versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.2 Rio de Janeiro 2016 Epub 03-Nov-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00029615
As relações entre a saúde e o padrão de desenvolvimento socioeconômico de uma determinada nação são múltiplas e complexas. Em primeiro lugar, entendido de modo amplo, o desenvolvimento se define pela promoção do bem-estar social, que inclui as boas condições de saúde 1. Em segundo, é bem sabido que o crescimento econômico leva a melhorias na saúde 2, assim como o bom estado de saúde da população contribui para o crescimento econômico 3. Por fim, além de estado vital, a saúde representa um importante setor econômico: dados da Organização Mundial da Saúde 4 indicam que os recursos mobilizados pelo setor da saúde correspondem a 9,7% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, um montante estimado de US$ 5,3 trilhões, em 2007.
Essas relações, nas suas várias dimensões, têm o complexo econômico da saúde, conformado pelos serviços de saúde e pelas indústrias que produzem os insumos 5, como o espaço privilegiado de sua expressão.
Se o cuidado com a saúde baseia-se, essencialmente, na interação humana, envolvendo, de um lado, pessoas portadoras de necessidades de saúde e, de outro, pessoas detentoras de competências profissionais específicas, a sua prática requer invariavelmente o recurso a múltiplas tecnologias de apoio preventivo, diagnóstico e terapêutico. Nesse sentido, os serviços de saúde e as indústrias produtoras de insumos de saúde precisam estar bem articulados.
A importância das tecnologias aumentou exponencialmente desde meados do século XX, de modo a tornar inconcebível hoje a prestação de serviços de qualidade sem o recurso às tecnologias, muitas delas de caráter inovador. E as tecnologias médico-científicas têm dado enormes contribuições à saúde das pessoas: basta mencionar os avanços decorrentes da invenção ou da descoberta de antissépticos, anestésicos, antibióticos, vacinas, etc. Simultaneamente, as tecnologias de saúde têm contribuído para a geração de riqueza e para o crescimento econômico geral.
Não se pode esquecer, todavia, que as tecnologias, com alguma frequência, são iatrogênicas ou privilegiam a intervenção tardia e sintomática em detrimento da prevenção ou do tratamento etiológico ou ainda contribuem para reduzir a autonomia da pessoa que as utiliza. Por exemplo, sabe-se de longa data que os anti-inflamatórios não-esteroides são causa importante de hemorragia digestiva alta, que o uso de antibióticos pode levar à proliferação de superbactérias e que os medicamentos para as doenças degenerativas, como o diabetes, a hipertensão arterial e as neoplasias, podem tornar as pessoas dependentes dos serviços de saúde.
Do ponto de vista econômico, as tecnologias, incluindo as mais inovadoras, têm gerado uma elevação acentuada dos custos da atenção à saúde, tanto para as famílias, quanto para os sistemas de serviços. No Brasil, o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar 6 calcula que, em 2012, o índice de variação do custo médico e hospitalar foi de 15,4%, três vezes a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), sendo a alta de materiais usados em internações a principal responsável por esse aumento.
O campo da Saúde Coletiva tem produzido reflexões e experimentações sobre o tema do cuidado 7 e dos modelos de atenção à saúde 8, o que não tem sido suficiente para que, no âmbito dos serviços, sejam desenvolvidas ações mais efetivas, eficientes ou humanizadas. Ao contrário, observa-se o predomínio de práticas assistenciais fragmentadas, que enfatizam os tratamentos sintomáticos, desvalorizam as abordagens preventivas, estimulam o consumismo de produtos e serviços diagnósticos e terapêuticos e promovem, ao invés da humanização, uma participação passiva e subordinada dos usuários.
Os sistemas de saúde enfrentam, portanto, um enorme desafio: como superar uma atenção, muitas vezes, ineficaz e cara, fazendo convergir os objetivos dos dois polos do complexo econômico da saúde - os serviços e as indústrias - no sentido da oferta de ações e tecnologias que sejam mais efetivas, mais seguras, mais humanizadas e com custos suportáveis para a sociedade?
