versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.24 no.1 Rio de Janeiro 2020 Epub 10-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0177
Dados alarmantes projetados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) prevêem uma curva ascendente às doenças relacionadas à saúde mental, estimando-se que a depressão no ano 2020 será a segunda maior causa de doenças mentais e incapacitantes na população mundial, passando para primeira causa no ano de 2030. Tal estimativa desencadeou, pela OMS, em 2017, a campanha mundial "Depressão: vamos conversar", com o objetivo geral de que mais pessoas, em todo o mundo, busquem ajuda e conversem a respeito.1
No Brasil, a prevalência de sintomas depressivos e suicídio é elevada também entre profissionais de saúde.2 Pesquisas neste âmbito têm sido realizadas em diferentes contextos de atenção com o objetivo de detectar e compreender o sofrimento psíquico a que está exposto o trabalhador da área,3-5 incluindo a ansiedade, o estresse ocupacional, depressão e a Síndrome de Burnout, que é caracterizada por sintomas de exaustão emocional, insatisfação profissional e despersonalização ou insensibilidade ao próximo.6
Revisão integrativa aponta que entre profissionais de enfermagem há inúmeros fatores de risco para a depressão e estes estão relacionados ao próprio ambiente de trabalho, às relações humanas e características pessoais, além do risco de suicídio relacionado à presença de transtorno mental.2 Os estudos são congruentes em ressaltar a necessidade de intervenções nesta área, tanto para garantir a qualidade do atendimento prestado ao cliente quanto a própria saúde e bem estar, adesão ao ambiente de trabalho e qualidade de vida do profissional.2-7
Em todo o mundo há um interesse crescente no uso das artes para o atendimento de clientes e profissionais que atuam em cenários de cuidado à saúde, em decorrência de seu efeito promotor de saúde física e mental.8 O engajamento dos profissionais de saúde em atividades artísticas, como programas de arteterapia, surge como uma possibilidade para atender ao desafio global em saúde proposto pela OMS: o cuidado à saúde mental da população.1,9
A arteterapia pode ser aplicada a indivíduos ou grupos, em variados locais e contextos, e utiliza a expressão artística como processo terapêutico, sendo capaz de promover a melhoria da qualidade de vida, o desenvolvimento pessoal e contribuir com a saúde mental,10 que é definida como um estado de bem-estar em que cada indivíduo percebe seu próprio potencial e consegue lidar com as tensões normais da vida, trabalhar produtivamente e contribuir para a comunidade.11
Reconhecida como ocupação profissional, a abordagem arteterapêutica foi recentemente incluída à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), portaria nº 849/2017, tornando-se uma prática proporcionada pelo Sistema Único de Saúde (SUS)12 como possibilidade de atenção e assistência tanto à população quanto ao profissional de saúde, o que é coerente com os pressupostos da Política Nacional de Humanização (PNH).13
Neste sentido, acreditamos que programas que incluam a arteterapia para o atendimento de profissionais da área da saúde possam contribuir positivamente para o panorama atual das doenças relacionadas à saúde mental e ter um impacto positivo sobre a saúde e bem-estar desses trabalhadores. Diante disso, este estudo foi proposto para responder ao questionamento: Como os profissionais de saúde, atuantes em cenários de atenção à saúde primária, interagem com a oportunidade de vivenciar um processo de arteterapia? E teve como objetivo possibilitar ao profissional de saúde, em cenário de cuidado ambulatorial, a experiência de um processo grupal de arteterapia e compreender o significado atribuído por ele a essa vivência.
Estudo de abordagem qualitativa, cujo referencial teórico foi o Interacionismo Simbólico, perspectiva que enfoca a natureza da interação humana, a dinâmica social e os significados que o ser humano atribui aos objetos e assim realizar seus planos.14 O referencial metodológico foi a Análise Qualitativa de Conteúdo Convencional, cuja finalidade é descrever um fenômeno, por meio de análise indutiva realizada diretamente a partir dos dados obtidos dos participantes.15
A pesquisa foi realizada em instituição filantrópica localizada na região sul da cidade de São Paulo, de caráter ambulatorial, conveniada ao Sistema Único de Saúde, que atende prioritariamente a população materna e infantil proveniente de famílias socioeconomicamente pouco favorecidas e de alta vulnerabilidade social. Ressalta-se que antes da realização do estudo não havia relação de proximidade da pesquisadora com a instituição ou com os participantes.
