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Saúde e desenvolvimento: um diálogo com o pensamento de Celso Furtado Healthcare and development: a dialog with the thinking of Celso Furtado

Saúde e desenvolvimento: um diálogo com o pensamento de Celso Furtado Healthcare and development: a dialog with the thinking of Celso Furtado

Autores:

Laís Silveira Costa,
Ligia Bahia,
Patrícia Seixas da Costa Braga

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.7 Rio de Janeiro jul. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017227.02682017

Introdução

No Brasil, as associações entre progresso e saúde não são recentes; já se faziam presentes em discursos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek nos anos 1940 e 1950. Nas duas décadas seguintes, teorias sobre o desenvolvimento inspiraram estudos de médicos e intelectuais sobre a saúde e as relações econômicas e sociais. Questões como direito à atenção médica, socialização dos serviços de saúde e nacionalização da indústria farmacêutica foram investigadas por autores como Samuel Pessoa, Mário Vítor de Assis Pacheco, Mário Magalhães, Álvaro de Faria e Carlos Gentile de Mello1.

Os conhecimentos herdados permitiram reexaminar as relações entre os campos da saúde e do desenvolvimento. O conceito positivo de saúde – como condição inerente ao bem-estar social e ao exercício pleno da cidadania – trouxe consigo interrogações acerca da correlação instrumental entre saúde e desenvolvimento, o que implicou na elaboração das diretrizes que nortearam a Reforma Sanitária brasileira (concebidas com base nas críticas aos modelos preventivistas e medicalizantes) e na percepção de que mudanças estruturais nas relações estabelecidas entre sociedade, mercado e Estado eram imprescindíveis2.

A compreensão de que condições de saúde dependem de fatores nacionais mais gerais – relacionados ao padrão de desenvolvimento e à inserção autônoma e competitiva na economia global –, com repercussões sobre aspectos como distribuição de renda, pobreza, nutrição, saneamento, padrão de crescimento econômico (socializador ou marginalizador), implicou no reconhecimento de que a setorização da saúde é um limitante tanto para o campo científico quanto para a qualidade de vida da população. Previsões baseadas exclusivamente em reiterações das assimetrias sociais do passado ou supostas oportunidades de alavancagem de subsetores econômicos no atual cenário de crise econômica devem, assim, ser problematizadas mediante interrogação das políticas que as fundamentam e legitimam; especialmente ao se considerar a importância de se buscar uma trajetória de desenvolvimento capaz de conduzir a uma crescente homogeneização de nossa sociedade3,4, passando pela ruptura dos processos que alimentam a persistência da polaridade modernização-marginalização que marcou a história do desenvolvimento contemporâneo brasileiro.

A constatação da existência de uma união inseparável entre formas econômicas e sociais implicou na percepção da necessidade de libertação do “círculo vicioso” ao qual o país é submetido por sua herança colonial e apontou a necessidade de mudanças que passem pela economia – onde estaria a origem dos obstáculos então enfrentados e que seria o lócus de sua superação –, visto que o padrão de desenvolvimento brasileiro apresenta limites críticos.

As análises que relacionam saúde e desenvolvimento, realizadas a partir dos anos 2000, passaram assim a incluir a investigação sobre as conexões existentes entre os direitos sociais, a inovação e a estrutura dinâmica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), cuja formulação teórica5 trata da inter-relação sistêmica entre segmentos produtivos do setor secundário e terciário envolvidos na cadeia produtiva da saúde.

Os interesses políticos, econômicos e sociais dinamizados por esta base são variados e muitas vezes conflitantes. Em especial por refletirem as forças culturalmente dominantes – neste caso, atendendo aos interesses de acumulação comandados pelas empresas transnacionais – é que se pode afirmar que as técnicas não são neutras4. Sob o ângulo das tensões entre desenvolvimento social e poder, inovação e democracia, e das consequências sobre a produção e acesso de bens e serviços de saúde, a reflexão acerca da base produtiva envolvida em um sistema de saúde é essencial para orientar e subsidiar políticas públicas setoriais e intersetoriais.