Responder a essa questão exige, de início, que se explique o predomínio desse atual modelo de atenção que pode ser, sumariamente, caracterizado como biologicista e mercantilista.
Não é difícil atribuir esse predomínio, ao menos em parte, aos interesses econômicos dos conglomerados industriais e financeiros das áreas de medicamentos, vacinas, equipamentos e demais materiais médico-hospitalares. Trata-se, claramente, de agentes poderosos não apenas economicamente, mas também politicamente, haja vista, por exemplo, o investimento que fazem no financiamento de campanhas eleitorais em diversos países, inclusive no Brasil 9.
Contudo, a questão é mais complexa: não se trata apenas de controlar os excessos da indústria farmacêutica ou nacionalizar a produção de insumos. No fundo, o modelo de atenção à saúde reflete o padrão tecnológico da sociedade contemporânea. Não só na assistência à saúde, mas em todos os aspectos da vida social, um determinado padrão sociotécnico assumiu a posição dominante. Basta pensar na opção preferencial pelo automóvel como meio de transporte 10 ou no uso intensivo de agrotóxicos 11.
Para compreender como se chegou a essa situação e como superá-la, vale a pena recorrer às reflexões do filósofo americano Andrew Feenberg 12, que revisita duas grandes abordagens teóricas sobre as tecnologias - a instrumental e a substantiva - e propõe uma terceira.
A teoria instrumental concebe as tecnologias como neutras, do ponto de vista de valores éticos e interesses sociais, e como controladas pelos seres humanos, quanto ao seu desenvolvimento e ao seu uso. Esta concepção é hegemônica no senso comum. É expressa quando se diz, por exemplo, que armas não matam pessoas, pessoas é que matam pessoas (o que é uma meia-verdade, pois a fabricação de armas não teria ocorrido se não houvesse o propósito de matar). Assim, a criação e a evolução das tecnologias decorreriam apenas de opções técnicas, feitas pelos inventores, relativas aos seus mecanismos próprios de funcionamento.
A neutralidade da tecnologia tem, ao menos, quatro aspectos 13: (a) a tecnologia, como pura instrumentalidade, é indiferente aos fins a que seu uso se destina; (b) é indiferente também à política, podendo ser utilizada em qualquer contexto social; (c) a neutralidade decorre do caráter "racional" da tecnologia, ou seja, as proposições causais - científicas - em que se baseia mantêm seu status cognitivo em qualquer situação; e (d) a tecnologia é neutra, pois obedece sempre à mesma norma de eficiência, independentemente do contexto em que situa.
Interpretando a posição de Feenberg, Neder 14 caracteriza a teoria instrumental como a visão moderna otimista da tecnologia baseada no padrão da fé liberal: trajetória única de progresso e de conhecimento ascendente.
A teoria substantiva, ao contrário, afirma que as tecnologias encarnam valores éticos e são moldadas por interesses sociais, mas não são controladas pelos seres humanos, no sentido de que seu uso e seu desenvolvimento decorrem exclusivamente da busca da melhoria da eficiência, como lógica intrínseca à técnica. Embora estranha ao senso comum, essa concepção tem defensores do porte de Martin Heidegger, que destaca o fato de as relações sociais estarem estruturadas pela tecnologia, notadamente na sociedade moderna, a ponto de produzir uma desumanização irreversível da sociedade.
Assim como Heidegger, Jacques Ellul considera que a tecnologia constitui um novo sistema cultural que estrutura todo o mundo social como um objeto de controle 15. A tecnologia teria se tornado a característica definidora de todas as sociedades modernas, independentemente das ideologias políticas. A técnica, diz Ellul, tornou-se autônoma 13.