O recrutamento dos profissionais ocorreu por conveniência, após a apresentação do projeto de pesquisa e aprovação do mesmo pela diretoria da instituição, sendo então apresentado a um grupo de funcionários que se mostraram dispostos a conhecê-lo, esclarecendo-se os objetivos do estudo e tratar-se de participação voluntária em um processo de arteterapia a ser realizado quinzenalmente, durante o expediente. Nos dias subsequentes, os interessados se inscreveram diretamente com o responsável pelo ambulatório, sendo organizados em dois grupos, de modo a garantir que os atuantes no mesmo setor pudessem se revezar e não gerar impacto na rotina do serviço, bem como promovesse a tranquilidade dos participantes.
Participaram dos dois grupos de arteterapia doze profissionais, sendo que destes, oito foram entrevistados por atenderem aos seguintes critérios de inclusão: ser profissional atuante no ambulatório, estar disponível para participar de pelo menos quatro das seis oficinas realizadas e de entrevista individual após a finalização do mesmo. Os participantes tinham entre 23 e 63 anos, sendo: uma assistente social, duas enfermeiras, uma técnica em enfermagem, duas recepcionistas, uma secretária executiva e um assistente contábil.
O desenvolvimento da pesquisa ocorreu em duas etapas. A primeira envolveu o processo arteterapêutico e a segunda, as entrevistas qualitativas com os participantes, que foram realizadas cerca de seis meses após a realização do processo arteterapêutico. Ambas ocorreram no período de julho de 2013 a junho de 2014.
O processo arteterapêutico teve como sustentação teórica e metodológica o preconizado por Bernardo, cujas pesquisas são referência no campo da Arteterapia.10,16,17 Assim, cada oficina constituiu-se de quatro momentos: 1. Aquecimento, integração grupal e apresentação do tema a ser enfocado; 2. Sensibilização por meio de uma história selecionada de acordo com este tema e realização de atividade expressiva correspondente; 3. Apresentação do trabalho produzido e comentários sobre a elaboração da experiência. 4. Fechamento e avaliação do encontro.10
No total, com cada grupo foram realizadas seis oficinas, quinzenalmente, com 1 hora e 30 minutos de duração, na própria instituição e durante a jornada de trabalho. As oficinas foram conduzidas por uma das pesquisadoras, psicóloga e especialista em Arteterapia. A seguir, será apresentada, resumidamente, a proposta de cada oficina arteterapêutica.
1º Encontro: Início do processo grupal. Objetivos: Apresentação dos integrantes e da proposta, com a criação do espaço interacional preservado. A história narrada como sensibilização, "Os dois que sonharam", de Jorge Luís Borges,18 fala de um habitante do Cairo que um dia sonhou que encontraria um tesouro numa distante cidade da Pérsia. Empreendeu a viagem e ao chegar foi levado à autoridade local. O cádi riu do viajante quando soube do motivo de sua viagem, contando-lhe que, por três vezes, sonhara que encontrava um tesouro no jardim de uma casa no Cairo, próximo a uma fonte, mas nunca fora tolo o suficiente para fazer tal viagem. O viajante regressou feliz à cidade de origem. Lá chegando, escavou e encontrou o tesouro no próprio jardim: reconhecera a sua própria casa no sonho do cádi.
Atividade Expressiva realizada: Confecção de caixa decorada com imagens de revistas.10 Cada participante foi orientado a, inspirado pela história ouvida, recortar figuras de revistas que representassem o "seu tesouro", algo de que gostasse e que atribuísse valor, com o intuito de decorar a caixa de papelão para acondicionar os trabalhos produzidos no decorrer do processo. Este é um dos recursos expressivos adequados ao início do processo grupal, porque facilita a criação de um espaço acolhedor e promove o contato com a própria subjetividade dos participantes, permitindo com que se apresentem e comecem a criar uma relação de confiança.10
2º Encontro: Tema: Criando vínculos. Objetivo: Vivenciar e valorizar o trabalho em equipe. História: "Os sete novelos", de A. S. Medearis,19 é um conto africano que relata o caso de sete irmãos que vivem brigando por qualquer motivo. Quando o pai deles falece, deixa-lhes sete novelos de fio de seda e as instruções de que só poderiam receber sua herança se fossem capazes de, em apenas um dia, transformarem esse material em ouro. Os irmãos conseguiram realizar a proeza quando perceberam que, se trabalhassem juntos de forma cooperativa, poderiam confeccionar um belo tecido colorido e vendê-lo a preço de ouro. No final, os irmãos ensinam sua arte aos habitantes da aldeia.