O progresso tecnológico pode ao mesmo tempo embasar o desenvolvimento econômico e acirrar desigualdades sociais – caso a promoção, a prevenção e a atenção à saúde sejam propiciadas com base no acesso iníquo às novas tecnologias e no estabelecimento de diferenciais de exposição aos riscos causados por intervenções ambientais e procedimentos iatrogênicos. Além disso, as discrepâncias entre acesso, qualidade e custo das inovações colocam o tema no centro do debate sobre a efetivação e a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), o que mostra sua importância para a política de saúde.

Com base em uma revisão da literatura sobre o tema e a partir de uma abordagem histórica, o objetivo deste ensaio é aprofundar a compreensão dos condicionantes estruturais da relação entre saúde e desenvolvimento e de sua reprodução na formação de conhecimento, resgatando a teoria desenvolvimentista preconizada por Furtado para analisar o contexto contemporâneo.

Sua relevância pauta-se pela necessidade de avançar no entendimento sobre como conduzir atividades econômicas visando promover a aproximação entre o sistema de bem-estar nacional e o sistema nacional de inovação em saúde, conforme proposto por Furtado. Ao recuperar conceitos-chave de homogeneização social e autonomia produtiva, ressalta a importância de qualificar o fomento dessa base produtiva de forma que as demandas da população sejam capazes de guiar o desenvolvimento tecnológico e os processos de inovação.

Vitalismo e complexo médico-industrial

Durante a década de 1960, na busca por compreender as relações entre a ciência, a medicina e os discursos sobre saúde e doença, a saúde foi objeto de investigações científicas e reflexões teóricas em variados campos do conhecimento. Questionava-se o ideário segundo o qual o saber sobre o adoecimento resulta diretamente das tentativas de reinstaurar a saúde. A doença, então, não era compreendida apenas como uma manifestação de experiências vividas que projetam transtornos e desordens, mas como uma alteração dos contornos do conceito de normalidade, fenômeno distinto do sofrimento6.

A saúde perfeita, portanto, não passaria de um conceito acerca de um tipo ideal. Sua compreensão deveria se libertar de métricas fisiológicas, visto que “o homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir novas normas”7. A doença, por sua vez, deveria ser entendida como a produção de novas formas de adequação entre o organismo e o meio ambiente. A princípio, aquilo que se apresenta como anormal é, muitas vezes, o presságio de uma nova normatividade, pois, “na medida em que seres vivos se afastam do tipo específico”, não seriam necessariamente anormais a ponto de colocar em perigo a forma específica, uma vez que poderiam apenas representar a evolução dos caminhos que levam a novas formas6. No Brasil, essa teoria influenciou Arouca8, para quem os cuidados médicos teriam uma dupla característica: ser um processo de trabalho que tem por finalidade interferir em valores vitais – biológicos e psicológicos – e ser uma unidade de troca à qual é associado um valor social e historicamente estabelecido.

A partir dos anos 1970, a busca pela compreensão da relação entre medicina e ciência se depara com novas variáveis. Diante da pressão dos custos com os cuidados médicos, várias publicações da imprensa enfatizavam os aspectos desfavoráveis da associação entre indústrias lucrativas e serviços de saúde filantrópicos ou comunitários. Concepções negativas dessa conexão também foram abordadas em pesquisas científicas internacionais, particularmente aquelas preocupadas em quantificar e desvendar os lucros obtidos pela indústria da saúde, como no estudo conduzido por Howard Waitzkin9, que buscou demonstrar que, na década de 1960, nos Estados Unidos, as unidades de terapia coronariana foram amplamente disseminadas antes mesmo de qualquer avaliação da sua efetividade no tratamento do infarto do miocárdio.

Essas pesquisas concentraram seus esforços na adequação do pensamento marxista à interpretação do “crescimento explosivo da indústria da saúde”10. A concepção do “complexo médico-industrial” passou a ser adotada por variados autores com a finalidade de investigar as relações estabelecidas entre interesses de grandes empresas produtoras de “suprimentos” para os cuidados com a saúde – incluindo a cooperação com os centros de pesquisa, os serviços de saúde e as corporações profissionais11.

