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Saúde e educação pelo trabalho: reflexões acerca do PET-Saúde como proposta de formação para o Sistema Único de Saúde

Saúde e educação pelo trabalho: reflexões acerca do PET-Saúde como proposta de formação para o Sistema Único de Saúde

Autores:

André Luís Façanha da Silva,
Marcos Aguiar Ribeiro,
Geilson Mendes de Paiva,
Cibelly Aliny Siqueira Lima Freitas,
Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.19 supl.1 Botucatu 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0987

ABSTRACT

The education of professionals for the Brazilian Health System (SUS) must be anchored in the concepts of health, education, and work that pointed to organic changes in the health sector. We present a theoretical-practical reflection about these concepts that are influences on the proposed PET-Health as an educational tool for labor and educational strategy for the SUS. This reflection is the result of conversation circles between tutors, monitors, preceptors, and coordinators of the Pro/PET-Health, where we identified the need for a theoretical-conceptual expansion; this would help define the meaning of the everyday PET-Health activities. Thereby, deeper discussions as well as to dive into in the health, education and labor references can contribute to changing the beliefs about all tutorial network members about the relevance of PET-Health in education and daily work.

Key words: National health programs; Brazilian Health System; Health education; Teaching care integration services

RESUMEN

La formación de profesionales para el Sistema Brasileño de Salud (SUS) debe anclarse en las concepciones de salud, educación y trabajo que apuntan a los cambios orgánicos en el sector salud. En este sentido, se presenta una reflexión teórica-práctica sobre los conceptos de salud, educación y trabajo que influyen en el PET-Salud como herramienta de educación en el trabajo y estrategia que induce la formación para el SUS. Esta reflexión es resultado de círculos de conversación entre tutores, monitores, preceptores y coordinadores del Pro-PET-Salud, que identificó la necesidad de una profundidad teórica-conceptual, con el fin de concebir un sentido de la práctica del PET-Salud. De esta manera, se cree que profundizar las discusiones y las referencias de salud, educación y trabajo contribuyen para la expansión de la mirada de miembros de la red tutorial sobre la relevancia del PET-Salud para la formación y el trabajo diario.

Palabras-clave: Programas nacionales de salud; Sistema Brasileño de Salud; Educación em salud; Servicios de integración docente asistencial

A formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde (SUS) deve se ancorar em concepções de saúde, educação e trabalho que apontem para mudanças orgânicas nos trabalhadores, no setor saúde e, consequentemente, na prática profissional e na atenção aos usuários. Desse modo, a educação pelo trabalho possibilita a vivência na estrutura organizativa da saúde pública e comunitária com vistas à saúde coletiva.

Nesse sentido, verifica-se a relevância de se reorientarem as relações entre profissionais da saúde, instituições de ensino e comunidade, e se redefinirem processos formativos para atuação no setor saúde, de forma a garantir o atendimento integral e humanizado à população1. Infere-se, ainda, a necessidade de maior integração ensino-serviço-comunidade, de forma a transformar os cenários de aprendizagem e desenvolvimento, e superar as concepções tradicionais e bancárias de educação. Nessa perspectiva, estão os projetos de reorientação da formação, desenvolvidos como processos de formação para o SUS.

Dessa forma, foi instituído o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) pela Portaria Interministerial MS/MEC nº 1.802, de 26 de agosto de 2008, como uma proposta do Ministério da Saúde – por intermédio das Secretarias de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e Secretaria de Atenção à Saúde, e do Ministério da Educação – de fomentar a formação de grupos de aprendizagem tutorial em áreas estratégicas do SUS, sendo um instrumento para a qualificação em serviço dos preceptores/profissionais da saúde, bem como de iniciação ao trabalho e vivências dirigidas aos estudantes dos cursos de graduação na área da saúde2.

Nesse contexto, o PET-Saúde tem, como um dos pressupostos, a educação pelo trabalho baseada na integração ensino-serviço-comunidade, e constitui uma das ações intersetoriais direcionadas para o fortalecimento do SUS, de acordo com seus princípios e necessidades.

