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SAÚDE INDÍGENA: POLÍTICAS COMPARADAS NA AMÉRICA LATINA.

SAÚDE INDÍGENA: POLÍTICAS COMPARADAS NA AMÉRICA LATINA.

Autores:

Gerson Marinho,
Ana Lúcia de Moura Pontes

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.33 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 20-Abr-2017

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00024117

A sociodiversidade das populações da América Latina está presente nos mais variados registros históricos e datam do início da ocupação europeia, há mais de cinco séculos. Entretanto, o reconhecimento do caráter multiétnico das sociedades que habitam o continente é recente, uma vez que, de modo geral, o tema da diversidade dos povos indígenas (e suas necessidades específicas) integra os textos constitucionais há menos de três décadas.

No âmbito das políticas de saúde direcionadas aos povos indígenas, as retóricas governamentais têm destacado a noção de "interculturalidade". A análise desse processo político ainda é incipiente, e é neste sentido que o livro organizado pelas antropólogas Esther Jean Langdon & Marina D. Cardoso chega em boa hora, pois aborda as recentes mudanças, nos âmbitos legal e institucional, das políticas de saúde indígena em seis países da América Latina.

A coletânea, dividida em duas partes, reúne dez textos originalmente debatidos na IX Reunião de Antropologia do Mercosul (2011) e na XXVIII Reunião Brasileira de Antropologia (2012). Na Introdução, as organizadoras apresentam um excelente panorama acerca do cenário epidemiológico nos países analisados, e discutem algumas especificidades e estratégias desenvolvidas para ampliar o acesso dos povos indígenas aos serviços de saúde.

No primeiro capítulo, Jesús Encinas & Ramón Coria apresentam as características do acelerado processo de transição epidemiológica que impacta os indígenas no México. Os autores destacam a grave situação de desorganização social, econômica e política de comunidades indígenas que, dentre outras estratégias, encontram no narcotráfico meios de subsistência. Será que o sistema de saúde do México está preparado para lidar com essa desafiadora realidade social? Segundo os autores, não: "Las politicas atuales, lejos de conseguir sus objetivos retóricos de mejorar la salud y romper el círculo de pobreza y exclusión de los pueblos indigenas, traen como reultado una maior dependencia externa y la pérdida de sus referentes materiales y culturales..." (p. 55).

A seguir, Germán Freire apresenta o caso da saúde indígena na Venezuela, caracterizado de modo peculiar pela influência do mercado petrolífero sob as políticas públicas daquele país. Nos últimos anos, os avanços econômicos favorecidos pelo petróleo não foram suficientes para que o sistema de saúde se tornasse descentralizado, financeiramente autônomo e articulado com outros setores (aspectos reconhecidos como relevantes para um desempenho satisfatório no âmbito da saúde). Freire destaca a participação de lideranças indígenas nos processos políticos decisórios e aponta este como o mérito mais importante creditado para a Venezuela.

Ao apresentar características da sociodiversidade presente na Colômbia, Hugo Portela Guárin discute como o modelo biomédico ocidental se alinha aos projetos de homogeneização das sociedades indígenas. Para o autor, é contraditório que o reconhecimento de populações socioculturalmente diferenciadas não garanta que o sistema de saúde oficial atue de modo intercultural.

Em 2010, mais de 90% dos partos de mulheres indígenas da Argentina ocorreram em hospitais. Com base nesse problema, Silvia Hirsh demonstra que o atendimento médico a essa parcela da população tem sido motivado por conhecimentos biomédicos que, apesar de chancelados pela ciência moderna, se justificam pela amenização de experiências como dor e medo, inerentes ao processo de gestar e parir. Fica claro que o sistema de saúde, marcado por inconstâncias e descontinuidades, ainda tem um longo caminho para que se consolidem práticas interculturais na atenção aos povos indígenas.