Atividade Expressiva: Confecção coletiva do "olho de Deus", recurso arteterapêutico que ao ser confeccionado em grupo, tem o propósito de estimular a cooperação e trazer à tona a necessidade de valorização das diferenças,10 atributos necessários para a promoção da convivência saudável e a qualidade do trabalho em equipe.
3º Encontro: Tema: Superando obstáculos. Objetivo: Estimular a capacidade de enfrentamento de dificuldades. A história "A Montanha e a Pedra", de D. McKee,20 fala de um casal que mora no alto de uma montanha e recebe muitos visitantes atraídos pela beleza da paisagem. Acontece que existe uma grande pedra que encobre metade da janela da cozinha, motivo para a esposa queixar-se tanto ao marido, que este, com muito esforço, empurra a pedra montanha abaixo. A partir daí, fatos inusitados acontecem. A pedra cobria um furo na montanha, sem ela a montanha começou a se esvaziar como uma bexiga, tornando-se um vale. Até que a pedra rolou novamente e se posicionou bem na frente da mesma janela, tapando o buraco por onde escapava o ar. A montanha voltou a crescer, e logo a casa estava novamente no alto. O marido então teve a ideia de pintar uma paisagem na pedra que encobria a janela. A partir daí, a mulher falava aos visitantes que a vista mais bela era a da janela da cozinha.
Atividade Expressiva: Pintura em pedras. Trata-se de recurso adequado para dissolver a rigidez e promover a mudança de pontos de vista e comportamentos que não são mais eficazes nem correspondem às necessidades atuais do participante.10
4º Encontro: Tema: Iluminando potencialidades. Objetivo: Percepção de características positivas e potenciais. A história "A menina da lanterna", de E. Kressler,21 fala de uma menina que, buscando acender o fogo de sua lanterna, percorre um bosque e encontra animais e pessoas que não se dispuseram a ajudá-la. Finalmente chega ao topo de uma montanha, mas, muito cansada adormeceu. O Sol, que há muito a tinha avistado, ao cair da noite, aproximou-se e acendeu a lanterna. Ao acordar, vendo sua lanterna acesa, iniciou o caminho de volta, e com o fogo adquirido, ajudou a todas as pessoas que havia encontrado e que estavam no escuro. Os animais acordaram com o brilho da sua lanterna e, assim, a menina voltou feliz para sua casa.
Atividade Expressiva: Confecção de mandalas a partir de velas derretidas.10 O elemento fogo, simbolicamente, pode ser associado à tomada de consciência, à capacidade de iluminar o que está obscuro, de trazer luz ao que está no inconsciente, sendo relacionado à criatividade e ao conhecimento.18 Atividades expressivas que utilizem este elemento, como a mandala de velas, são indicadas para se trabalhar o medo, promover a autoconfiança e o reconhecimento de talentos e potenciais, além de ajudar a ter foco. Como efeito dessa atividade, a face visível da mandala, onde a vela é pingada, é escura e feia, enquanto a outra, que surge ao virá-la depois de pronta, é colorida e brilhante.
5º Encontro: Tema: Resgatando a própria história. Objetivo: Identificar o processo de desenvolvimento pessoal. A história de "Fátima, a fiandeira" é um conto grego recontado por Regina Machado.22 Fala de uma moça que vivia em uma ilha com os pais fiandeiros. Ela passa por uma série de revezes na vida, por várias vezes, perdeu o que tinha e teve que recomeçar em um lugar diferente, mas em cada um deles aprendeu um novo oficio. Foi fiandeira, depois aprendeu a tecer e a fazer mastros de navio. Por fim, chegou a uma terra em que havia uma profecia de que uma estrangeira seria capaz de fazer uma linda tenda para o imperador. Fátima resolveu tentar e como não encontrou materiais adequados, produziu cordas, tecidos e estacas. Por fim, bastou lembrar-se de todos os tipos de tendas que vira em suas andanças para construir uma belíssima tenda para o imperador, que muito agradecido, lhe prometeu o que quisesse. Fátima desejou apenas morar ali e recomeçar a vida. Casou-se e teve filhos a quem sempre dizia que tudo o que lhe parecera desgraça quando aconteceu, contribuiu para sua felicidade final.