A partir de então, infere-se in loco a necessidade de um aprofundamento teórico-conceitual, sendo esta disparada a partir de rodas de conversa entre preceptores, monitores, tutores e coordenadores do PET-Saúde. Assim, na dinâmica local do PET-Saúde, a roda constitui-se como um espaço dialógico e participativo, que se propõe a fortalecer a autonomia do grupo tutorial, por meio da solidariedade, integração e compartilhamento de experiências e aprendizados.

Influenciadas pela experiência prática de cogestão de coletivos no âmbito da Estratégia Saúde da Família do município de Sobral, Ceará, como também nos referenciais de Campos, as rodas de conversa do PET-Saúde apresentam as características: administrativa, pois constituem um espaço democrático para a discussão das rotinas do grupo tutorial, bem como para a definição e redefinição coletivas das atividades; pedagógica, uma vez que objetivam o estudo e a aprendizagem significativa; terapêutica, já que permitem o desenvolvimento das relações interpessoais do grupo; e política, visto que a argumentação substitui as hierarquias e os papéis sociais, garantindo a todos os integrantes do grupo a possibilidade de construção e decisão3.

Assim, as rodas do PET-Saúde apresentam-se como espaços potentes para o diálogo e para a construção coletiva, de forma a instigarem tensionamentos e considerações a partir do cotidiano das atividades do programa. Neste ínterim, apresenta-se uma reflexão teórica acerca dos conceitos sobre saúde, educação e trabalho que influenciam a proposta do PET-Saúde como tecnologia de educação pelo trabalho e estratégia indutora da formação de trabalhadores da saúde para o SUS.

Interface saúde, educação e trabalho: desafios no processo de mudança no exercício profissional

A relação trabalho-educação-saúde perpassa por enfrentamentos da formação baseada na aprendizagem contemplativa-abstrata, no ensino positivista-mecanicista e, ainda, na concepção do trabalho como ação objetivista-determinista. O primeiro compreende o ensino como ato puramente teórico e informativo, que conserva a percepção de que a mente humana funciona como um receptáculo vazio que deve ser preenchido com conhecimento transmitido – esta concepção desfavorece o conhecimento prévio construído perante toda uma vida de aprendizagem. O segundo valoriza o experimentalismo e a ação prática como relação causa-efeito, ou seja, a formação com base no reproducionismo prático provoca maior produção técnica com o intuito produtivista; esta corrente propõe a ênfase nas tarefas mecanicistas, objetivando o aumento da eficiência ao nível operacional sem valorizar o homem enquanto ser, mas como máquina. Por último, o terceiro consiste na concepção de que a relação trabalho-formação se restringe ao potencial transformador do homem sobre o mundo material, mas que, enquanto ação humana, é reflexiva, ou seja, dá sentido ao homem enquanto sujeito e objeto de sua própria ação. Portanto, o homem transforma e dá-se sentido enquanto homem à medida que transforma o mundo material. Essa percepção não valoriza a concepção imaterial do trabalho, ou seja, esquece-se de ressaltar traços como: humanização, autonomia e independência; assim, o processo formativo que se baseia nesta corrente de aprendizagem hipervaloriza a educação para trabalho material, físico, palpável e técnico, em detrimento ao trabalho humanizado, afetivo, espiritual e ético.

A reflexão do trabalho em saúde enquanto trabalho essencialmente material contribui para o fortalecimento da crise da relação trabalho-educação-saúde, uma vez que é hegemônico o processo formativo que percebe a saúde sob a lógica biomédica ancorada no corpo biológico, curativista e com reforço à medicalização dos problemas de saúde. Por outro lado, o processo formativo baseado no trabalho em saúde como trabalho essencialmente imaterial, constrói uma percepção da saúde numa perspectiva ampliada voltada para a visão do corpo holístico, humanizado, com: a sensibilidade ao conjunto de determinantes sociais e culturais, a afetividade das relações de vínculos da formação-comunidade-família-pessoa, e a valorização dos direitos sociais e autonomia.