A compreensão dos complexos médico-industriais deriva da apreensão do conceito de complexo industrial (mais especificamente, da adaptação da expressão “complexo industrial militar”). Note-se que as cadeias produtivas de uma economia nacional podem ser reunidas em conjuntos, ou blocos, de maneira que o valor médio das compras e vendas dos integrantes de um bloco seja maior que o de outro. Esses blocos podem ser intitulados “complexos industriais”12. Tradicionalmente, o conceito “complexo industrial” é utilizado como ferramenta de avaliação de um agrupamento de indústrias articuladas, espacial e intersetorialmente, sob o comando de uma indústria motriz. Sua demarcação é um processo que demanda a construção de uma matriz de transações para que, com base em um padrão de insumo-produto, seja propiciada a organização de informações sobre as transações intersetoriais.

O entendimento da configuração das estruturas de produção, sua dinâmica de atuação e suas conexões com os conceitos de complexo industrial, desenvolvimento e políticas públicas fundamenta-se, entre outras, nas comprovações constantes das avaliações dos modelos de crescimento econômico equilibrado e dos efeitos necessariamente benéficos dos polos de crescimento. O desenvolvimento proporciona, em regra, a abrupta e vigorosa prosperidade de uma ou poucas regiões e setores. Uma vez que os instrumentos de difusão e (ou) de convergência do crescimento ficam evidenciados, confere-se atribuição essencial ao investimento público. Note-se que além de ser determinante para a geração de renda e a criação de capacidade produtiva, o crescimento econômico equilibrado deve implicar a otimização de investimentos produtivos que sejam liberadores de novos investimentos diretos.

De acordo com essa teoria, o desenvolvimento se organiza em polos, não havendo uma distribuição homogênea entre os diversos setores e atividades econômicas13, ou seja, além de ser cumulativo, é desequilibrado setorial e espacialmente. Por esta razão, leva à obrigatoriedade de identificação das indústrias motrizes e polos de desenvolvimento. Dado o potencial que as transformações nas tecnologias empregadas ou na demanda têm de estimular o incremento de setores já consolidados, de modo a torná-los motrizes, as relações entre indústrias tornam-se necessariamente dinâmicas. As inovações, portanto, desempenham relevante papel na concepção desses polos, uma vez que a influência desestabilizadora das indústrias motrizes gera ondas de inovações e que evidências empíricas da maior interdependência entre setores são numerosas, ampliando o âmbito de atuação das organizações públicas e privadas ao incorporar atividades acima e abaixo de suas cadeias setoriais. Logo, tentativas mais recentes de delimitação de complexos industriais admitem recortes arbitrários e metodologias que enfatizam não apenas o valor agregado e a capacidade de retenção das relações de compra e venda de cada componente do complexo, mas também a maior importância do progresso técnico de setores que tendem a ampliar sua participação em termos do valor de produção no complexo como um todo.

Desenvolvimentismo e saúde

Nos anos 1970, elevadas taxas de crescimento econômico sem o correspondente impacto sobre indicadores sociais – conjugadas aos aportes críticos às concepções sobre doença como antônimo de saúde e ao agravamento das desigualdades no acesso às ações de saúde, impostas pelas ditas indústrias médicas – tiveram como corolário a caracterização do processo de modernização conservadora do desenvolvimento capitalista. Este modelo, originalmente desenvolvido na Alemanha e no Japão, expressa o pacto político conservador entre a burguesia nascente e os oligarcas terratenentes com o objetivo de construir uma sociedade capitalista, totalitária e autocrática. Essa via de desenvolvimento capitalista difere da percorrida por países como Inglaterra, França e Estados Unidos, onde as revoluções burguesas levaram a violentas rupturas com o Ancien Régime e constituíram uma base econômica e social independente em sociedades capitalistas e democráticas.

No Brasil, a modernização conservadora condicionou a formação de uma burguesia dependente, que não conseguiu apresentar um projeto de poder autônomo e hegemônico para a nação, conduzindo-a, portanto, a um padrão de economia dependente da dinâmica dos países centrais: subdesenvolvida em termos estruturais e autocrática. É nesse sentido que o sanitarismo e a saúde pública desenvolvimentistas são considerados reducionistas, por confundirem desenvolvimento com industrialização e por debitarem exclusivamente ao crescimento econômico a melhoria das condições de vida e saúde14. Raramente as elites econômicas nacionais atrelaram o processo de acumulação de sua riqueza a algum tipo de projeto nacional e popular15.

