versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.6 Rio de Janeiro jun. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017226.23882015
The article examines divergences and interfaces between the fields of Physical Education (PE) and Public Health (PH) in the Brazilian context, highlighting tensions in the supremacy for scientific authority and competence in line with the concepts of ‘scientific field’ and ‘nuclei of knowledge’. Understanding PH as an institutionalized, legitimized and scientifically consolidated field with three fundamental nuclei: Epidemiology; Social and Human Sciences; and Policy, Planning and Management; we show its approximation to the PE field, resulting in specific knowledge and practices of PE in PH. By stressing risks of a sedentary lifestyle, Epidemiology was the first nucleus of linkage to this new field. Nevertheless, reflections from the Social Sciences broaden the understanding of the PE/PH objects of study by recognizing the multidimensional nature of the corporal culture related to health. However, the Policies nucleus only took shape when physical activity became a priority in a set of policies and programs to combat chronic diseases and promote health. Tensions between the biological and social paradigms define the configuration of the fields and represent a major challenge to be overcome by PE/PH, albeit the critical benchmark in health offers a promising way for overcoming it.
Key words: Scientific field; Nuclei of knowledge; Public health; Physical education
O presente artigo busca examinar a configuração epistemológica de um importante núcleo de saberes e práticas: a Educação Física em Saúde Coletiva (EFSC), que emerge e vem se consolidando no contexto sanitário brasileiro, em compasso com fenômenos como as transições nutricional e demográfica e o destaque crescente dado à atividade física nos protocolos em saúde, tanto na dimensão coletiva como individual1-3. Não obstante essa relevância, análises sobre essa configuração constituem um tema ainda lacunar na literatura cientifica. Trata-se de um espaço que vem sendo construído a partir da interface de seus campos de origem, a Saúde Coletiva (SC) e a Educação Física (EF), ambos reconhecidos como domínios específicos, multidimensionais e marcados pela interdisciplinaridade, nos quais convivem, de forma por vezes conflitiva, distintos saberes e paradigmas4,5. No Brasil, cada um desses campos possui redes de formação que guardam mútua autonomia, cabendo destacar a recente emergência de cursos de graduação em SC6 e a divisão da graduação em EF em licenciatura e bacharelado7.
A EFSC ocupa um espaço de interseção que mantém características próprias dos campos originários, mas também evidencia algumas rupturas com seus contornos seminais. Para examinar esse novo âmbito de saberes e práticas que vem se configurando no Brasil optamos por revisitar, de início, os domínios da SC e da EF, buscando identificar os saberes que os constituem, os movimentos entre eles, e as interações que se processam entre os campos, de modo a, na sequência, evidenciar algumas aproximações, distanciamentos e interfaces da EFSC sem, contudo, ter a pretensão de esgotar todas as dimensões dessa complexa análise no presente artigo.
Para auxiliar a identificação dos objetos, conceitos e métodos que marcam cada um dos campos específicos utilizamos o constructo “núcleos de saberes” correspondendo aos espaços e formações disciplinares de cada campo4, tal como proposto por Bosi e Prado8 em análise concernente ao campo da Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, cujo modelo inspira este artigo. Trata-se, portanto, de um exercício reflexivo-analítico, orientado por um arcabouço conceitual mediante o qual analisamos configurações epistemológicas de dois campos e a dinâmica entre os mesmos. Nessa análise, consideramos também as relações de poder que perpassam as estruturas de pensamento partilhadas por uma comunidade, sem o que não poderíamos compreender fenômenos como a emergência e a hegemonia conquistada por cada paradigma em dado momento histórico9. Reconhecemos aproximações e contradições que perpassam a constituição de cada um dos campos de origem, buscando explicitar dois planos de tensionamento: um de ordem epistemológica e outro, de natureza político-ideológica. Ao considerar os embates epistemológicos como tensões intrinsecamente políticas entre estruturas conceituais operantes tanto no plano conceitual quanto na práxis do campo9 adotamos o conceito de “campo científico”, entendido como espaço de luta concorrencial em torno de monopólios da autoridade e da competência científicas10.