Atividade Expressiva: confecção de um panô.10 Simbolicamente, as histórias estão relacionadas aos fios e linhas, por isso, trabalhos com costura, tecelagem e fios, como a confecção do panô, podem ser especialmente indicados para proporcionar visão ampla de si mesmo e das próprias experiências.10
6º encontro: Fechando o processo. Objetivo: Avaliação do processo arteterapêutico. Nesse encontro, os participantes recebem de volta os trabalhos produzidos, que haviam ficado com a pesquisadora e é o momento em que podem ter um novo olhar e comentar sobre o conjunto de atividades realizadas, refletindo sobre o que vivenciaram e aprenderam durante o processo.10
A segunda etapa da pesquisa ocorreu após o término do processo arteterapêutico e constituiu-se de entrevista qualitativa semiestruturada, individual, previamente agendada com os participantes e realizada na própria instituição. Foi mediada pela questão disparadora: Como foi para você a experiência de haver participado das oficinas de arteterapia? Durante seu transcorrer, outras perguntas foram sendo inseridas no sentido de aprofundar a compreensão dos conceitos expressos pelo entrevistado. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra.
Realizou-se a análise qualitativa dos dados de forma concomitante à coleta dos mesmos seguindo os passos preconizados pelo referencial metodológico: codificação, categorização, integração e descrição das categorias desveladas.15 Após análise, entendeu-se que os dados revelados foram considerados bem desenvolvidos, com repetição de informações que levaram à compreensão que o objetivo do estudo fora atingido, não sendo necessárias novas entrevistas, devido à saturação dos dados.23
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente (CAAE: 07857312.3.0000.5505) e autorizada pela instituição participante do estudo. Conforme determina a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de garantir o anonimato dos participantes e identificá-los na transcrição de trechos de seus depoimentos, os mesmos foram identificados pelas pesquisadoras por nomes de ervas medicinais.
Os dados revelaram que, para o profissional de saúde, participar do processo de arteterapia representa uma vivência surpreendente, gratificante e terapêutica, lúdica e prazerosa com efeito na saúde e bem estar. Possibilitou ressignificar suas vivências ao interagir com as histórias narradas, passando a reconhecer a importância de realizar as atividades manuais como pausa para respirar, relaxar e aliviar a carga e o estresse da jornada de trabalho.
A oficina arteterapêutica constituiu-se também em importante espaço de interação, que lhe possibilita conhecer-se melhor, respeitar e aprender com os colegas, ao mesmo tempo em que pode falar e expressar suas emoções. É definida como uma experiência terapêutica e promotora de saúde e bem-estar, dessa forma, emerge o desejo de sua continuação.
O profissional define a vivência arteterapêutica como positiva, satisfatória e importante, constituída por momentos lúdicos e muito especiais.
Eu gostei muito. Foi muito, muito, muito, muito bom! Eu acho que esse momento da Arteterapia, esse momento dos nossos encontros, foram realmente muito especiais. Foi maravilhoso! O que eu vivenciei foi extremamente positivo. É um momento lúdico, um momento importante. (Erva-doce)
Leve. [...] porque durante as atividades a gente conversava, dava risada. [...] um momento de descontração. (Camomila)
Dispondo de pouca informação prévia a respeito da arteterapia, ao aceitar o convite para participar das oficinas, o profissional refere ter sido motivado por curiosidade, para se inteirar do que estava acontecendo na instituição ou até para "fugir um pouco do serviço". Porém, após ter vivenciado o processo, avalia que a experiência foi proveitosa, envolvente e interessante, possibilitando-lhe ressignificar o sentido de participar de atividades grupais.