O contexto histórico das políticas de saúde indígena no Brasil é apresentado por Marina D. Cardoso, que destaca a manutenção de um modelo centrado na concepção médico-curativista, na tecnificação da assistência e na lógica produtivista. Mesmo com a escassez de informações confiáveis para uma avaliação consistente do subsistema de saúde indígena, Cardoso enfatiza a perenidade das iniquidades em relação ao restante da população. Apresenta controvérsias em relação à polissemia do termo "atenção diferenciada", presente nos discursos de gestores e indígenas, e analisa o modo como os indígenas estão se apropriando de aparatos da biomedicina, incorporando-os em seus acervos de "bens" sociais e estabelecendo novas relações sociais e políticas.

Garnelo & Maquiné descrevem o modelo de financiamento e gestão do sistema de saúde indígena brasileiro, bem como os entraves burocráticos impostos pelo Estado. Para os autores, o vigor dos incrementos financeiros que ocorreram nos últimos anos foi bem mais tímido em relação à capacidade de gestão do subsistema de atenção à saúde indígena. Apesar dos avanços alcançados desde a Constituição de 1988, destacadamente a criação de um subsistema de saúde específico, não há informações suficientes para analisar em profundidade as possibilidades de gestão e autonomia no âmbito dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). O texto também traz reflexões para uma compreensão mais ampliada dos marcos legais relacionados às condições de vida e saúde da população indígena brasileira.

Enquanto a primeira parte do livro articula conceitos, experiências e políticas de saúde amparados na interculturalidade em saúde, a segunda nos apresenta um panorama do debate teórico acerca da apropriação deste termo pela retórica estatal em todo o continente latino-americano. Diante da exiguidade de publicações sobre o tema 1,2,3, é salutar reconhecer o esforço das organizadoras da coletânea em destacar a relevância da operacionalização de termos caros às ciências humanas e sociais no âmbito das políticas públicas.

Apesar dos diferentes enfoques e métodos utilizados nas análises sobre as políticas de saúde indígena nos países descritos neste livro, os autores concordam quanto à ambiguidade do atributo interculturalidade nas retóricas oficiais e dos movimentos sociais indígenas. No Chile, de acordo com Guillaume Boccara, o termo se destaca como práxis política dos movimentos indígenas e na utilização desse conceito como estratégia de neutralização do debate sobre as relações interétnicas e de controle das identidades indígenas pelo Estado. Na Argentina, Remorini & Palermo analisaram o acesso dos Mbya Guarani aos serviços de saúde e verificaram que as recentes políticas "interculturais" tendem a desconsiderar estratégias locais de enfrentamento dos problemas de saúde. No Brasil, considerando o tema da inserção de parteiras tradicionais nas equipes de saúde indígena, Luciane O. Ferreira destaca o hibridismo do termo "atenção diferenciada" presente nos documentos oficiais. De volta ao caso venezuelano, o último capítulo apresenta uma etnografia dos serviços médicos prestados aos Yanomami. José A. K. Luciani analisou os impactos da política de saúde indígena, que apesar de garantir maior participação dos povos indígenas, encontra entraves e incertezas diante da máquina burocrática de um Estado centralizador.

Observamos que baseados em reflexões acerca da incorporação acrítica do constructo interculturalidade na retórica burocrática dos sistemas nacionais de saúde, os autores da coletânea estimularam uma fértil discussão sobre o tema no âmbito do continente latino-americano. Nessa trajetória, nos permitem ter um panorama das estratégias desenvolvidas e das especificidades locais, refletindo sobre os dilemas e desafios a serem enfrentados.

REFERÊNCIAS

1. Menéndez EL. Salud intercultural: propuestas, acciones y fracasos. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21:109-18.
2. Juaréz GF. Salud e interculturalidad en América Latina: antropología de la salud y crítica intercultural. Quito: Ediciones Abya-Yala; 2006.
3. Teixeira CC, Garnelo L, organiazdores. Saúde indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014.