A teoria substantiva evidencia que, ao optar pelo uso da tecnologia, as sociedades estão assumindo compromissos, sem a devida reflexão, sobre o tipo de vida que desejam levar. Um exemplo 12 disso seria o impacto da proliferação dos restaurantes de fast food sobre as relações familiares que tinham no almoço ou no jantar que reunia todos os membros da família um momento importante da criação e da manutenção dos laços.
Apesar de tão distintas, as teorias instrumental e substantiva têm em comum uma atitude que Feenberg 13 chama de take it or leave it em relação à tecnologia. De um lado, como mera instrumentalidade, indiferente a valores, a tecnologia não é uma questão de debate político, apenas a eficiência de sua aplicação pode ser discutida. Nesse caso, deve ser abraçada e melhorada. De outro, como veículo de uma cultura de dominação, a tecnologia avança para consolidar distopias sociais. Nesse segundo caso, deve ser rejeitada em nome da preservação do humanismo. Em nenhum dos casos, contudo, a tecnologia pode ser transformada.
Feenberg 12 identifica-se, por um lado, com a teoria substantiva ao considerar que, de fato, as tecnologias não são neutras quanto a valores e interesses, mas são permeadas pelas relações sociais e expressam opções éticas e propósitos sociais. Por outro lado, compartilha com a teoria instrumental a ideia de que o desenvolvimento tecnológico é guiado pela ação humana consciente, não tendo nem a busca da eficiência nem qualquer outra lógica inerente ao seu funcionamento que escape ao controle dos seres humanos.
O filósofo americano adota, então, uma terceira posição que se propõe a explicar como a tecnologia atualmente dominante é projetada para atender aos interesses capitalistas, ainda que tenha valor de uso, e como pode ser projetada diferentemente para se adaptar às necessidades de uma sociedade livre.
Rejeitando a neutralidade - defendida pela teoria instrumental - e o fatalismo - da teoria substantiva -, o autor considera que a forma dominante da racionalidade tecnológica não é nem uma ideologia, como expressão discursiva do interesse de classe, nem o reflexo neutro de leis naturais. Em vez disso, é uma racionalidade que toma forma na interseção entre a ideologia e a técnica, articuladas para controlar pessoas e recursos.
Como salientam Dias & Dagnino 16, a teoria crítica de Feenberg reconhece as consequências desumanizadoras do desenvolvimento tecnológico evidenciadas pela teoria substantiva, mas acredita na possibilidade de outro tipo de desenvolvimento tecnológico. Para ela, o problema central não está ligado ao avanço tecnológico em si, mas ao seu controle pelos valores e interesses dos grupos sociais dominantes. Dessa maneira, a democratização do processo de decisão sobre a criação, o desenvolvimento e a produção da tecnologia está na base da constituição de um modelo alternativo de sociedade.
Feenberg se baseia em Marcuse 17, que denuncia o caráter totalitário, tanto do capitalismo ocidental, quanto do comunismo soviético, decorrente, fundamentalmente, do avanço científico e tecnológico e em Foucault 18, que analisa as relações entre saber e poder, mostrando que, nas sociedades modernas, novos saberes e novas tecnologias ampliam o poder disciplinar a que todos estão submetidos, para afirmar que a racionalidade é parte integrante de um sistema de dominação, ainda que tenha sucesso cognitivo. Argumenta que a forma de racionalidade prevalente no capitalismo cumpre uma dupla função: favorece a hegemonia das crenças e práticas das classes dominantes ao mesmo tempo em que mantém certa capacidade de produção de conhecimento sobre a realidade. Os requisitos sociais e técnicos do capitalismo - o desenvolvimento das forças produtivas e a manutenção das atuais relações sociais de produção - estão condensados em uma racionalidade que leva à construção de sistemas técnicos conformes às exigências do sistema de dominação. A esse fenômeno, Feenberg dá o nome de código social da tecnologia ou código técnico. O código técnico sedimenta valores e interesses em regras e procedimentos, dispositivos e artefatos.