Dessa forma, para tencionar o paradigma da formação para o trabalho em saúde material e imaterial, devem-se fomentar discussões sobre os modelos de saúde, uma vez que o sistema formativo está adaptado para atender as evoluções das necessidades de saúde de uma dada sociedade.

Nessa perspectiva, ao considerar o processo histórico-dialético que perpassa as correntes ideológico-conceituais da saúde e suas relações com o processo de formação, a concepção biomédica tem suas raízes no campo do pensamento moderno, constituída na revolução científica ocorrida no século XVI, que coloca o princípio da razão pura como a única forma de organizar a experiência humana. Esse pensamento demarca o campo da saúde a partir dos seus efeitos sobre o pensamento médico, que passa a compreender o corpo humano como máquina e a doença como algo que precisa ser corrigido e ajustado por meio de procedimentos centrados no biológico4. Ainda se propõe a reduzir o corpo a um conjunto de órgãos, ou seja, a saúde seria a harmonia destes micro-organismos em condições satisfatórias para o desempenho das atividades vitais e do cotidiano.

Essa lógica afetou e direcionou a mudança na formação em saúde, influenciando a organização pedagógica e curricular para uma aprendizagem centrada no ensino e pesquisa, com práticas centradas em laboratórios e hospitais e com reforço da especialização5. Assim, essa ideia reforçou o processo formativo em saúde baseado no trabalho material, corroborando para um reducionismo no campo da saúde, reforçando os cuidados na cura ou no tratamento nas estruturas fisiopatológicas ou anatomoclínicas biologicamente determinadas, reforçando a medicalização dos problemas de saúde por meio de práticas anti-integrativas, fragmentadas e profissional centrado. Nessa concepção, o profissional de saúde, em sua prática, reduz o sujeito à doença e dá assistência com enfoque na queixa e conduta.

Por outro lado, atenta-se para um processo formativo em saúde que tome como base a corrente ideológico-conceitual que reflete a saúde como um bem de construção coletiva; que permite a autonomia dos sujeitos sob o processo de produção de saúde-doença-cuidado; que valoriza as subjetividades nos processos do cuidado em saúde; que destaca os determinantes sociais, culturais e espirituais sobre as condições de vida e de saúde das pessoas, e reconhece a influência dos fatores socioeconômicos, políticos e ambientais na organização dos sistemas e serviços de saúde.

Essa lógica reflete a necessidade de mudança no paradigma do processo formativo no trabalho essencialmente material, para o processo formativo no trabalho informal, que põe em pauta o processo de produção da subjetividade, se constitui ‘fora’ da relação de capital, no cerne dos processos constitutivos da intelectualidade de massa, isto é, na subjetivação do trabalho6.

Dessa forma, a produção do trabalho imaterial assemelha-se à produção de saúde, pois ambos têm como finalidade a produção de bens não materiais, o que se diferencia do trabalho fabril. O trabalho no campo da saúde pública, para materialização do conceito ampliado de saúde, exige do trabalhador uma postura ética, crítica e política em defesa dos princípios do SUS, visando à superação do trabalho morto para o trabalho vivo em ato, com uso racional de tecnologias em saúde7.

Nesse sentido, é na relação com o outro – que pode ser o profissional, o gestor, o docente, o discente e o usuário dos serviços de saúde na construção de produção de cuidados – que conformam-se os espaços produtores de encontros permeados por subjetividades, abordagens e dimensões pedagógicas pelos atores envolvidos. Assim, Caballero e Silva8 defendem que o trabalho, a educação e o cuidado em saúde são desenhos relacionais, e a interação destes campos e dos atores produz constantemente ressignificação e aprendizagem dos processos vividos. Para contribuir com essa dimensão, Barros e Barros reforçam que a formação em situação, tal como o trabalho situado, nos convoca a habilitar este plano de experimentação, plano onde pensar, fazer, aprender, trabalhar, viver não se dissociam9. Dessa forma, não existe separação real entre trabalho em situação, em ato, e os processos de formação pelo trabalho, ou seja, durante o processo de trabalho em saúde ou educação pelo trabalho, institucionalizado ou não, existe uma produção pedagógica10.