Eu preciso participar para eu realmente ter certeza como é que funciona. Até que eu fui, por curiosidade mesmo. [...] eu sempre achei que: Ah! Vamos fazer um trabalho, vamos fazer uma entrevista com psicóloga... eu sempre achava uma babaquice. Mas eu fui, gostei da primeira aula. Falei: Não, eu vou continuar, vou participar até o fim, porque eu achei interessante. Para mim foi uma surpresa! Não é nada daquilo que eu pensava antes. (Sálvia)
Eu nunca imaginei que trouxesse todos os benefícios que trouxe, tanto como profissional, como pessoal. Não imaginava que em tão pouco tempo, tão pouco, quanta coisa, quantas mudanças! E mudanças boas. (Erva-doce)
O profissional define as histórias apresentadas como fontes de inspiração, de exemplo e estímulo, pois, interagindo com elas, pode aprender e levar lições importantes para sua vida. Comparando-se com os personagens e observando as atitudes que tiveram frente às situações retratadas, ele reconhece características próprias e passa a modificar atitudes que avalia serem inadequadas.
Em todas as histórias, acho que cada um ia trazendo para sua vida. [...] eu lembrava do meu problema, e como eu podia lidar com ele melhor. De não desanimar, de transformar o dia a dia. Então, a gente vai pensando tudo na nossa vida e refletindo, sempre de um jeito positivo, um incentivo. (Camomila)
Em cada história deu para tirar uma lição. A questão da superação, a história da menina que aprendeu, reaprendeu e no final ela usou tudo. São coisas que se leva pra vida, né? (Alecrim)
Interagindo com a produção manual, expressiva e criativa, o profissional descobre uma atividade agradável, relaxante, chegando tanto a recordar experiências passadas em que vivenciou esse prazer, como planejar, no futuro, algum tempo para introduzi-la em sua rotina.
O "olho-de-Deus" foi um dos trabalhos que eu mais gostei. As outras eu já tinha um pouco de noção, de costura, de montar, sempre minha mãe me ensinou a fazer essas coisinhas. [...]Quando eu tiver tempo disponível, mais tranquila, eu vou fazer sim. Ocupar um pouquinho a mente, desviar um pouquinho do estresse. (Macela)
Eu nunca tinha feito a questão de, vamos chamar, artesanato mesmo. [...] Eu não sabia que eu tinha essa capacidade de fazer! Uma coisa assim, muito prazerosa! Acalma, melhora a concentração. Muito bom! (Alecrim)
As oficinas de arteterapia são definidas pelo profissional como momentos em que pôde "respirar", espairecer e desligar-se dos problemas e da rotina, mesmo durante a jornada de trabalho. Acostumado a envolver-se com vários afazeres e sempre pensando no que há para ser feito, ele reflete que o tempo dedicado aos encontros se constitui em uma pausa na sua rotina atribulada, um tempo realmente dele, para interagir consigo mesmo e recuperar suas energias.
A questão de dar um tempo para si também! É muito bom você parar aquele tempo ali e fazer as atividades. Descansar um pouco, pensar um pouco em si, não somente nas metas, objetivos ou nas outras pessoas. E essa pausa, nas nossas reuniões, das atividades, fez com que a gente... pare! Porque é uma pausa (no trabalho) que você consegue repor as energias. (Alecrim)
Acho que durante todo esse tempo eu nunca tinha tido um tempo pra mim! (Erva-doce)
O profissional reflete que o alívio do estresse ocorre tanto em virtude da sensação de relaxamento proveniente da dinâmica estabelecida nas reuniões, como pela oportunidade de desabafar e descarregar as tensões decorrentes do cotidiano de trabalho, tais como a sobrecarga de atividades e o excesso de cobranças que acredita sofrer.
Deu uma relaxada. Eu achei muito importante porque quando nós vínhamos participar das reuniões, eu acho que no final, dava aquela sensação de alívio, como que amenizasse! Senti em todas (as colegas), todas. Você percebe que era geral. Esse trabalho dá mais tranquilidade. (Melissa)
Ter a oportunidade de ver e ouvir o colega em situação diferente da rotina possibilita que o participante passe a conhecer melhor, compreender e respeitar mais o companheiro de trabalho. Ele avalia que esse contato favorece a modificação de eventuais ideias errôneas e pré-concebidas que possa ter, proporcionando melhor convivência do grupo no dia a dia.