As tecnologias individuais são construídas com elementos técnicos combinados de uma maneira determinada para atender a certos propósitos sociais, os quais, portanto, encontram-se incorporados em dispositivos e artefatos. Ou, como diria Latour 19, cada tecnologia reúne um "sociograma" de alianças de interesses sociais em torno de um "tecnograma" específico, ou seja, de uma configuração específica de elementos técnicos. Nesse sentido, o código técnico do capitalismo pode ser definido como a regra geral de correlação entre o "sociograma" e o "tecnograma".
De acordo com Feenberg 13, novos códigos técnicos podem ser desenvolvidos, os quais, uma vez disseminados, podem vir a constituir a base de uma nova civilização industrial, superando os valores e interesses econômicos capitalistas e promovendo os da preservação ambiental, da igualdade social e do desenvolvimento humano. Vale acrescentar que os novos códigos técnicos podem se desenvolver a partir da tecnologia existente, aproveitando as suas ambiguidades e realizando as suas potencialidades reprimidas pelos interesses da exploração e alienação do trabalho.
Um exemplo de aproveitamento das ambiguidades e potencialidades apresentado por Feenberg 12), (13 refere-se ao computador e à Internet. Ele lembra que o computador - tanto o hardware quanto o software ‒ foi criado como um dispositivo de cálculo e armazenamento de informações, e não de comunicação. A função de comunicar, não prevista por seus inventores primeiros, estava, no entanto, potencialmente contida nos seus códigos técnicos que, uma vez rearranjados, tornaram o computador, com a Internet, um meio de comunicação. É importante acrescentar que a recodificação técnica teve início pela ação de usuários "leigos" e não de especialistas em informática.
Outro exemplo, relacionado a computadores e Internet, é a educação online. Feenberg avalia que, nesse caso, o design tecnológico está ainda em disputa entre duas concepções: (a) a automação da educação, que significa uma tentativa de tornar mais baratas as práticas educacionais para os líderes empresariais, com os conteúdos elaborados por um professor de notório saber sendo replicados por vários tutores, menos preparados e mal pagos, para um conjunto maior de estudantes, meros receptores dos conteúdos; e (b) a informatização da educação, que significa a tentativa de preservar a interação pessoal entre professor e estudante como a base fundamental do processo ensino-aprendizagem, ainda que mediada por equipamentos. Essas duas concepções estão influenciando o desenvolvimento dos códigos técnicos constitutivos da rede de computadores e, ainda que uma delas torne-se hegemônica, as ambiguidades continuarão presentes.
Enfim, como destaca Dagnino 20, a teoria crítica da tecnologia sugere que não se trata de ser a favor ou contra a tecnologia - nos termos das teorias instrumental e substantiva -, mas sim de debater e decidir democraticamente que valores e propósitos devem guiar o desenvolvimento da tecnologia e como os elementos técnicos podem ser combinados de modo a promover esses valores e a alcançar esses propósitos.
Ao se refletir sobre as relações entre saúde, desenvolvimento e inovação, a teoria crítica faz vir à mente as seguintes questões: que valores e interesses têm orientado o desenvolvimento das tecnologias de saúde? E que valores e interesses estão incorporados às atuais tecnologias?
Os resultados dos estudos liderados por Pascale Lehoux, pesquisadora canadense da saúde pública, ajudam a responder a essas questões 21), (22), (23), (24.
Inicialmente, Lehoux 21 ressalta que a questão da tecnologia na área da saúde é formulada na confluência de duas dinâmicas opostas: o fluxo constante de inovações e as limitações orçamentárias dos sistemas de serviços de saúde. Dessa confluência, nasceu e floresceu o campo da avaliação de tecnologias de saúde (ATS), cuja racionalidade se baseia na distinção entre as "boas" e as "más" inovações e na seleção das primeiras que são, fundamentalmente, aquelas que apresentam uma relação custo-efetividade mais favorável do que as tecnologias previamente existentes.