Neste ínterim, as discussões acerca dos modelos de saúde e sua relação com a formação revelam a busca pela articulação entre saúde, educação e trabalho. Parreira e Júnior11 destacam dois paradigmas de articulação: o técnico e o reflexivo, apontados como base para se compreenderem suas interfaces. Para a saúde, o paradigma técnico se configura na lógica biomédica ancorada no corpo biológico; e o reflexivo aponta para um novo modo de pensar e agir sobre saúde e seus determinantes, pois exige dos estudantes e profissionais uma percepção da saúde numa perspectiva ampliada, bem como uma postura mais crítica e propositiva frente às necessidades de saúde.

Em relação à educação, o paradigma técnico se ancora na educação bancária, diferente da educação enquanto práxis libertadora, que remete ao pensar e agir criticamente. E sobre o trabalho morto, o paradigma técnico se configura quando transforma o cuidar apenas em procedimento focado na doença, e o trabalho vivo remete ao paradigma reflexivo, ao passo que as relações são permeadas pelo encontro de subjetividades e pela valorização de tecnologias leves.

Dessa forma, é com a tomada de consciência que a inter-relação saúde e educação a partir do trabalho em ato podem produzir aprendizados significativos e novos saberes, de forma a romperem os distanciamentos dos processos formativos dos acontecimentos do mundo e superarem a lógica da educação enquanto transmissão de conhecimentos. Assim, a formação para o SUS na perspectiva da educação pelo trabalho configura-se como um constructo pedagógico e ideológico, capaz de impulsionar a aproximação e integração ensino-serviço, o que contribui para a proposta pedagógica de transformação do processo de formação em saúde12,13.

Nesse sentido, faz-se necessário investir em processos e pessoas que possibilitem a construção de abertura para uma práxis em saúde que acredita na potência do cotidiano dos serviços de saúde enquanto instâncias para ação-reflexão-ação, que buscam construir uma formação que prima pelo refletir, pensar e agir não para, e sim com o outro. A partir de então, observam-se diversificadas iniciativas que buscam superar os desafios relativos à formação em saúde, dentre elas: o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), que propõe mudanças no ensino e na formação de profissionais, tendo o cotidiano do trabalho como eixo de aprendizado14.

A política de educação pelo trabalho no SUS e o PET-Saúde

Esse debate sobre as conexões entre saúde, educação e trabalho no setor saúde tem mobilizado pessoas, instituições e experiências brasileiras para repensar a formação e atuação profissional na produção de cuidado em saúde. Essa preocupação é demarcada na Constituição Federal, inciso III, artigo 200, que se configura como um marco, por meio do termo “[...] ordenamento da formação de recursos humanos na área da saúde”15(p 41), sendo este da competência do SUS. Esse trecho da Constituição faz uma diferença, quando explicita que a formação desde a graduação e durante a atuação profissional no SUS deve se ancorar nos princípios, diretrizes e nas necessidades de saúde dos usuários e no próprio setor.

Diante deste avanço constitucional, reaparece o grande desafio de criar condições necessárias para a formação de trabalhadores para o SUS, de forma a articular o conceito ampliado de saúde, a educação/formação e o cotidiano do trabalho nos serviços de saúde. Neste contexto, em 2003, foi proposta a Política de Formação e Desenvolvimento de Trabalhadores para o SUS: Caminhos para a Educação Permanente em Saúde16. A construção desta política de formação e desenvolvimento profissional parte da reflexão sobre a limitação sobre as práticas de formação e de capacitação dos profissionais, bem como do isolamento profissional e a limitação da sua prática técnica para a implementação da política pública do SUS, que visa à saúde como um direito, ancorada no conceito ampliado da mesma, com atenção integral e acesso universal.

