versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.4 Rio de Janeiro abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00031214
The current configuration of indigenous peoples’ health in Brazil results from a complex historical trajectory, responsible for major delays for this population segment in the countrywide social advances seen in recent decades, particularly in the fields of health, education, housing, and sanitation. The main focus of this contribution is to review synthetically a selection of the main results of the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition, conducted in the period 2008-2009, which visited 113 villages across the Brazil and interviewed 6,692 women and 6,128 children. Among the results, emphasis is given to the observed poor sanitation conditions in villages, high prevalence of chronic malnutrition, anemia, diarrhea, and acute respiratory infections in children, and the emergence of non-communicable chronic diseases in women. The scenario depicted by this survey requires urgent critical review of indigenous health policy in order to better meet the health needs of Brazil’s indigenous population.
Key words: Indigenous Population; Ethnic Groups; Health Policy; Health of Indigenous Peoples
La configuración actual de la salud de los pueblos indígenas de Brasil es resultado de una compleja trayectoria histórica, responsable de atrasos importantes –sufridos por los indígenas–, en relación a los avances sociales observados en el país durante las últimas décadas, sobre todo en los campos de salud, educación, vivienda y saneamiento. El centro principal de esta contribución es presentar sintéticamente una selección de los principales resultados de la Encuesta nacional de salud y nutrición indígena, realizada entre 2008-2009, compuesta por una muestra de 113 aldeas indígenas en todo el país, habiendo entrevistado a 6.692 mujeres y 6.128 niños. Entre los resultados, llaman la atención las condiciones de saneamiento deficientes observadas en la población indígena, la alta prevalencia de la desnutrición crónica, anemia, diarrea e infecciones respiratorias agudas en los niños y la aparición de enfermedades crónicas no transmisibles en mujeres. El escenario descrito en la encuesta requiere una urgente revisión crítica de la política de salud para los indígenas, con el fin de satisfacer mejor las necesidades de salud del segmento de población indígena de la población brasileña.
Palabras-clave: Población Indígena; Grupos Étnicos; Política de Salud; Salud de Poblaciones Indígenas
A configuração atual da saúde dos povos indígenas no Brasil resulta de complexa trajetória histórica marcada por conflitos fundiários associados à expansão das fronteiras demográficas nacionais, degradação ambiental e, em muitos casos, omissão por parte do Estado. Para os povos indígenas, isso resulta em grande atraso em relação aos avanços sociais verificados no país ao longo das últimas décadas, particularmente nos campos da saúde, educação, habitação e saneamento. Estudos realizados em diversas etnias a partir dos anos de 1990 têm destacado o contexto das desigualdades sociais em saúde que marcam a fronteira entre ser indígena e não indígena no Brasil 1,2. Em outras palavras, ser indígena no país implica maior chance de não completar o primeiro ano de vida, sofrer de desnutrição e anemia durante o período de crescimento, conviver com elevada carga de doenças infecciosas e parasitárias e estar exposto a rápido processo de transição nutricional, responsável pela emergência de agravos como obesidade, hipertensão arterial e diabetes mellitus, constatados em número crescente de comunidades 3,4,5.
É evidente que, salvo alguns poucos estudos que debruçaram sobre a análise de dados existentes em grandes bancos como o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (SIVEP), Censo Demográfico Decenal ou mesmo o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), os estudos de comunidade disponíveis, por mais que relevantes em si, não permitem a extrapolação de seus resultados para contextos étnicos maiores ou macrorregionais. Por sua vez, os esforços no sentido de explorar as bases de informação existentes também esbarram em limitações importantes, com destaque para a dificuldade de se identificar etnias específicas, aldeias ou mesmo terras indígenas (SIM e SIVEP, por exemplo, operam com o conceito de “indígena” apenas como categoria de raça ou cor, e mesmo o censo demográfico só permite a identificação de etnia a partir do censo nacional realizado em 2010) 6,7,8.
A realização do Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena (daqui para frente referido simplesmente como Inquérito Nacional) constitui um importante marco da saúde coletiva brasileira por ser a primeira iniciativa do gênero que almejou uma amostra representativa da população indígena no país. É importante lembrar que o Inquérito Nacional acontece com décadas de atraso em relação ao contingente não indígena da população brasileira, visto que importantes pesquisas de abrangência nacional ou regional/estadual, com foco em diferentes aspectos relacionados à saúde, nutrição e alimentação, são realizadas no Brasil desde a década de 1970, porém não incluem os povos indígenas 9,10.