Porque a gente olha assim e pensa: cada um com seus problemas. Mas não é assim! A gente tem que ver também o dos outros. Porque empresa é aquele negócio: fulano só ganha e nem aparece aqui, fulano nem vem aqui e não sei o que, fulano só chora... Mas ninguém sabe o que o fulano está passando. Aí, depois, que você está lá, junto, é que você vê a situação. Poxa, eu fazia um mau julgamento da pessoa. Porque você passa a conhecer. E aí você muda. (Hortelã)
O diálogo, ele é muito importante. Porque a gente aprende muito com as pessoas. Todo mundo tem algo de bom pra oferecer. (Alecrim)
O participante observa que durante o processo, vai se instalando no grupo um clima de confiança e intimidade que favorece a expressão de questões pessoais. Ele avalia que, tanto passa a conhecer melhor os colegas, quanto se deixa conhecer por eles, falando com naturalidade de questões pessoais e expressando suas emoções.
Eu achei muito importante. Por exemplo, agora, só o fato de nós estarmos conversando, você também passa essa tranquilidade, passa essa sensação, você está assim, colocando as coisas de uma forma que a gente tem confiança em passar. (Melissa)
Porque às vezes você estava estressada, e ali (na oficina) você conseguia colocar para fora o que você estava sentindo, fazendo as atividades. Você fazia e depois você tinha que comentar a respeito daquilo que você fez. Então, aquilo já era um meio de você desabafar aquilo que você estava sentindo. (Lavanda)
Participando das oficinas, o profissional passa a enxergar as coisas de modo diferente, chegando a modificar posturas e atitudes; tem a oportunidade de descobrir-se e fortalecer-se, desenvolver potenciais como a capacidade de concentrar-se, a autoconfiança e a autoestima, passando a atribuir novo valor e significado ao processo de autoconhecimento e, então, definindo a experiência como uma verdadeira terapia.
Então isso foi bom para mim, melhorou um pouco minha autoestima. (Macela)
Eu vi mais diferença em mim. Ah! Você consegue enxergar as coisas mais claramente. Ver o outro lado das coisas foi bom. Então às vezes você refletia o que aconteceu (na oficina) e ia pra casa bem. (Camomila)
Foi uma boa lição que eu tive. Uma por julgar que era bobagem participar! Foi assim até o final do curso: todas as vezes que nós nos reuníamos, fui aprendendo cada vez mais. Para mim foi uma lição maravilhosa, aprendi muito. Acho que eu cresci! (Sálvia)
Considerando os desafios próprios do trabalho institucional, a inexistência de suporte efetivo que auxilie o profissional a lidar com as dificuldades do cotidiano e reconhecendo os benefícios proporcionados pelo processo arteterapêutico, como relaxamento e alívio do estresse, o participante avalia ser interessante que haja continuidade do atendimento prestado e que seja extensivo a todos os setores da instituição.
Achei que foi de grande importância participar desse processo, tanto para mim como para equipe que estava comigo. (Melissa)
O que mais tem aqui é gente estressada. Em geral, todos precisam disso. Se todo mundo fizesse a terapia ia trabalhar com mais vontade, não desanimava, não estressava. (Lavanda)
E para mim teve um retorno grande. Porque foi um trabalho que foi bem empregado aqui na instituição e que teve um certo retorno. Bastante! Então isso ajuda, o povo tem que abraçar isso porque é bom. (Hortelã)
Acostumado a interagir com problemas e sofrimentos de várias ordens, ao ter oportunidade de falar sobre sua participação no processo de arteterapia, o profissional de saúde expressa o quanto foi saudável e prazerosa a experiência, permeada por momentos de descontração e leveza no ambiente de trabalho. Há crescentes evidências da eficácia da arteterapia na redução de estresse, ansiedade e melhora do humor em diferentes populações e contextos de aplicabilidade, a partir de suas diferentes modalidades como dança, música e intervenções artísticas manuais,9,24 sendo esta última utilizada neste estudo.