A constituição da Medicina Social, da Saúde Pública e da SC vinculam-se estreitamente às políticas de saúde e expressam especificidades do contexto sócio-histórico em que emergiram. A Medicina Social tem origem associada aos projetos conhecidos como polícia médica na Alemanha, medicina urbana na França e medicina da força de trabalho na Inglaterra. A Saúde Pública é um projeto que se vincula à emergência do capitalismo na Europa e seus efeitos na saúde como desdobramentos da industrialização, urbanização desordenada e aumento da miséria relativa. Já o campo da SC surge no Brasil a partir de 1970, quando uma vertente crítica no interior da Saúde Pública oferece resistência à posição dominante das teorias lineares da causalidade e busca conjunções interdisciplinares e críticas, visando a superar, dialeticamente, o modelo biomédico4.
Atualmente, o acúmulo de reflexões sobre o campo da SC nos permite declará-lo como espaço institucionalizado, legitimado e cientificamente consolidado, apresentando uma natureza epistemológica e uma prática política diferenciadas fundadas na interface das Ciências Naturais e das Ciências Humanas e Sociais11. O campo da SC se fundamenta a partir de três núcleos de saberes principais: a Epidemiologia; (a parcela das) Ciências Humanas e Sociais que transita nesse campo; e o domínio que, sob múltiplos rótulos, se ocupa da Política, do Planejamento e/ou da Planificação e da Gestão de Sistemas de Saúde8.
O núcleo da Epidemiologia tem por objeto “a distribuição e os determinantes dos processos de saúde e doença em populações humanas”12. Em compasso com as tendências dominantes da ciência moderna, tem-se a evidente hegemonia da Epidemiologia sobre os demais núcleos no âmbito da SC, notadamente sobre as humanidades8.
Não obstante, no plano epistemológico, a SC passa a apresentar interseções cada vez mais amplas e profundas com o núcleo das Ciências Humanas e Sociais em Saúde visando a obter a transdisciplinaridade exigida pelos objetos de que se ocupa13. As teorias e metodologias consolidadas a partir desse núcleo foram indispensáveis para o desenvolvimento e a consolidação do campo14. Ao lidar com dimensões qualitativas e quantitativas; sujeito e estrutura; natureza e história; objetividade e subjetividade8, representaram a base da inovação e da práxis em SC4. A contribuição da teoria crítica nas análises desenvolvidas permite então repensar o método e o processo de construção de enunciados científicos, não apenas mensurando, mas contextualizando socialmente o processo saúde-doença.
As Ciências Humanas e Sociais ajudam também a reconfigurar o núcleo da Epidemiologia, inserindo elementos conceituais e metodologias que a dotam de uma visão crítica ou social, e fornecem bases conceituais de distintos domínios disciplinares ao núcleo das Políticas, planejamento e gestão em saúde8. Assim, ainda que a Epidemiologia predomine, o núcleo das Ciências Humanas e Sociais vem fortalecendo as bases epistemológicas do campo e gerando desdobramentos operacionais mais consistentes, tanto no âmbito das práticas quanto nos locais de formação e de geração de conhecimentos em saúde14. Contudo, cabe salientar que a incorporação das Ciências Humanas e Sociais ainda não ocorreu em sua plenitude, havendo espaço para considerações mais refinadas da subjetividade produzida e produtora da práxis em saúde, projeto que vem ganhando força na produção mais recente15.
Por fim, o núcleo das Políticas, planejamento e gestão em saúde incorpora elementos conceituais das Ciências Humanas e Sociais à dimensão política, enfatizando questões vinculadas às relações de poder, bem como àquelas referidas no planejamento e no estabelecimento de diretrizes, planos, programas e ações em âmbito populacional, e suas implementações e avaliações16.
A SC como campo científico assumidamente interdisciplinar, atrai profissionais de diversas origens e incursiona por outros campos científicos mediante seus três núcleos fundamentais de saberes8. Isso se torna evidente nas últimas duas décadas, quando a SC passa a refletir sobre e se ocupar da promoção da saúde através da cultura corporal do movimento humano e, para tal, se aproxima da EF11. No entanto, antes de analisarmos as interfaces entre ambos, cabe recuperarmos as origens, a trajetória e a constituição do campo da EF.
