC, Sabroza PC, Peiter P, Rojas LJ. Organização espacial, saúde e qualidade de vida: análise espacial e uso de indicadores na avaliação de situações de saúde. Inf Epidemiol SUS. 2002;11(3):129-38.
52. Santos M. O retorno do território. In: Santos M, Souza MAA, Silveira ML, organizadores. Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; 1994. p. 15-20.
53. Sposito ES. Sobre o conceito de território: um exercício metodológico para a leitura da formação territorial do sudoeste do Paraná. In: Ribas AD, Sposito ES, Saquet MA. Território e Desenvolvimento: diferentes abordagens. Francisco Beltrão (PR): Unioeste; 2004. p. 15-20.
54. Machado J. Apresentação, vazio e comunicação na era "pós-tudo". In: Lipovetsky G. A era do vazio. Barueri (SP): Manole; 2005. p. 9-19.
55. Kant I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural; 1999.
56. Macdonald ST. An analysis of the efficacy of the Texas and Oklahoma Unitization Statutes [tese]. Dallas: The University of Texas; 2000.
57. Martinelli ML, Rodrigues OML, Muchail S, organizadores. O uno e o múltiplo nas relações do saber. São Paulo: Cortez; 1995.
58. Ibáñez T. Municiones para dissidentes: realidad, verdad, política. Barcelona: Editorial Gedisa; 2001.