A educação permanente é o conceito pedagógico, no setor da saúde, para efetuar relações orgânicas entre ensino, serviço, gestão e controle social. Ceccim e Feurwerker17 consideram que a política de educação em saúde deve ser capaz de impactar: noensino, como importante instrumento para o desenvolvimento técnico profissional e da alteridade com os usuários; na gestão setorial, enquanto política pública governamental; naatenção, no ordenamento e na articulação da rede na prestação de serviços de qualidade, pautados na integralidade e humanização; e nocontrole social, para o desenvolvimento da autonomia das pessoas e a democratização da condução e gerenciamento da política de saúde.

Assim, o conceito pedagógico da Política de Educação Permanente em Saúde (EPS), proposta pelo Ministério da Saúde, nasce no campo da educação na década de 1960, e tem como marco a orientação da Organização Pan-americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde, na década de 1980, que propõem a reorientação dos processos de capacitação de trabalhadores da saúde, de forma a tomar o cotidiano do trabalho como eixo central da aprendizagem18.

Em relação à dimensão educativa, a EPS deve ser pautada na concepção pedagógica transformadora e emancipatória de Paulo Freire19 – aprendizagem significativa e problematizadora, na busca da transformação das práxis de saúde, reconhecendo a complexidade e a potência educativa do próprio trabalho, concebido não apenas no seu sentido instrumental, mas, também, como espaço de problematização, diálogo e construção de consensos para melhoria da qualidade da atenção à saúde17,20,21.

A partir de então, o processo de trabalho deverá buscar romper com a lógica de formações fragmentadas e descontextualizadas, de forma a minimizar os distanciamentos e integrar ensino, serviço, gestão e controle social. A ideia é que, independentemente de onde estejam institucionalizados os processos formativos, faz-se necessário criar estratégias pedagógicas para alcançar o quadrilátero da EPS. Assim, acredita-se que, nessa perspectiva teórica e metodológica, os sujeitos em formação terão uma compreensão ampliada da complexidade do SUS e abertura para poder intervir, buscando a transformação dos sujeitos e, consequentemente, suas práticas.

A EPS constitui-se como estratégia fundante às transformações do trabalho no setor saúde para que venha a ser lugar para uma práxis crítica, reflexiva, propositiva, compromissada, tecnicamente competente, despertando os profissionais para o desenvolvimento de uma abordagem congruente com a necessidade de saúde da população, que estimule os profissionais a repensarem cotidianamente sobre seu fazer e transformar a realidade com vista à promoção da qualidade de vida das pessoas. Neste contexto, a política de EPS tenciona para tornar a rede de serviços de saúde uma complexa rede de ensino-aprendizagem no exercício do trabalho8,21.

Nessa perspectiva, o PET-Saúde constitui uma das iniciativas indutoras da formação para o SUS a partir da vinculação das instituições de Ensino Superior aos serviços de saúde e da aproximação dos estudantes dos cursos de graduação da saúde, por meio da iniciação ao trabalho, à realidade do SUS. Configura-se, também, como uma ferramenta capaz de ressignificar os processos de trabalho e rotina dos serviços a partir da inserção dos profissionais do serviço (preceptores) nos grupos de aprendizagem tutorial.

Dessa forma, o PET-Saúde tem como objetivo possibilitar que o Ministério da Saúde cumpra seu papel constitucional de ordenador da formação dos profissionais da saúde, por meio da indução e do apoio ao desenvolvimento dos processos formativos necessários em todo o país, de acordo com características sociais e regionais; como, também, estimular a formação de profissionais e docentes de elevada qualificação técnica, científica, tecnológica e acadêmica, com atuação profissional pautada pelo espírito crítico, pela cidadania e pela função social da Educação Superior, orientados pelo princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, preconizado pelo Ministério da Educação, a partir do desenvolvimento de atividades acadêmicas em padrões de qualidade de excelência, mediante grupos de aprendizagem tutorial de natureza coletiva e interdisciplinar, que fomentem a articulação entre ensino e serviço na área da saúde. Nesse sentido, colabora ao contribuir para a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação da área da saúde, e para a formação de profissionais de saúde com perfil apropriado às necessidades e às políticas de saúde do País, sensíveis ao adequado enfrentamento das diferentes realidades de vida e de saúde da população brasileira22.