O campo da EF brasileira se constitui apoiado no modo de produção capitalista da primeira metade do século XX, quando a prática sistematizada de movimentos físicos estava a cargo das instituições militares. Afiliado aos pensamentos nacionalista, militarista e biomédico, buscava “educar” o corpo para a produção e o combate na perspectiva da aptidão física, da eugenia e da segurança nacional17.
Tentativas de avanço de teorias críticas da educação na EF foram abortadas pelo golpe militar de 1964 que importou o modelo americano de esporte competitivo para o Brasil, bastante apropriado à ocasião por defender o individualismo disciplinado, o autossacrifício e o devotamento ao país como causa comum18. A EF brasileira incorporou, assim, saberes e práticas que buscavam o aprimoramento físico e técnico do indivíduo apoiado nos pressupostos da racionalidade, produtividade e eficiência mecanicista19. É nesse contexto sociopolítico que surgem os primeiros cursos de pós-graduação em EF, centrados na vertente biológica, fortemente marcados pela fisiologia do exercício e pela cinesiologia, e sem relação com o contexto social, pedagógico ou sanitário5.
A partir de 1980, refletindo o processo político de redemocratização do país, num movimento epistemológico próximo ao da SC, a EF incorpora efetivamente disciplinas relacionadas às Ciências Humanas e Sociais, e passa a realizar reflexões críticas sistemáticas em busca de seus propósitos voltados à educação e à sociedade, fundamentadas principalmente no materialismo dialético e respaldadas pela concepção histórico-crítica da Filosofia da Educação17,20. Ao mesmo tempo, as academias, suas diferentes modalidades de exercícios e a visão da aptidão física (fitness) passam a ser amplamente divulgadas no Brasil como essenciais à saúde21, numa perspectiva biomédica, individual e de consumo. Esses dois movimentos, contraditórios, exacerbam os embates epistemológicos e as disputas político-ideológicas entre os saberes sociais e biológicos tanto no plano conceitual quanto na práxis do campo22. No entanto, nesse período não se observam análises ou críticas sistematizadas questionando o paradigma hegemônico da aptidão física como sinônimo de saúde23.
Nos anos de 1990 – com a rápida ampliação e diversificação do mercado de trabalho, que passa a incluir: áreas de atuação referentes aos bens e serviços24; a expansão acadêmica, com abertura de inúmeros cursos de graduação e pós-graduação25; a reestruturação e a divisão dos cursos de formação em licenciatura e bacharelado26; o reconhecimento da profissão como pertencente à área de saúde27 e a regulamentação da profissão28 – o campo da EF dá seguimento às discussões epistemológicas buscando definir seu estatuto científico. No entanto, encontra dificuldades em delimitar objetos, métodos e linguagens próprios, retardando sua consolidação no campo cientifico5,20. Nesse período, debates inaugurais sobre EF e saúde foram observados, quando algumas instituições de ensino superior buscaram dar identidade à formação do bacharel com ênfase na saúde. Entretanto, como aponta Carvalho29, grande parte desses esforços careceu de um olhar ampliado sobre o conceito de saúde.
Sem concordância sobre sua identidade e, ainda menos acerca das modalidades de formação7, o campo da EF cresce e se estabelece marcado por uma miríade de significados, em que o uso de uma diversidade de conceitos e classificações amplia as dificuldades de entendimento a respeito das propostas de formação, intervenção e investigação do campo. Constata-se um intenso debate, no qual várias denominações, conceituações e classificações são propostas para se analisar o mesmo fenômeno, a partir de uma confusão entre os objetivos e a natureza do termo utilizado20,22. Termos como exercício, esporte, atividade física, ginástica, cultura corporal, movimento humano, prática corporal, motricidade, educação física e outros30 circulam em espaços e discursos distintos, ora como sinônimos, ora marcados por algumas especificidades que os afastam, em um movimento permanente entre senso comum e conceitos científicos5,31.