Embora as iniciativas, como a ATS, que pretendem fortalecer a racionalidade técnico-econômica no processo de decisão acerca da incorporação de tecnologias ao sistema de saúde sejam úteis e válidas, Lehoux considera que mais importante é examinar, antes, o processo de inovação e produção de tecnologias. Afirma que as opções feitas no momento inicial do desenvolvimento de inovações são determinantes do custo da tecnologia, dos tipos de uso e das habilidades requeridas para manejá-la.
A pesquisadora se interessa, então, em mapear quem está envolvido nos processos de inovação na área da saúde. Analisando o caso canadense 21), (22), (23, identifica três big players - a indústria, as universidades e os governos - entre os quais existem intrincados relacionamentos e fluxos de recursos. A indústria engloba tanto a grande indústria farmacêutica, quanto empresas de médio ou pequeno porte que produzem equipamentos ou outros insumos para os serviços de saúde. As universidades são representadas, sobretudo, pelos pesquisadores médicos que atuam nos mais prestigiosos hospitais universitários. E os governos se referem tanto aos dirigentes dos órgãos da saúde quanto aos dos órgãos de fomento à pesquisa e à inovação, nas esferas federal e provincial. Além desses três atores mais poderosos, participam dos processos de inovação - de forma, portanto, menos significativa - os profissionais de saúde em geral, as associações de portadores de patologias e outras organizações da sociedade civil e os profissionais da mídia.
Esses estudos empíricos revelam um padrão relativamente constante de tomada de decisão sobre o investimento em tecnologias de saúde. Em geral, os big players buscam identificar necessidades e possibilidades de novas tecnologias ou de melhorias nas tecnologias existentes, imaginando o que poderia interessar aos usuários de tecnologias (sobretudo os médicos, mas também os pacientes) e estimando os preços que seriam capazes de pagar para ter acesso a uma nova tecnologia. São, assim, os modelos de negócio que definem os projetos de desenvolvimento de tecnologias de saúde merecedores de investimento, orientando os esforços de inovação de modo a priorizar as expectativas dos investidores 23. Curiosamente, mesmo a influência do conhecimento médico-científico 24 é secundária em relação à dos interesses comerciais e financeiros no delineamento das tecnologias. De modo similar, o envolvimento de usuários é relativamente pouco importante 22.
Em suma, os critérios centrais do processo de decisão sobre o investimento no desenvolvimento de novas tecnologias são dois: desirability e affordability, nos termos sugeridos pela professora canadense. São critérios que obedecem, claramente, à lógica de mercado.
A indústria da saúde, em todo o mundo, tem uma estrutura oligopolizada, com poucas e grandes empresas controlando o mercado, no qual a concorrência se baseia, largamente, na geração de inovações. Dessa forma, a pressão dos interesses econômicos pela produção de novas tecnologias é imensa e é o que explica as significativas inversões em pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
É fácil perceber, portanto, que a lógica econômica capitalista tem sido um forte determinante dos rumos do desenvolvimento tecnológico também na área da saúde. Pode-se, então, afirmar que são, fundamentalmente, os interesses e os valores da grande indústria da saúde que estão incorporados aos insumos médico-hospitalares e que estão orientando o desenvolvimento de novas tecnologias.
O predomínio dessa lógica mercantil é um problema para todos (incluindo os acionistas das empresas, já que também precisam de cuidados de saúde), porque o processo de inovação sob sua égide submete todos os outros valores ao da competitividade, o que tem acentuado os efeitos negativos das tecnologias: iatrogenia, dependência dos usuários, elevação dos custos dos sistemas de saúde e desumanização da prática médica. Por que continua, então, predominante?
A resposta óbvia remete ao poderio econômico da indústria da saúde, capaz de convencer o público geral, através de suas estratégias de marketing, mas também os profissionais de saúde, a mídia, os parlamentares, os governantes, etc., por meio de estratégias tão diversas, quanto eficazes.