Nesse sentido, a produção teórica que considerou o social como determinante das condições de saúde e os profissionais de saúde como sujeitos da prática política, visando à transformação social, não estabeleceu conexões diretas com as teorias do desenvolvimento econômico furtadianas, que ressaltavam o processo imitativo de nosso desenvolvimento e as tendências atávicas da sociedade ao elitismo e à exclusão social4. Ao contrário da trajetória percorrida, Furtado defendia a importância de o Estado ser o agente empreendedor e definidor da orientação do progresso tecnológico, para que este não representasse a transposição de um padrão definido e contextualizado no centro. Advogava que essa era condição sine qua non para a modernização das estruturas sociais, em vez da exclusão das maiorias desprivilegiadas ocorrida no processo de industrialização nacional16.

Em direção contrária à orientação furtadiana, as contradições entre os efeitos do crescimento econômico brasileiro e a melhoria das condições de vida da população – o perfil de morbimortalidade, por exemplo – fizeram com que a expressão “desenvolvimentismo” passasse a designar um modelo a ser superado a partir do fim dos anos 196017.

Como consequência, no Brasil, a expressão “complexo médico-industrial” conservou sua conotação original restritiva e foi disseminada com duas acepções18,19. A primeira, de caráter descritivo instrumental, correspondia aos interesses capitalistas de incremento de práticas consumistas de medicamentos e procedimentos médico-hospitalares, fundamentando a extensão de cobertura por meio de serviços básicos de saúde. Diversamente, a segunda acepção conferia um sentido explicativo ao termo, atribuindo-lhe capacidade de compreender as desigualdades estruturais no acesso aos serviços e bens de saúde. Foram necessárias duas décadas para que o vigor e a originalidade da contribuição furtadiana subsidiassem a reflexão sobre a Saúde Pública brasileira (em especial no que concerne à compreensão do subdesenvolvimento coetâneo a um desenvolvimento industrial que aprofunda desigualdades estruturais e à adoção do desenvolvimento intencional e planejado de formas econômicas mais sofisticadas).

Na verdade, a redemocratização brasileira e a qualificação da saúde como um direito universal fizeram aflorar a necessidade de se enfrentar o desafio de equacionar a participação da saúde no padrão de desenvolvimento nacional, no qual a produção e a difusão tecnológicas são extremamente assimétricas e, muitas vezes, dissociadas das necessidades locais do progresso técnico e do conhecimento20.

Ao mesmo tempo, a necessidade de buscar uma trajetória de desenvolvimento que visasse à superação definitiva do atraso nacional em relação aos países centrais trouxe ideias furtadianas de volta ao debate. Ressalte-se, especialmente, a noção de que a superação de um modelo marcado pela dependência e pela exclusão social passaria pela aproximação dos sistemas de bem-estar social e de inovação nacional, valorizando, inclusive, o papel da pesquisa científica e tecnológica em modelos de desenvolvimento bem-sucedidos21.

Especificamente no campo da Saúde Coletiva, o resgate do conceito furtadiano parecia atender à necessidade de problematizar o contexto em que são observados, simultaneamente, os determinantes sociais e o progresso técnico da nação, propiciando a compreensão da saúde não como meio, mas como parte indissolúvel do desenvolvimento das nações, visto que o “desenvolvimento” contempla a inter-relação entre o tecido social e o econômico.

Nesse contexto, o desenvolvimento de um país estaria intimamente relacionado com as oportunidades disponibilizadas à população com vistas ao seu bem-estar, de modo que uma política de desenvolvimento nacional deveria ser capaz de abrir espaço para a realização das potencialidades culturais de sua população, conduzindo à homogeneização dessa sociedade4. Reafirma-se, assim, a necessidade não somente de subsidiar a indução da taxa de progresso técnico, mas de orientar as novas tecnologias para que sigam rumos socialmente desejáveis e sustentáveis.

Sobre esse aspecto, note-se que o desenvolvimento tecnológico não é neutro, dado que o mesmo influencia o padrão de sociedade ao mesmo tempo em que a orientação socioeconômica e as institucionalidades de uma determinada nação o influenciam22. A ação pública deveria promover trajetórias e inovações tecnológicas reorientadas para a busca do bem-estar coletivo, interrompendo a reprodução dos padrões de consumo das minorias23 estabelecidos na origem do nosso processo industrial e perpetuados até a atualidade, em detrimento do bem-estar e das condições de vida e de trabalho da grande maioria da população brasileira.