A ludicidade se fez presente quando, interagindo com os recursos expressivos disponibilizados nas oficinas, o profissional passa a reconhecer a importância de realizar atividade manual. Ele refere sentir prazer ao manusear os materiais e com a novidade das propostas, chegando a relacioná-lo com situações agradáveis vividas na infância, talvez porque seja a fase em que se costuma ter a liberdade de criar e experimentar, de fazer algo sem propósito definido, apenas pelo prazer, atitude que o adulto, muitas vezes, deixa de lado, com suas tantas responsabilidades e obrigações. Ressaltar e valorizar o aspecto lúdico das oficinas de arteterapia, associando-o à recordação prazerosa do passado também ocorreu com atletas.25
Ao participar do processo arteterapêutico os profissionais perceberam a possibilidade de interagir com os colegas de modo diferente do habitual, aprendendo, expondo suas emoções e sentimentos com facilidade, obtendo benefícios pessoais e grupais em uma situação aparentemente despretensiosa e tão pouco séria, mas rica e envolvente. Esse benefício também é relatado em estudos que apontam a melhora e estreitamento das relações no ambiente de trabalho após engajamento da equipe de saúde em atividades artísticas. 8,9 As oficinas de arteterapia podem favorecer o estreitamento dos vínculos, gerando maior confiança e intimidade mesmo entre pessoas que já tinham relação de amizade, conforme apontam pesquisas realizadas tanto com atletas25 e também com profissionais de saúde.8
Há de se considerar que interações entre os membros de uma equipe nem sempre transcorrem em clima de tranquilidade e cooperação,26 sendo o relacionamento conflituoso com chefia e colegas apontado como um dos grandes fatores geradores de sofrimento psíquico, ansiedade e estresse para o profissional.4,27,28
Ressalta-se que neste estudo, nenhuma diferença fizeram os rótulos de cargo, escolaridade e posição hierárquica: as relações se humanizaram, os participantes começaram a enxergar diferentes aspectos uns dos outros, a rever conceitos e reavaliar opiniões que tinham acerca dos demais, encontrando um espaço para falar e expressar emoção com confiança e tranquilidade, respeitando e sentindo-se respeitado.
Surpreendente foi o envolvimento do profissional de saúde com as histórias narradas nas oficinas: ele "viajou" junto com os personagens, emocionou-se e viveu seus dramas, aprendendo com eles novas maneiras de lidar com as situações, assim, ressignificando suas vivências ao interagir com as histórias. Colocando-se no lugar do personagem, ele identificou semelhanças em atitudes que julgou positivas, sentindo-se então, fortalecido e valorizado; também se reconheceu em atitudes que julgou negativas, passando a rever seus pontos de vista e posturas diante de algumas situações, buscando modificar sua maneira de agir.
A literatura argumenta que a narração de histórias proporciona ao ouvinte um distanciamento de sua realidade, permitindo-lhe ampliar a visão a seu respeito e de sua situação atual, atribuindo novos significados à sua história, dando novo sentido ao que já foi vivido e enxergando novas saídas para os conflitos enfrentados, pois, ao assumir o lugar dos personagens, ele passa a enxergar-se "de fora", como quando se sobe numa montanha para se ter uma visão ampliada da paisagem, passando a ter possibilidade de realizar um diálogo consigo mesmo.10
Ficou evidente que participar dos encontros arteterapêuticos constituiu-se em uma pausa para respirar dentro da rotina atribulada do ambulatório. O profissional reconhece que o envolvimento em atividades artísticas tem um impacto positivo na sua saúde e bem-estar, assim como na melhora da comunicação com os clientes, ajudando a construir uma relação empática. Estudos constatam ainda, efeitos positivos como redução do estresse, melhora do humor, aumento do desempenho no trabalho, redução de Burnout e sensação de bem estar.7,9
Com base nos inúmeros benefícios descritos, revisão de literatura sugere que programas com artes sejam inseridos em ambientes de cuidado à saúde, inclusive pela característica holística, baixo custo e o potencial de promoção de saúde mental pública e bem estar a todos os envolvidos.9 No entanto, há ainda lacunas que apontam a necessidade de novas pesquisas com evidências mais robustas do seu impacto no sistema de saúde.24
Em concordância, há um movimento de reconhecimento e inclusão das artes e cultura como estratégia para promoção de saúde em geral nos países nórdicos. Contudo, há um clamor para que novos estudos com fortes evidências reforcem sua eficácia e viabilidade econômica e que justifique a inserção de programas públicos dessa natureza, como o que ocorre, com sucesso no Reino Unido e apontado como um exemplo a ser seguido.29
No entanto, há urgência nessa incorporação. Há dados alarmantes sobre o desgaste do profissional, o impacto em sua qualidade de vida e o quanto essa realidade compromete a qualidade do atendimento prestado à população. Estudos ressaltam que muito se sabe sobre as condições de trabalho, mas são poucas as intervenções propostas para alterar essa realidade considerada insalubre.6,28 Reiteramos que a participação em um processo de arteterapia pode contribuir para minimizar o estresse e o sofrimento psíquico do profissional de saúde, na medida em que, neste estudo, favoreceu a qualidade de interação entre os membros do grupo, assim como foi descrito em outras pesquisas.25,30
Em relação à qualidade de interação estabelecida nos grupos de arteterapia, consideramos que também existe a interferência da atitude e postura do coordenador do processo, tanto ao elaborar o planejamento das oficinas, como na própria condução delas. Desde o início, é fundamental que se tenha o cuidado de propor dinâmicas que promovam a construção de um espaço interacional seguro, protegido e sigiloso, que possibilite a construção dos vínculos entre os participantes e com o facilitador.10 Observamos ainda, a importância de que o clima de acolhimento e respeito seja favorecido e preservado no decorrer dos encontros e para tal, a postura de aceitação e acolhimento do arteterapeuta é essencial.