A resposta menos óbvia e mais relevante, todavia, é que há efetividade real e simbólica nas atuais tecnologias. Com efeito, como negar que os anti-inflamatórios que produzem hemorragia digestiva controlam, de fato, as inflamações? Ou como negar que as ultrassonografias obstétricas representam também fotografias do bebê vistas como expressão de carinho e afeto?
Observando bem, pode-se ver que é a alusão à efetividade de algumas tecnologias que tornam eficazes as estratégias de convencimento usadas pela indústria da saúde. É preciso lembrar, contudo, que é comum ao marketing a extensão (ilegítima) das qualidades de alguns casos à totalidade dos casos - de algumas tecnologias a todas as tecnologias.
O que a teoria crítica da tecnologia permite entender é que essa efetividade, concreta ou simbólica, pode estar limitada e tolhida pelos interesses econômicos. Há potencialidades nas tecnologias existentes que não se transformam em realidade, pois são reprimidas para que prevaleçam os interesses mercantis, legitimados pela busca de eficiência definida de forma muito restrita. Assim como os computadores tinham um viés técnico contrário a seu uso como ferramenta de comunicação entre pessoas, mas tinham potencialmente condições de ser redesenhados para tanto 13, as tecnologias de saúde possuem um viés, materializado em seus códigos técnicos, favorável aos interesses mercantis, mas que pode ser redefinido para atender aos propósitos da saúde pública.
A teoria crítica da tecnologia e os achados empíricos das pesquisas do grupo canadense levam a questionar em que medida a ênfase na produção de tecnologias de saúde que privilegiam os tratamentos sintomáticos, ao invés dos etiológicos, decorre apenas do atual estado da arte do conhecimento científico ou é principalmente determinada pela lógica do lucro. Ou em que medida a falta de investimento em tecnologias de promoção da saúde é consequência, não de obstáculos epistemológicos, mas sim de dificuldades de se apropriar privadamente do resultado de investimentos feitos em bens de natureza pública, como muitos daqueles relacionados aos determinantes sociais da saúde.
Assumindo que as atuais tecnologias de saúde e os atuais processos de inovação são limitados pelos interesses capitalistas, os desafios que se colocam são como livrar o desenvolvimento tecnológico das amarras dos propósitos comerciais e como aproveitar as potencialidades das tecnologias para torná-las mais seguras, mais humanas e de melhor relação custo-efetividade.
Adotando a perspectiva da saúde pública, Lehoux et al. 25 sugerem que três atributos deveriam ser buscados pelas novas tecnologias da saúde: relevância, usability e sustentabilidade. A relevância se refere aos problemas de saúde que a tecnologia se propõe resolver: se são, de fato, aqueles definidos como prioritários pelas políticas de saúde. A usability se atém à facilidade de uso, ou seja, à menor exigência de habilidades complexas ou de recursos a especialistas para que a tecnologia possa ser usada. Finalmente, a sustentabilidade trata do impacto da incorporação da tecnologia sobre a manutenção do sistema de saúde ou, dito de outra forma, trata do desenvolvimento de tecnologias cujos custos não inviabilizem o financiamento a longo prazo do sistema de serviços de saúde.
Para favorecer a busca desses atributos, os autores canadenses entendem que é fundamental ampliar a participação social nos processos de inovação 22. Ressalvam, contudo, que o envolvimento público exige a superação da dicotomia entre o conhecimento científico "objetivo" e o senso comum "normativo". Na realidade, ambos os tipos de conhecimento estão intrinsecamente relacionados e, por isso, as iniciativas de participação social precisam enfatizar processos deliberativos que maximizem o aprendizado mútuo entre os vários grupos de cientistas e não-cientistas.
Enfim, a primeira e mais relevante estratégia é ampliar a comunidade de designers21, ou seja, o rol de pessoas e grupos implicados nas decisões sobre as linhas de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico merecedoras de investimentos.