Neste ínterim, os sujeitos envolvidos no PET-Saúde são estudantes, professores e profissionais dos serviços de saúde, designados, respectivamente, de monitores, tutores e preceptores. No que concerne à monitoria estudantil, esta prevê o desenvolvimento de vivências em serviço e atividades de pesquisa, sob orientação do tutor e do preceptor, visando à produção e à disseminação de conhecimento relevante na área da saúde e às atividades de iniciação ao trabalho22.

A monitoria estudantil representa a possibilidade de integração com acadêmicos de outros cursos, de forma a constituir equipes de caráter multiprofissional. Assim, a interação entre estudantes de diferentes cursos de graduação é fundamental para um processo de aprendizagem e desenvolvimento de caráter interprofissional. Ou seja, os estudantes precisam compartilhar de um mesmo processo de aprendizagem com diálogo efetivo entre eles, durante um período de tempo, para que se possam desenvolver as competências necessárias ao trabalho em equipe e para a prática colaborativa interprofissional23.

Além disso, a experiência do PET-Saúde permite a inserção efetiva dos estudantes nos espaços/cenários de trabalho do SUS, com destaque para a Estratégia Saúde da Família, o que permite a interação com os serviços e outros profissionais da saúde. Nesse sentido, o PET-Saúde repercute na ampliação do olhar do estudante acerca do sistema de saúde e dos processos de trabalho, de forma a instigar uma visão crítica a respeito dos serviços de saúde e de sua formação.

Assim, as vivências e experiência de integração ao serviço pela proposta da iniciação pelo trabalho na saúde, proporcionam tensionamentos, reflexões e críticas acerca da formação do estudante. A partir de então, o monitor torna-se agente multiplicador das experiências, tornando-se um sujeito fundamental no processo de transformação da sua formação. Nesse contexto, verifica-se a relevância da articulação do PET-Saúde com outras propostas de indução da formação para o SUS e sociedade, de forma a potencializar as vivências do PET-Saúde e contribuir para o desenvolvimento profissional e pessoal do estudante. Dentre algumas propostas, destacam-se: a inserção no movimento estudantil, a participação no Projeto de Vivências e Estágios da Realidade do SUS (VER-SUS), aproximação e participação em movimentos sociais e em espaços de participação popular e controle social, tais como os conselhos locais de saúde e o conselho municipal de saúde.

Todavia, identifica-se in loco uma limitação do PET-Saúde no que se refere à articulação e a aproximação dos conselhos de saúde, seja em atividades dos grupos tutoriais ou na participação das comissões de gestão e acompanhamento local do Pró-Saúde e Pet-Saúde. Nessa perspectiva, verifica-se a necessidade de se criarem estratégias de aproximação do controle social ao PET-Saúde, de forma a conceder às atividades dos grupos tutoriais um caráter mais ampliado de atenção à saúde, usuário centrado e que supere a concepção e a prática limitada de projetos centrados em doenças.

No que se refere à preceptoria, esta constitui uma função de supervisão por área específica de atuação ou de especialidade profissional, dirigida aos profissionais de saúde22. O preceptor configura-se como um docente em serviço, que atrela o monitor estudante à sua prática profissional, o que contribui para a formação de profissionais de saúde para o SUS.

No entanto, verificam-se as fragilidades da preceptoria no PET-Saúde, uma vez que muitos dos profissionais inseridos no programa não possuem formação docente para o acompanhamento dos monitores no serviço. Além disso, os preceptores também manifestam que não se sentem devidamente qualificados para se colocarem no papel de educadores. Dessa forma, apesar das concepções de sistemas de saúde-escola, onde os cenários do SUS são também espaços de formação compartilhados com os cursos de graduação em saúde, os preceptores afirmam não acontecerem preparações específicas para qualificá-los a receber e orientar os alunos em serviço24.

Nesse contexto, ao se considerar o preceptor como docente, infere-se a necessidade de os preceptores possuírem formação docente para as ações de ensino, entendendo essa formação como contribuição das universidades, pois se sabe que o processo de formação em saúde, de forma geral, ainda privilegia mais as ações de assistência propriamente ditas25.

