versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.2 Rio de Janeiro 2016 Epub 03-Nov-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XED01S216
Ao longo do último século, o papel da inovação foi reconhecido como fator propulsor do capitalismo. Como tal, políticas voltadas para o seu fomento e setores intensivos em conhecimento adquiriram protagonismo na sociedade contemporânea. Schumpeter 1, com declarada influência de Marx, Schmoller e Sombart, identificou o caráter crucial da inovação como fonte de competitividade, de desenvolvimento econômico e de transformação da sociedade. Estudos sistemáticos então deflagrados focaram essencialmente em sua base científica e na infraestrutura tecnológica, sinalizando paradoxos da inovação que emanam de uma fragilidade sistemática na análise teórica e nos indicadores sobre a qual é construída 2. No fim da década de 1980, essas reflexões estimularam o desenvolvimento da abordagem dos Sistemas Nacionais de Inovação (SNI), com trabalhos pioneiros de Freeman, Lundvall e Nelson.
A despeito de originalmente o SNI reconhecer o caráter central da aprendizagem e do conhecimento 3, Lundvall 2 ressalta que sua tradução em uma commodity potencial, subjugada à lógica da competitividade internacional, deve ser tributada à vertente neoliberal dominante no capitalismo contemporâneo. Tal fato implica a crescente subordinação do conhecimento às demandas do mercado, o que se verifica, por exemplo, nas tentativas sucessivas de estender os direitos de propriedade intelectual para além do que recomendaria a promoção do progresso socioeconômico.
A compreensão sobre a dinâmica de inovação na saúde ainda precisa avançar, seja em decorrência do entendimento restrito dos determinantes da interação produtor-usuário, das características históricas e geográficas e da inovação no setor de serviços, seja, particularmente, no que se refere à inobservância das questões relativas ao poder e a consequente subestimação dos conflitos. A incorporação de elementos políticos para compreender as contradições características deste campo é crítica.
Justamente em função de articular uma gama de tecnologias portadoras de futuro, a saúde exerce, ao mesmo tempo que recebe, influência do padrão de conhecimento gerado e disseminado. O desafio consiste exatamente em considerar e problematizar ambas as acepções invocadas pela expressão "saúde e inovação": aquela que responde às determinações de uma inserção internacional competitiva (mercado) e aquela na qual os riscos de adoecimento da população são sociais (estruturante de um processo civilizatório e democratizante). E, com base nisso, afirmar a saúde como um bem comum, um direito à vida nas sociedades modernas e um vetor de desenvolvimento sustentável.
A trama conformada pela interação e competição entre interesses públicos e privados aumenta a complexidade da formulação de políticas para a promoção de inovação nos sistemas de saúde. A escolha, a adesão e a disseminação de determinadas trajetórias tecnológicas condicionam a estrutura de redes de atenção. Em um país grande e desigual como o Brasil, com um sistema de saúde universal, importa saber se as tecnologias incorporadas estão à disposição de todos ou apenas de grupos restritos; ou seja, se reproduzem e acentuam as desigualdades ou se contribuem para superá-las.
Segundo Feenberg 4, o conhecimento deveria incorporar uma gama de interesses muito mais diversificada que a atual; consequentemente, poderia se constituir em instrumento de transformação de uma sociedade, reconciliando liberdades mais amplas com formas substantivas de bem-estar material a serviço do conjunto da população.
O tema é complexo e exige a compreensão das contradições das estruturas sociais modernas, marcadas pela consolidação da ordem global neoliberal em detrimento da soberania estatal nacional e pelas transformações decorrentes do enfraquecimento dos Estados de Bem-Estar social.
Nesse contexto, pontua-se a relevância de uma teoria que problematize a inovação na saúde de forma que ela atue para a emancipação, a sustentabilidade e a atribuição de voz ao indivíduo. Note-se que, ainda na atualidade, os recursos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) são acessíveis majoritariamente a segmentos populacionais privilegiados, ficando a agenda da saúde monopolizada por interesses de grandes conglomerados multinacionais e do capital financeiro. Tais condicionantes apontam a pertinência de incorporar aos esforços para o entendimento da inovação na saúde a análise de contingências e controvérsias políticas, que teria como ponto de partida os processos de diferenciação social 5.
Esses são os desafios subjacentes às relações estabelecidas entre saúde, desenvolvimento sustentável e inovação, e que conformam uma temática central para o campo da saúde coletiva. Sua relevância tem atraído autores de distintas áreas disciplinares, oxigenando o debate e trazendo contribuições importantes para a saúde, visto seu caráter multidisciplinar.
A pertinência do debate motivou a elaboração deste Suplemento que reúne 17 artigos cuja proposta é problematizar a dinâmica de desenvolvimento contemporâneo, que tem afetado sobremaneira a reorganização dos sistemas de saúde nas últimas décadas. Uma abordagem sistêmica da inovação em saúde deve se aproximar do ponto de vista dos atores sociais, acepção que se desdobra na necessidade de revisão do contrato social entre o sistema de saúde e os cidadãos, para a definição de políticas de inovação na saúde 6.