Não sendo propósito deste texto aprofundar a reflexão epistemológica sobre esse movimento, é importante destacar a tensão entre estruturas que operam tanto no plano conceitual quanto na práxis do campo. Como exemplo, destacamos o termo atividade física, muito utilizado no cotidiano leigo e de práticas contemporâneas em saúde, e que mantém ligações intrínsecas com o paradigma biologizante da aptidão física e com o conceito de risco subjacente ao discurso corrente sobre o sedentarismo29. Em contrapartida, termos como práticas corporais e cultura corporal do movimento, dentre outros, buscam explicitar o caráter complexo do fenômeno e suas várias ligações sociais32. Num esforço analítico para sintetizar algumas convergências do campo, ainda que para isto tenhamos que atenuar diferenças e incorrer em simplificações, optamos por adotar, em consonância com o documento oficial das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em EF30, que o objeto de estudo e prática da EF é o movimento humano, reconhecendo o caráter polissêmico do termo.
Entretanto, após “definir” o objeto, precisamos ainda identificar um núcleo básico que dê identidade ao “pensar” e ao “fazer” na EF19. Seguindo o esforço de síntese a partir da multiplicidade de posições e formulações epistemológicas que existem, é possível identificar alguns pressupostos comuns que subjazem às proposições, permitindo distribuí-las em duas vertentes principais: a científica e a pedagógica22. Em linhas bastante gerais, a primeira se compõe de formulações – como a cinesiologia de Tani33; a ciência da motricidade humana de Manuel Sérgio34; as ciências do desporto de Gaya35; e a ciência do movimento humano de Canfield36 – que buscam a constituição de uma ciência autônoma substitutiva às abordagens disciplinares. Já a segunda se apoia em outro conjunto de saberes – tais como a prática pedagógica da EF como eixo integrador de Bratch17; a EF como teoria da prática de Betti37; o papel mediador da EF de Lovisolo38; e a EF como ciência da e para a prática interdisciplinar de Gamboa39 – que refletem sobre a EF como uma prática pedagógico-social, com ênfase no seu papel educador mesmo na perspectiva científica.
A despeito de a fundamentação do campo científico da EF ocorrer na interface dos campos das Ciências Naturais com as Ciências Humanas e Sociais – lembrando a adjetivação “educação” que transpõe as Ciências Naturais – destacamos a posição hegemônica do modelo biomédico e a ausência de uma interdisciplinaridade no campo40,41, explicitada quando a EF é inserida na denominada “grande área da Saúde” no sistema de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)20,25. Em consonância com outros cursos da área da saúde, a EF se configura predominantemente reduzida aos parâmetros da racionalidade científica moderna, derivados do método experimental e da tradição quantitativa de pesquisa, que deixam como legado a fragmentação e a neutralização de dimensões subjetivas fundamentais ao estudo da vida, da saúde, do corpo e de suas relações com o movimento humano42.
Tal concepção de ciência tem um óbvio impacto na produção e definição dos núcleos de saberes em EF. Apesar de, na teoria, haver um reconhecimento do caráter multidisciplinar – expresso na definição dos conteúdos curriculares da formação: relação ser humano-sociedade, biologia do corpo humano e produção do conhecimento científico e tecnológico30 – na realidade, a EF constrói sua base cognitiva de forma fragmentada, com hegemonia biodinâmica41. Empresta da Medicina conteúdos que permitem a análise do corpo e se aproxima da Educação para construir a essência de sua prática17,40.
Essa luta entre os campos da Educação e da Saúde (na visão hegemônica da aptidão física) pelos monopólios da autoridade e da competência científica se reflete também na atuação profissional em EF20. A despeito das inúmeras possibilidades de atuação – que contemplam o movimento humano em diferentes modalidades (exercício, ginástica, jogo, esporte, luta/arte marcial, dança) e perspectivas (prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde; formação cultural; educação e reeducação motora; rendimento físico-esportivo; lazer; gestão de empreendimentos relacionados a estas temáticas; dentre outros)30 – os campos clássicos de intervenção profissional, que recebem quase a totalidade dos egressos que atuam na EF, são escolas e academias43.