Todavia, apesar das limitações, a preceptoria em serviço propiciada pelo PET-Saúde constitui um potente agente transformador das dinâmicas de trabalho, onde o grupo tutorial se insere. Nesse sentido, os preceptores, bem como os outros profissionais da equipe que indiretamente participam das atividades do PET-Saúde, são convidados a (re)pensarem e a (re)significarem suas práticas em saúde, na perspectiva da produção de uma dinâmica de atenção mais articulada com o ensino e a pesquisa, e coerente com as necessidades em saúde das comunidades.

Em relação à tutoria, esta tem função de supervisão docente-assistencial, exercida em campo, dirigida aos profissionais da saúde com vínculo universitário, que exerçam papel de orientadores de referência para os profissionais e/ou estudantes da área da saúde22. Ademais, constitui um facilitador das atividades do PET-Saúde, uma vez que é responsável pela mediação e articulação de discentes, professores, profissionais da saúde e gestores, no planejamento e implementação das atividades.

Contudo, enfatiza-se a necessidade de o tutor orientar a dinâmica de trabalho do PET-Saúde, de forma a conduzir, de maneira horizontal, as relações e peculiaridades dos monitores estudantes e dos preceptores. Assim, infere-se a relevância da construção de um grupo tutorial onde o planejamento e as decisões aconteçam de forma dialógica e participativa, o que contribui para a ampliação das concepções de trabalho em equipe.

Neste ínterim, a participação no PET-Saúde constitui um potente espaço que transforma a formação do monitor estudante, bem como potencializa o trabalho dos preceptores em serviço e (re)significa a prática docente do tutor. Dessa forma, a integração ensino-serviço-comunidade, propiciada pela educação pelo trabalho, configura uma estratégia de formação diferenciada e relevante para o SUS, uma vez que supera a concepção bancária de educação, extrapolando os muros da universidade a partir da imersão no mundo do trabalho em saúde.

Assim, o espaço do serviço torna-se o locus privilegiado para a aprendizagem a partir da desconstrução e construção de novos conhecimentos, processos de trabalho e prática26. Nesse sentido, o PET-Saúde produz tensionamento que alimentam a necessidade de se dispararem processos de educação permanente para os trabalhadores do SUS com vistas a contribuir com a reorientação do modelo de atenção à saúde, bem como reflexões acerca da formação em saúde.

Considerações finais

Esta reflexão é fruto de rodas de conversa entre preceptores, monitores, tutores e coordenadores do Pró/PET-Saúde, onde identificou-se a necessidade de um aprofundamento teórico conceitual, de forma a conceber significado à pratica cotidiana de atividades do PET-Saúde.

Nesse sentido, acredita-se que aprofundar as discussões, bem como mergulhar nos referenciais de saúde, educação e trabalho contribuem para a ampliação do olhar de todos os integrantes da rede tutorial acerca da relevância do PET-Saúde para a formação e para o cotidiano do trabalho em saúde.

Dessa forma, vale salientar a necessidade de se superar o paradigma técnico da articulação saúde, educação e trabalho, de forma a romper com a concepção limitada de projetos PET-Saúde centrados na doença, ancorados na educação bancária; e, a partir de então, conceder um paradigma crítico, reflexivo e propositivo às vivências e atividades do PET-Saúde, o que promoverá a (re)significação nos modos de pensar, sentir e agir sobre a saúde e seus determinantes.

Nesse contexto, incorporar uma práxis libertadora de educação, baseada na horizontalidade, constitui ferramenta promotora de autonomia, criatividade e compromisso com o SUS, e, consequentemente, com a formação e com o PET-Saúde. Assim, as discussões e reflexões em roda e aprofundamento teórico constituem ferramentas necessárias ao processo reflexivo de nivelamento conceitual. Neste ínterim, inferem-se as possibilidades de potencialização do PET-Saúde a partir da reflexão permanente acerca da prática, do programa e da participação como monitor, preceptor, tutor e coordenador.

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