Especificamente, o Inquérito Nacional foi realizado entre 2008-2009 e teve por objetivo caracterizar o estado nutricional de mulheres entre 14 e 49 anos de idade e crianças menores de cinco, com base em uma amostra probabilística representativa da população indígena residente em aldeias de quatro macrorregiões do país, a saber: Norte, Nordeste, Centro-oeste e Sul/Sudeste. Ao final, foram visitadas 113 aldeias (91,9% do planejado) e entrevistadas 6.692 mulheres e 6.128 crianças 11. No presente, os dados coligidos durante o Inquérito Nacional estão sendo analisados e uma série de artigos enfocando os resultados mais relevantes está sendo publicada 11,12,13.
Como poderia ser antecipado, o Inquérito Nacional apontou não apenas para a existência de importantes diferenças inter-regionais entre as aldeias das quatro macrorregiões estudadas, mas em um plano mais amplo, para grandes iniquidades em saúde entre o Brasil indígena e não indígena. Somente 19% dos domicílios indígenas em todo o país dispõem de banheiro dentro de casa; 30,6% dos respondentes indicaram defecar fora de casa, no “mato”; e 50% das latrinas estão localizadas fora de casa 11. Na Região Norte, apenas 0,6% dos domicílios indígenas possuía instalação sanitária dentro de casa!
Independentemente do tipo e/ou localização do sanitário ou latrina (se dentro ou fora de casa), em cerca de 63% dos domicílios indígenas no país os dejetos são coletados em fossas rudimentares, sendo que este porcentual chega a 91% dos domicílios na Região Norte. Ou seja, as aldeias indígenas praticamente não dispõem de infraestrutura sanitária minimamente adequada e compatível com a tendência verificada no restante do país. A pesquisa nacional de saneamento básico mais recente mostra um país onde 90% dos domicílios apresentam algum tipo de recurso sanitário e, apesar de ainda insuficiente, aproximadamente 50% dos municípios brasileiros têm esgotamento sanitário realizado por rede coletora, o que abrange cerca de 80% da população geral 14,15.
Com relação à origem da água utilizada para beber, a maioria dos domicílios indígenas referiu fontes locais, sem indicação de qualquer tratamento prévio. Apenas no Nordeste a água procedente da rede pública teve algum destaque, mesmo assim abrangendo apenas 28% dos domicílios nesta região 11. No Norte, cerca de 40% dos domicílios indígenas obtêm sua água em poços rasos ou a coletam diretamente em lagos ou cursos d’água. Em todo o país, 55% dos domicílios indígenas usam poço artesiano como fonte para obtenção de água. É importante frisar que, mesmo quando a aldeia dispõe de poço artesiano, a água nem sempre chega às bicas, sejam estas coletivas ou privadas. Segundo várias lideranças entrevistadas nas aldeias visitadas pelas equipes do Inquérito Nacional, são comuns problemas como bomba d’água quebrada, falta de combustível para ligar o motor gerador, registro defeituoso, ou mesmo encanamento furado ou cuja instalação se deu de maneira incompleta 11.
Quanto ao manejo do lixo doméstico, os habitantes de 79% do total de domicílios nas quatro macrorregiões referiram que o mesmo é enterrado, queimado ou simplesmente jogado no entorno da aldeia. Em contraste, aproximadamente 40% das aldeias situadas no Nordeste contam com o serviço púbico de coleta de lixo 11.
O Inquérito Nacional põe em evidência a larga desvantagem que separa as comunidades indígenas das não indígenas no país, sendo marcante a deficiência de saneamento básico, mesmo em regiões onde o acesso às comunidades é facilitado por estradas e as mesmas estão situadas próximas a centros urbanos.
No que se refere à criança indígena, o Inquérito Nacional revelou um quadro marcado pela desnutrição crônica 12. Cerca de um quarto (25,7%) das crianças examinadas apresenta déficit de crescimento para idade sendo que, na região Norte, a prevalência de déficit estatural chega a 40,8%. Para o leitor que vem acompanhando a evolução da saúde coletiva no país, esses números nos remetem a um Brasil de pelo menos quatro décadas atrás. Os resultados da última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS-2006) 16 apontam para um cenário muito mais favorável para o Brasil não indígena – a prevalência de déficit de crescimento em crianças nessa mesma faixa etária, por exemplo, foi de 5,5% (14,7% na Região Norte).