É sob esse referencial crítico que Gadelha5,24 desenvolve, no Brasil, o conceito de complexo econômico-industrial da saúde (CEIS), que procura captar, na perspectiva da saúde, sua dimensão sanitária e econômica. Buscou, desse modo, a construção um vetor de conexão entre a universalização do acesso à saúde, a qualidade das ações do SUS e a diminuição da dependência econômica em áreas estratégicas, recuperando a perspectiva também do desenvolvimento. Esse conceito, referente a um conjunto selecionado de atividades produtivas que mantêm relações intersetoriais de compra e venda de bens e serviços intensivos em conhecimentos5, faz alusão a uma base produtiva que articula tecnologias “portadoras de futuro” – biotecnologia, nanotecnologia, química fina, engenharia de precisão, novos materiais, tecnologia da informação e da comunicação, entre outras – imprescindíveis ao desenvolvimento nacional. Possui, assim, um aspecto triplo: cognitivo, analítico e político. Decorre, ademais, de uma abordagem sistêmica da produção de bens diversificados – como medicamentos, equipamentos, materiais variados e produtos para diagnóstico –, influenciados por políticas econômicas, relações geopolíticas e cadeias globais de valor, destinados às organizações de serviços em saúde – orientadas pelas necessidades de saúde coletiva e pelas políticas públicas – e condicionados por sua capacidade instalada25.

O contexto contemporâneo

No Brasil, a redemocratização e a qualificação da saúde como um direito universal trouxeram à tona a necessidade de enfrentar o desafio de equacionar a participação da saúde no padrão de desenvolvimento nacional, no qual a produção e a difusão tecnológica são extremamente assimétricas e, muitas vezes, dissociadas das necessidades locais do progresso técnico e do conhecimento20.

A tarefa exigiu – e ainda exige – o esforço de detalhar e compreender a estrutura e a dinâmica das organizações e instituições envolvidas no sistema de saúde, assim como de refletir sobre suas conexões com o desenvolvimento econômico e social, sua sustentabilidade e sua mobilização política. Exige também o estabelecimento de políticas que sejam capazes de propiciar uma agenda virtuosa voltada para conciliar a coexistência de interesses a princípio antagônicos. Implica, ademais, recuperar o papel da ciência no sentido de, com base no aprofundamento da percepção da realidade social, buscar superar montagens conceituais sem raiz em nossa história, a partir da ausculta e da tradução das forças sociais que seguem sem meios próprios de expressão no Brasil4.

Seguindo essa vertente, o entendimento sistêmico da saúde, considerando também os condicionantes econômicos e políticos e a base produtiva (CEIS) mobilizada por esse campo do conhecimento, incorpora duas acepções: “desenvolvimento” e “saúde”. A primeira deriva do conceito proposto por Furtado ao advogar que o desenvolvimento deve se correlacionar com um processo de homogeneização social acompanhado de um sistema produtivo eficiente, com suficiente autonomia tecnológica e adequado (na análise em questão) ao perfil epidemiológico da população, de modo que o acesso universal à saúde seja sustentável23,25. A segunda entende a saúde como articuladora de processos de produção de bens e serviços no âmbito de um conjunto de setores e instituições que interagem de forma sistêmica. Fica caracterizada, dessa forma, a politização do conceito, consequência da sua inserção na conformação de Estados de bem-estar em economias em desenvolvimento, além de uma concepção mais abrangente do entendimento da saúde.