O tensionamento culmina com a divisão dos cursos em licenciatura e bacharelado26, embora até recentemente a Resolução CFE 03/1987 não havia ocasionado resultados práticos quanto à diferenciação da formação. A questão ideológica do debate é a característica eminentemente pedagógica da prática em EF, a despeito do lócus de atuação. Politicamente, o Conselho Federal de EF (CONFEF) tenta garantir a atuação exclusiva dos bacharéis nos espaços não escolares já que o Ministério da Educação exige a formação em licenciatura para atuação nas escolas.
Não obstante os embates entre biológico e social, saúde e educação, bacharelado e licenciatura (tanto no plano conceitual quanto na práxis) destacamos que, no sentido mais geral e difundido, o campo da EF sempre buscou promover a aptidão física e a saúde expressas pela capacidade de trabalho e/ou de rendimento individual, adotando primordialmente a concepção anátomo-fisiológica de corpo a ser desenvolvido numa perspectiva técnico-desportiva17,40. Assim, a transdisciplinaridade exigida pelo objeto de estudo e prática da EF continua reduzida à dualidade fragmentada, que cria modelos ideais fechados para fenômenos sociais complexos que se manifestam dinamicamente nos espaços sociais, gerando desafios e impasses teóricos e práticos e dificultando o avanço do campo39,41.
No século XXI, as novas relações e organizações sociais (tal como a globalização); as mudanças sociossanitárias decorrentes dos aumentos da expectativa de vida, do excesso de peso e da prevalência de doenças crônicas; e as transformações nas relações do homem com seu corpo em movimento no lazer, no trabalho e no deslocamento, tornam imprescindível repensar as necessidades humanas e valorizam a atividade física como elemento chave na promoção da saúde1. Esse contexto favorece o encontro dos campos científicos da EF com a SC no Brasil, ainda que muito baseado na perspectiva do risco44.
A publicação da Política Nacional de Promoção da Saúde1, que institucionaliza no nível Federal as atividades físicas/práticas corporais como ações prioritárias de promoção da saúde, e seus desdobramentos – a criação dos Núcleos de Apoio à Estratégia Saúde da Família com oportunidade para o profissional de EF2, a criação de Programas como o Academia da Saúde3 e a gradual inserção da EF no Pró-Saúde (Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde)45 e no PET-Saúde (Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde)46 – passam a demandar uma nova dinâmica nos espaços de formação e no mercado de trabalho da EF, que agora inclui os serviços públicos de saúde. No início, a concepção de EF levada a interagir com a SC refletia o modelo de valorização da atividade física como fator de promoção da saúde (em sua perspectiva comportamentalista do controle de riscos), promovendo o melhor ajuste do homem à sociedade capitalista através de uma boa aptidão física31,44. Não obstante, é importante citar o processo de revisão da PNPS que ocorreu em 2014 com o intuito de superar ou ao menos minimizar o caráter epidemiológico, reprodutor da responsabilidade individual nos discursos e práticas governamentais em promoção da saúde47.
Conforme apresentaremos a seguir – apesar de ainda manter algumas características e tensões manifestas nos campos de origem, como a polarização entre as abordagens biológica e social – a constituição da EFSC promoveu um conjunto intrincado de movimentos epistemológicos e políticos que permeiam e modificam os campos de origem, abrindo possibilidades de reflexões em busca de paradigmas capazes de subsidiar projetos inovadores de movimento humano voltados para a saúde, em sentido complexo e multidimensional, tal como exigem os desafios contemporâneos à saúde e à vida44.
O arcabouço teórico-metodológico da Epidemiologia moderna é um dos primeiros fundamentos de vinculação entre a EF e a SC. Estudos inaugurais sobre a relação entre atividade física e doenças cardiovasculares desenvolvidos em Londres, comparando a taxa de mortalidade entre carteiros e trabalhadores de escritório do serviço postal e entre motoristas e cobradores dos ônibus de dois andares, mostraram que atividades ocupacionais com maior gasto energético estavam associadas com menor mortalidade por doenças coronarianas48.
A partir da segunda metade do século XX no Brasil, as “transições epidemiológica, demográfica e nutricional” redirecionam significativamente o foco das pesquisas epidemiológicas para a obesidade e as doenças crônico-degenerativas, exigindo novos investimentos metodológicos e inserindo de vez o sedentarismo como fator determinante de agravos à saúde. Assim, o cenário de embates que marcam a Epidemiologia no campo da SC se replica no campo da EF. Hoje abundam estudos epidemiológicos que consistentemente demonstram a associação entre maiores níveis de atividade física e/ou aptidão física e a diminuição no risco de doenças crônicas49.