A prevalência de anemia na criança indígena verificada no Inquérito Nacional foi de 51,2% e, também neste caso, a região Norte apresentou a frequência mais alta, com 66,4% das crianças anêmicas 13. Em contraste, a prevalência de anemia na criança brasileira não indígena foi de 20,9%, segundo a PNDS-2006 16.
Além dos déficits nutricionais que colocam a criança indígena em posição de larga desvantagem quando comparada à criança brasileira não indígena, o Inquérito Nacional evidenciou elevadas prevalências de hospitalização por condições sensíveis à atenção básica nos 12 meses que antecederam as entrevistas no campo – diarreia (37,2%) e infecção respiratória aguada (47,6%). Além disso, aproximadamente um quarto (23,6%) das crianças indígenas teve diarreia na semana que antecedeu a entrevista 11.
Em linhas gerais, os resultados do Inquérito Nacional estão em consonância com a literatura recente que tem sido produzida no país com base em estudos em comunidades ou etnias específicas ou, mais raramente, bancos de dados secundários de abrangência regional. Por exemplo, é somente dentre os estudos realizados em comunidades indígenas brasileiras que se encontram referências a frequências de desnutrição crônica superior a 50% em crianças menores de cinco anos, e da ordem de 80% de anemia nesta mesma faixa etária 17,18,19. Nas comunidades indígenas onde a tuberculose é endêmica, mais de 60% das notificações têm sido reportadas em crianças 20,21. É também entre as crianças indígenas que ainda se observam coeficientes de mortalidade infantil que podem chegar a impensáveis 97 óbitos em menores de um ano por 1.000 crianças nascidas vivas, como entre os Xavante 22, ou 29,6/1.000 entre os Gurani 23, dentre outras etnias.
No que se refere à mulher indígena no Brasil, o Inquérito Nacional revelou um cenário no qual, assim como o da criança, o campo nutricional assume preponderância. No entanto, ao invés de desnutrição, o estado nutricional da mulher indígena é marcado pelo excesso de peso – 46% das mulheres pesquisadas apresentaram sobrepeso ou obesidade 11. Não obstante os indicadores antropométricos apontarem no sentido de “sobrenutrição”, a prevalência de anemia é elevada (32,7%), chegando a 46,8% na Região Norte.
Ao abordar a saúde da mulher indígena, é importante lembrar que estamos tratando de mulheres que experimentam a maternidade cedo em suas vidas e apresentam taxas de fecundidade total elevadas, não raro ultrapassando 8 filhos por mulher. Os dados sobre a mulher indígena coligidos pelo Inquérito Nacional ainda estão sendo analisados, mas já sabemos que a realização do pré-natal, estratégia considerada de suma importância tanto para a saúde da mulher como da criança indígena, em especial do recém-nascido, peca por sua irregularidade nos quesitos cobertura e qualidade.
A expectativa dos pesquisadores que realizaram o Inquérito Nacional, assim como das lideranças indígenas das aldeias visitadas, com as quais longas conversas foram travadas, é de que esse esforço resulte em uma revisão crítica da visão que persiste acerca da política de saúde indígena, particularmente nos órgãos governamentais, de seus determinantes socioepidemiológicos e da atuação dos serviços de saúde destinados ao atendimento do segmento indígena da população brasileira. As ações concretas em saúde indígena que se veem nas aldeias são tímidas e conservadoras, não dando conta da complexidade do quadro apontado pelo Inquérito Nacional no que diz respeito à grande (e ainda pouco conhecida) diversidade de cenários socioculturais, ambientais e epidemiológicos nos quais se inserem as 300 etnias indígenas reconhecidas no último censo decenal brasileiro. A realização rotineira de inquéritos de base populacional com foco na saúde indígena e a ampla disseminação de seus resultados devem ser vistas como estratégicas para fornecer a informação necessária não apenas ao melhor conhecimento da epidemiologia dos povos indígenas, mas também para que se avance nos campos da política e do planejamento das ações de saúde destinadas a essa população.