A compreensão de que a democratização do acesso aos serviços no Brasil passa pela necessária autonomia da produção e pela orientação das trajetórias tecnológicas de inovação em saúde foi objeto de debate na 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Foram discutidos os problemas decorrentes dos interesses dicotômicos da saúde – caracterizados pelo risco de subjugação dos processos relacionados com a geração, o uso e a difusão de inovação em saúde aos interesses das grandes multinacionais e do capital financeiro –, capazes de causar efeitos deletérios para a maior parte da população26,27. À época, depois da longa crise instaurada a partir do início dos anos 1980, os avanços econômicos e sociais eram indubitáveis e podiam ser observados, por exemplo, nas baixas taxas de inflação, nas menores taxas de juros, na melhoria das condições de consumo de parcela significativa da população, na redução da vulnerabilidade externa via redução da dívida e expansão das reservas internacionais, nas tentativas de correção de rota na taxa de câmbio e nas políticas voltadas para o crescimento econômico, que sinalizavam perspectivas favoráveis diante da crise mundial. Ao mesmo tempo, entretanto, não havia sido superada a agenda do subdesenvolvimento brasileiro.

Nos anos 2000, é retomada a discussão sobre os rumos do desenvolvimento nacional e, nesse contexto, ressaltado o papel do campo da saúde, por ser intensivo em ciência e tecnologia e possuir potencial para adensar e direcionar o tecido produtivo de modo a compatibilizar a estrutura de oferta com a demanda social de saúde28. Trata-se de uma perspectiva que lograria superar o padrão de modernização/marginalização característico da gênese do desenvolvimento nacional.

Consistente com essa percepção e com uma orientação macropolítica de defesa dos direitos fundamentais, da importância do universalismo e da recuperação do mercado consumidor das massas, observa-se, especialmente a partir desse período, uma série de orientações e medidas que situam o campo da saúde – ou ao menos a sua base produtiva – no centro da agenda de desenvolvimento nacional. Tal percepção permitiu que a saúde fosse reconhecida como uma variável estratégica para o desenvolvimento sustentável e competitivo no Brasil, tanto no campo institucional quanto no científico.

No campo institucional, o lançamento da nova Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, em 2004, situou a saúde na perspectiva da agenda industrial e de desenvolvimento, o que foi posteriormente seguido por um conjunto de políticas e programas editados pelo Poder Executivo Federal (Mais Saúde, Pacti, PDP, Plano Brasil Maior, ENCTI, Procis, entre outros), atribuindo ao sistema produtivo da saúde status de área estratégia de governo. Além disso, o reconhecimento crescente atribuído a esse protagonismo se manifestou em ações e programas de fomento, que foram orientados, ao menos teoricamente, por uma abordagem intersetorial, e embasou o mapeamento e a adequação do marco regulatório, tudo isso tendo em vista o favorecimento da produção em saúde direcionada pelo que se entendia ser a demanda da população, com base no uso do poder de compra do Estado. A despeito de tais iniciativas, a fragilidade da base produtiva da saúde ainda é um desafio setorial e também para a agenda mais ampla de desenvolvimento nacional.

No campo científico, observa-se a busca crescente de adensamento do conhecimento sobre as várias dimensões que relacionam o campo da saúde ao do desenvolvimento. Em 2012, o 10º Congresso Nacional de Saúde Coletiva teve como tema as relações entre saúde, desenvolvimento e inovação. O debate proposto, “Saúde é desenvolvimento: ciência para cidadania”, parecia traduzir o entendimento dos desafios com que a reforma sanitária hoje se depara visando à efetivação dos princípios do SUS. Refletiu o reconhecimento, por parte da comunidade científica, da importância da inovação em saúde e das implicações de não haver uma base produtiva capaz de contemplar as necessidades da Saúde Coletiva. Apesar do esforço de conferir centralidade ao tema, poucos foram os trabalhos que abordaram o sistema de saúde contemplando no escopo de sua análise a importância da autonomia de sua base produtiva para a sustentabilidade do SUS e a orientação da política nacional de desenvolvimento. Isso revela um desafio adicional, o de se avançar nessa discussão no interior do campo da Saúde Coletiva.

A importância de aprofundar o entendimento e a compreensão sobre os aspectos inerentes à relação entre o campo da saúde e o do desenvolvimento resta claramente evidenciada diante da constatação da inter-relação e da incidência de elementos políticos, institucionais, sociais e econômicos no direcionamento das trajetórias nacionais de inovação e da dinâmica global de investimentos, e nos avanços ainda tímidos na formação de conhecimento científico.

Considerações finais

Crescentemente se reconhece que as desigualdades sociais e econômicas da população implicam a iniquidade de acesso às condições mínimas para uma vida saudável, ao mesmo tempo que a transformação da demanda por assistência em demanda por saúde é um processo histórico, social e cultural brasileiro.