A “Epidemiologia da atividade física e saúde” transcorre fundamentada nas Ciências Biológicas, naturaliza a linguagem do risco e desconsidera a natureza multidimensional de fenômenos como a saúde e o movimento. A operacionalização do método ganha destaque em detrimento das reflexões teóricas acerca das relações humanas mediadas pelo movimento corporal, fixando-se no seu desfecho: a aptidão física. Ao adotar um âmbito mais técnico e se afastar das abordagens sociais com suas reflexões teóricas e epistemológicas, a “Epidemiologia da atividade física” contribui mais para a fragmentação de saberes e práticas em EF e Saúde do que para sua construção em fundamentos interdisciplinares40,41. Reproduz, mais uma vez, a força do método em detrimento do enunciado, uma das marcas da racionalidade científica moderna, se identificando fortemente com a economia dominante no campo científico42.
Esse processo, evidentemente, não se dá sem embates. O movimento de resistência ao modelo científico hegemônico da EF a partir das teorias críticas da Educação31 se fortalece ao se aproximar dos programas de pós-graduação em SC como loci privilegiados para atender às demandas por formação crítica11. Ainda que em proporções minoritárias, o núcleo “Epidemiologia da atividade física” vai ampliando a visão de seus objetos de estudo mediante o emprego dos aportes da Epidemiologia Social, articulando informações sobre comportamentos e agravos ao contexto nacional de fortes iniquidades histórico-sociais, possibilitando novas frentes de estudo e atuação49.
O encontro com as teorias críticas da SC resulta ainda no aumento significativo de estudos e publicações sobre o caráter social e humano do movimento e da saúde44,50, incluindo estudos sobre a formação em EFSC51-54 e análises e avaliações mais politizadas de programas e ações governamentais de combate ao sedentarismo e da atuação do profissional de EF na promoção da saúde23,55-58.
Assim, as reflexões abarcadas pelas Ciências Humanas e Sociais em EF e Saúde implicam na reorientação do que a EF reconhece como saúde. Há que se distinguir a aproximação inicial da EF com as Ciências Humanas e Sociais nos anos de 1980, que realizou reflexões embasadas nas teorias críticas da Educação, desta reaproximação atual desencadeada pelo contato com a SC. Esses referenciais, seminais na conformação do campo da SC, trouxeram ao da EF questionamentos acerca dos fundamentos e subjetividades implicadas com o movimento humano e de seu alcance para descrever e explicar questões como determinação social do sedentarismo, da saúde e de outros fenômenos que escapam aos modelos causais lineares, configurando, gradualmente, novos objetos de estudo e atuação50,53.
A reaproximação da EF com as Ciências Humanas e Sociais pela via da SC tem ainda maior relevância se a pensarmos contextualizada no momento pós-divisão da formação profissional em licenciatura e bacharelado quando, grosso modo, a primeira opção de formação manteria o legado das reflexões pedagógicas de cunho Humanístico e a segunda estaria fadada quase que exclusivamente às Ciências Biológicas, não fosse o encontro com a SC40,41,59. Entretanto, esta perspectiva não indica que o desenvolvimento da EFSC se aproxime apenas do conjunto de saberes e práticas do bacharelado. Pelo contrário, o caráter transdisciplinar da SC vem sendo fortalecido a partir de propostas intersetoriais como, por exemplo, o Programa Saúde na Escola60 e o Pró/PET-Saúde, programas desenvolvidos em parceria pelos Ministérios da Saúde e da Educação45,46.
Embora existam registros de produções científicas com enfoque social que reconhecem a natureza multidimensional e holística da relação homem-movimento-sociedade-saúde no campo da EF desde meados de 199029, o aumento desse tipo de produção é indiscutível. Hoje contamos com reflexões que permitem “pensar” a EF e a saúde como possibilidades de realização humana, incluindo o lugar dos atores sociais em suas relações coletivas; a compreensão e a inclusão das subjetividades como fenômenos situados no seu contexto histórico; a análise crítica no estudo de intervenções e na formação de profissionais; e a revisão da práxis e dos paradigmas dominantes no mundo da ciência, dentre tantos outros23,44,50,51,53,54,56-59.