No caso das tecnologias de saúde, além de bem conceituados médicos, farmacêuticos, enfermeiros, engenheiros, economistas, analistas de mercados e dirigentes e técnicos de órgãos de fomento à pesquisa e à inovação, é necessário envolver entre os participantes das decisões os usuários, os consumidores e os cidadãos, através de representações da sociedade, inclusive aquelas mais distantes dos temas da saúde nas suas preocupações quotidianas.
Vale ressaltar que um processo de tomada de decisão participativo é coerente com o fato de que as tecnologias, em regra, são frutos de pesquisas financiadas publicamente: a destinação de recursos que vêm de toda a sociedade deve e pode ser definida em instâncias que contemplem a participação não apenas de especialistas, mas também dos contribuintes e dos cidadãos.
Uma comunidade de tomadores de decisões, assim ampliada, pode valorizar como ponto de partida o perfil epidemiológico da população como um todo (e não apenas dos que podem pagar caro) e orientar os investimentos para a produção de conhecimentos e o desenvolvimento de tecnologias voltados para os problemas de saúde mais prevalentes ou mais incapacitantes ou mais letais.
Pode também considerar a saúde na sua dimensão positiva, e não apenas a doença como objeto das tecnologias, ou seja, pode pensar em desenvolver tecnologias de promoção e de proteção da saúde, além daquelas voltadas para a recuperação e a reabilitação da saúde.
A segunda estratégia para promover um desenvolvimento tecnológico mais adequado às necessidades de saúde e menos limitado pelos interesses econômicos é formada por uma série de medidas para restringir o poder da grande indústria da saúde. São sugestões da professora Marcia Angell 26: (a) exigir que as inovações acrescentem de fato algo de útil, acabando com as imitações; (b) não permitir que os laboratórios controlem os ensaios clínicos, exigindo que sejam conduzidos por pesquisadores independentes; (c) reduzir o tempo de patentes, começando a contar a partir da entrada no mercado; (d) impedir a participação da indústria da saúde na educação dos profissionais prescritores; (e) proibir a propaganda direta ao consumidor; e (f) controlar os preços das tecnologias, abrindo a caixa-preta da contabilidade das empresas, o que é viável dado que o governo é o maior comprador.
Se essa segunda estratégia pode se viabilizar, aparentemente, sem mudanças estruturais na sociedade, a primeira requer uma significativa transformação social. Ou, mais especificamente, para que a ampliação da comunidade de designers ocorra e favoreça o desenvolvimento tecnológico de caráter humanista, três mudanças nas fundações da ordem social são requeridas, como assinala Feenberg 13: a socialização dos meios de produção, através da extensão da ação do poder público de modo a fortalecer o planejamento frente ao mercado; o aprofundamento da democracia com a redução significativa das desigualdades sociais; e a adoção de um modelo de inovação voltado para superar a separação entre trabalho manual e intelectual, por meio da expansão e da intensificação da educação permanente.
Tradicionalmente, socialização significa nacionalização ou estatização dos recursos produtivos privados. Nesse caso, trata-se de uma mudança político-administrativa que, ainda que de grande vulto, é incapaz por si só de transformar a sociedade. Como vista por Feenberg, a socialização dos meios de produção requer a elaboração de novos códigos técnicos. Assim como a abolição do trabalho infantil permitiu a "invenção" da infância moderna 12, novos códigos técnico-econômicos poderão propiciar a emergência da sociedade socialista. Mais do que o controle estatal da indústria, serão o conhecimento e a habilidade dos trabalhadores e a participação democrática que, propiciando a definição de novos códigos técnicos, permitirão a emergência do socialismo. Saliente-se que, nessa perspectiva, o socialismo não surge de uma vez, com a tomada do poder por um partido representativo do proletariado, mas emerge progressivamente da transformação do código social da tecnologia, proporcionada pela extensão da democracia até o âmago do processo de desenvolvimento das forças produtivas.