O despertar do interesse de economistas pela saúde vincula-se tanto ao seu entendimento como um bem, uma indústria, um mercado, quanto aos seus efeitos fiscais e à necessidade de equilíbrio das contas públicas. É importante distinguir esse campo da economia da saúde daquele, tratado neste artigo, da reflexão sobre saúde e desenvolvimento, que problematiza o fato de que grande parte da população mundial vivia (e vive) em condições de extrema pobreza, situação cujo enfrentamento demanda a adoção de políticas específicas para reverter esse quadro e melhorar o nível de bem-estar econômico29.

No Brasil, duas vertentes de interrogação emergiram da reconexão entre saúde e desenvolvimento. A primeira era referente à análise dos problemas do desenvolvimento econômico nacional ainda sob as lentes do “desenvolvimentismo”, e a polêmica aqui gravitou em torno da possibilidade da “retomada do desenvolvimento”, do “novo desenvolvimentismo”, ou da necessidade de afirmar um padrão de desenvolvimento para as mudanças que ocorreram no mundo e no Brasil na década de 1990. A segunda correspondia à avaliação dos investimentos, sobretudo os de origem pública, destinados à saúde mediante seu reconhecimento como um direito do cidadão e um dever do Estado; as preocupações aqui identificadas eram direcionadas ao potencial e aos limites das aplicações de recursos no setor, considerando-se as prioridades sanitárias.

Já o ressurgimento do tema “saúde e desenvolvimento” na agenda pública foi caracterizado pelo reconhecimento de que investimentos na saúde podem, além de melhorar a qualidade de vida da população, atribuir a esse setor um padrão de crescimento superior ao dos demais, visto ser um segmento altamente inovador e empregador, que incentiva ainda mais investimentos. Partindo do pressuposto de que “Estado e o Capital são inseparáveis”, estudiosos da Saúde Coletiva, em conjunto com outros pensadores, se dispuserem a avaliar qual seria o Estado a ser reconstruído e o caráter de suas relações com o capitalismo.

Sob o prisma do desenvolvimento, recorreu-se à contribuição de Celso Furtado, que diagnosticou o subdesenvolvimento do Brasil como um problema estrutural, caracterizado pela posição que ocupamos no processo capitalista mundial, ou seja, pela subordinação e vinculação à expansão de países desenvolvidos, assim como pela reprodução de padrões de consumo e produção contextualizados em outras culturas e propiciados por estágio de desenvolvimento distinto do brasileiro.

De fato, a superação das condições de subdesenvolvimento demanda a promoção de transformações estruturais, a afirmação cultural e uma construção nacional soberana do desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma tarefa complexa, que exige a democratização e a participação popular nos processos decisórios definidores das políticas econômicas. Dessa forma, lutar por um futuro diferente, pensando e agindo a partir da “matriz furtadiana”, implica a necessária compreensão do contexto histórico atual e na não repetição de relações de dependência ocorridas no passado.

Sob o prisma da saúde, questiona-se o crescimento econômico que não conduz à superação do subdesenvolvimento. Defende-se uma trajetória de desenvolvimento que tenha capacidade de propiciar, ao mesmo tempo, o progresso técnico e o aprofundamento da democratização, compreendendo o enfrentamento das condições nada igualitárias das diversas regiões do país. Um planejamento inteligente, democrático, e uma adequada atuação estatal, assim como destacado por Furtado, demandam o combate das desigualdades, das iniquidades e do desemprego, ou seja, ampliar o papel do Estado com a finalidade de reorientar a relação estabelecida entre Estado e Capital, inclusive para questionar o capitalismo. Ressaltando-se a importância, por ele atribuída, de contrastar a lógica dos fins (que se refere à nossa sociedade, à nossa cultura) à dos meios (que se refere à razão instrumental inerente exclusivamente à acumulação econômica), e a relevância de serem considerados valores substantivos que exprimem o interesse da coletividade em seu conjunto.

Assim, uma articulação virtuosa entre saúde e desenvolvimento demandaria o estabelecimento de políticas capazes de conciliar a coexistência harmoniosa dos antagonismos existentes entre os interesses do capitalismo e do bem-estar social.

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