A promoção de maior autoconhecimento foi verificada em pesquisa realizada com atletas, que por meio das atividades expressivas que confeccionaram, voltaram o olhar para si mesmos, reconhecendo e identificando características próprias que antes não percebiam, tornando-se mais conscientes de importantes aspectos da própria personalidade.25
Isso corrobora os achados deste estudo, em que o profissional define o processo como sendo uma experiência terapêutica, que possibilitou-lhe desenvolver potencialidades, como a capacidade de concentração e autoconfiança e alterar sua forma de enxergar, se autoconhecer e encarar situações de sua vida pessoal e profissional, passando a modificar posturas e atitudes no seu dia a dia.
Assim, o participante desta pesquisa termina a experiência, desejando sua continuidade, observa que a arteterapia lhe serviu como suporte para enfrentar os desafios do trabalho, reconhece seus benefícios e propõe sua permanência na instituição. Os resultados apresentados são semelhantes a outros estudos que ressaltam a real necessidade do profissional de saúde obter recursos que lhe forneçam suporte para lidar com os desafios pertinentes à sua área de trabalho,3,5,27,28 indicando a pertinência de serem disponibilizadas práticas que garantam o apoio psicológico ao profissional6 e, consequentemente, favoreça sua saúde mental.
A esse respeito, consideramos ser a arteterapia uma alternativa eficaz e viável para melhorar a condição e promover o bem-estar do profissional que atua em ambulatório de saúde, constituindo-se numa forma preventiva de cuidado, especialmente se as oficinas forem realizadas no final da jornada semanal de trabalho, pois além de proporcionar ganhos pessoais e profissionais para os participantes, pode ser implementada em curto período de tempo e demanda baixíssimo investimento financeiro, utilizando-se materiais simples, facilmente disponíveis e de baixo custo, como demonstrado neste processo.
O fato de este estudo ter sido realizado apenas com profissionais que atuam em ambulatório de atenção à saúde pode ser considerado uma limitação. Assim, julgamos ser necessária a realização de outras pesquisas em que a arteterapia seja aplicada junto a profissionais que atuem em outros contextos assistenciais, como o ambiente hospitalar.
O estudo permitiu dar voz ao profissional de saúde, compreender o quanto ele se sente sobrecarregado em sua rotina diária e o quanto a experiência de participar do processo grupal de arteterapia na companhia de seus colegas se revelou terapêutica, gratificante e surpreendente, efeito positivo em sua saúde e bem estar. Contribui para a reflexão e discussão sobre a saúde do trabalhador e a necessidade de criação de recursos terapêuticos como suporte à sua saúde mental.
Pensamos que o efeito terapêutico do processo - observado e relatado pelos participantes - deriva de um conjunto de fatores, dentre os quais destacamos a oportunidade de ressignificar a própria história, vislumbrando novos caminhos e favorecendo a adoção de novas posturas, o que foi proporcionado tanto pela interação com os colegas, como com o processo arteterapêutico propriamente dito.
Reiteramos que a arteterapia é um recurso que deve ser oferecido aos profissionais de saúde, no sentido de minimizar o sofrimento psíquico a que estão constantemente expostos, contribuindo para a promoção de sua saúde mental e, por consequência, para o melhor atendimento à população, solidificando os pressupostos da Política Nacional de Humanização, segundo os quais clientes e profissionais devem ser tratados com dignidade e respeito.