A transição para esse tipo mais elevado de sociedade industrial envolve uma mudança radical na cultura econômica: a riqueza na sociedade capitalista toma a forma de mercadorias, enquanto, numa sociedade socialista, a verdadeira riqueza é o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, mediado por bens materiais, mas não idêntico a eles. Uma sociedade socialista valoriza a ampliação da experiência humana e da individualidade com um fim em si mesmo 13. Vale notar que essa formulação de Feenberg aproxima-se, inequivocamente, do conceito ampliado de desenvolvimento como promoção do bem-estar, incluídas as boas condições de saúde 1.
O aprofundamento da democracia, com a redução significativa das desigualdades sociais, passa, fundamentalmente, na visão de Feenberg, pela democratização das instituições tecnologicamente mediadas. O poder da gerência deve ser compartilhado com os trabalhadores, que não precisam ser peritos, mas devem ter desenvolvidas suas capacidades de compreensão de todo o processo de trabalho em que estão envolvidos. Dessa forma, a educação é essencial para a democratização. A socialização dos meios de produção deve incluir a socialização do capital cultural, estendendo-se para além das máquinas, dos prédios e das terras e abrangendo as habilidades e os conhecimentos requeridos para a gerência da indústria. As práticas de autogestão, em consequência, poderão se consolidar e difundir, inicialmente nos locais de trabalho, mas depois em outras esferas de atividades como o planejamento urbano e o cuidado à saúde 13. Na sociedade socialista, a educação deixaria de ser um investimento necessário para preparar o trabalhador a desempenhar certas atividades, mas se tornaria uma força motriz da mudança social e tecnológica.
Eventualmente, o avanço educacional levaria a um nível mais elevado de produtividade laboral, com a introdução de novas tecnologias e novos métodos de trabalho adaptados a uma força de trabalho altamente educada. Desse modo, a educação é também a força motriz da inovação orientada pelos valores socialistas. Com efeito, trabalhadores bem educados, atuando em instituições geridas democraticamente, estarão em melhores condições de contribuir para o desenvolvimento de inovações, baseadas em códigos técnicos não mais voltados à maximização do lucro e do controle da força de trabalho, mas destinados à promoção do bem-estar e à preservação do meio ambiente. Trabalhadores educados e com poder de decisão sobre a organização do processo de trabalho são capazes de superar a separação entre trabalho manual e intelectual. Feenberg 12 adianta-se à objeção de que o Estado suprime a liberdade individual necessária ao processo de inovação, lembrando que é um mito a ideia do gênio inventor isolado e que a participação qualificada de todos os trabalhadores na condução das organizações mediada tecnologicamente não restringe, mas promove a liberdade de cada um.
Essas mudanças estruturais, se vierem a acontecer, serão consequência, por um lado, da acumulação de experiências de definição de novos códigos técnicos e, por outro, da mobilização e da participação cidadã. O mal-estar que parece tomar conta da civilização contemporânea, provocado pelo aumento da violência, das desigualdades e da pobreza de muitos em prol da riqueza material de cada vez menos pessoas, mesmo nos países mais ricos do mundo, pode ser o alimento dessa mobilização e o prelúdio de grandes transformações.
Uma nova civilização industrial é o que propõe Feenberg. Na área da saúde, isso significa a reconfiguração do complexo econômico da saúde, orientando-o para a produção e o consumo de tecnologias e serviços inovadores, mais efetivos, seguros e baratos, capazes de, ao mesmo tempo, melhorar as condições de saúde dos indivíduos e das populações e contribuir para o desenvolvimento inclusivo e sustentável. No curto ou médio prazo, a reorientação do complexo econômico pode ser favorecida pela adoção das medidas sugeridas por Angell 26, mas, provavelmente, a sua reconfiguração radical dependerá das mudanças estruturais identificadas por Feenberg.
Por fim, vale lembrar que o propósito de transformação social não é estranho ao projeto da Reforma Sanitária Brasileira que conseguiu inscrever na Constituição brasileira o direito de todos à saúde, identificando, para a sua garantia, a necessidade de implantação de políticas sociais e econômicas destinadas a assegurar condições de vida promotoras de bem-estar.