Quanto a análises histórico-críticas de políticas e programas sociais, podemos afirmar que essas são mais comuns ao campo da EF partindo de olhares sobre o Esporte, o Lazer e a Educação20,61. No entanto, análises voltadas a apontar os limites e as contradições políticas da EFSC são mais escassas. A materialização desse terceiro núcleo de saberes - “Política, planejamento e gestão em EF e Saúde” - vem sendo possível apenas na última década, quando as atividades físicas/práticas corporais são assumidas como prioridade no complexo conjunto de políticas, estratégias e programas de combate às doenças crônico-degenerativas e de promoção da saúde formuladas no âmbito do Estado brasileiro1-3,45-47,60.
Acompanhando o aumento recente de programas e financiamentos relativos à atividade física e saúde, alguns trabalhos vêm tentando dar maior visibilidade ao pensamento crítico, denunciando o caráter intrinsecamente epidemiológico, reprodutor do capital e da responsabilidade individual nos discursos e práticas governamentais formuladas a partir de estudos que defendem a relação entre atividade física e promoção da saúde47,55,62-64.
Não obstante esses avanços, gostaríamos de destacar alguns aspectos que ainda consideramos desafios ao campo da EFSC. Primeiro, apontamos fragilidades e inconsistências epistemológicas e a necessidade de maior embasamento teórico-metodológico em algumas das produções contemporâneas. Se por um lado, a “atividade física” ganha lugar na SC, esta, mesmo que de forma disfarçada, mantém o espaço dos referenciais biomédicos e normalizadores. Por outro lado, a inserção de termos como “práticas corporais” tenta trazê-la para dentro das perspectivas socioculturais, destacando assim suas distinções31,41,44. No entanto, muitos pesquisadores desconsideram esse tensionamento em suas análises.
Segundo, os desdobramentos operacionais, ou seja, as repercussões desses estudos nas práticas em saúde e nos locais de formação ainda são tímidos59. A concretude das ações da EFSC, tanto no âmbito da formulação quanto da execução, ainda evidencia a “crise epistemológica e de identidade” dos campos originais23. O terceiro desafio se refere à construção interna da interdisciplinaridade na EFSC. A despeito da aproximação entre os três núcleos de saber – Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais e Políticas na EFSC – essa dinâmica simultaneamente explicita e aprofunda as tensões conceituais que busca enfrentar. A exigência de foco nas ações e resultados concretos e imediatos no âmbito das “Políticas em EFSC” pode afastar os atores da necessária reflexão conceitual acerca dos paradigmas em disputa.
Com o intuito de contribuir com a reflexão sobre o que caracteriza e demarca a EFSC o presente artigo apresentou alguns elementos desse novo objeto de reflexão a partir dos campos de origem. Conforme buscamos evidenciar, há um movimento marcado pelo encontro epistêmico entre as configurações constitutivas do campo da SC e uma parcela do campo da EF orientado por núcleos de saberes diferenciados dos demais, dando origem a um específico de saberes e práticas distintas, que denominamos EFSC. Esse processo é marcado por tensões entre os paradigmas biológico e social, se configurando como um importante desafio a ser enfrentado.
O uso dos referenciais das Ciências Humanas e Sociais ainda é limitado nos estudos, tanto no que concerne a abordagens macrossociológicas como aquelas que tratam da microfísica na qual se tecem as relações cotidianas de poder no setor saúde. No entanto, as iniciativas, as discussões e as intervenções que germinam na EFSC estão sendo profundamente reconfiguradas mediante a reconstrução de conceitos através do referencial crítico adotado no pensamento social em saúde, um movimento crescente com o maior trânsito de profissionais de EF no campo da SC, operando uma busca permanente de superação dialética nos saberes e nas práticas da EFSC. A incorporação da categoria no SUS é recente, se comparada a outras profissões, objeto que merece aprofundamento em outras análises, mas extrapola os objetivos deste artigo.