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Saúde materno-infantil em comunidades quilombolas no norte de Minas Gerais

Saúde materno-infantil em comunidades quilombolas no norte de Minas Gerais

Autores:

Stéphany Ketlin Mendes Oliveira,
Mayane Moura Pereira,
Daniel Antunes Freitas,
Antônio Prates Caldeira

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.22 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400030013

ABSTRACT

We aimed to describe indicators of maternal and child health in this communities in northern Minas Gerais, Brazil. This is cross-sectional, population-based study. Data were collected in households randomly sampled including 411 women aged 18 to 49 years and 234 children aged less than five years. Most families (73.7%) reported a monthly income less than minimum wage and nearly half of respondents (49.2%) had less than four years of schooling. Accesses to drinking water, sewage and garbage collection were limited. Most women (52.1%) reported the first pregnancy as adolescents and 35% reported four or more pregnancies. Preventive examinations for cervical cancer showed irregular and 15.1% of women had never been screened In relation to pregnancy and childbirth, 23.5% of women reported fewer than six prenatal consultations, 37.2 % reported onset of prenatal care after the first trimester and 44.4% did attended a puerperal consultation. With regard to children, 15% had low birth weight, 9.4% had chronic health problems and 40.6% were taking no vitamin A. The results highlight critical conditions access to public services, including access to care health.

Key words: maternal and child health; vulnerable groups; African continental ancestry group; health inequalities

INTRODUÇÃO

Mulheres e crianças representam, quase sempre, a parcela mais vulnerável da sociedade diante de condições adversas de vida. Durante muitos anos, no Brasil, o modelo econômico adotado promoveu uma significativa concentração de renda, com reflexos bastante negativos sobre os indicadores de saúde materno-infantil1. Embora as condições atuais sejam mais adequadas e tenham sido registradas melhorias na qualidade da atenção ao binômio mãe-filho nos últimos anos, o acesso igualitário para uma adequada assistência à gestação e ao parto ainda se mostra insuficiente1,2.

Um aspecto que por muitos anos foi negligenciado pela literatura nacional, em relação às iniquidades da atenção à saúde da mulher e da criança, é a influência da cor da pele. Durante muito tempo, acreditava-se que os estudos focados nos determinantes socioeconômicos poderiam destacar a influência do racismo sobre os indicadores de saúde, fato que não mais é aceitável3,4. Estudos nacionais mais recentes desconstruíram a ideia de uma "democracia racial" apontando diferenciais importantes entre brancos e negros, com indicadores de saúde inaceitáveis para a população negra57 e quilombola8,9.

No conjunto da população negra brasileira, é possível identificar que o grupo das comunidades quilombolas parece ainda mais negligenciado. Quase sempre localizadas em áreas rurais, essas comunidades, originalmente constituídas por descendentes de escravos, sobreviveram à margem dos benefícios sociais, preservando a dependência da terra para sua reprodução física, social, econômica e cultural10.

A escassa literatura, pelo menos na área da saúde, sobre as comunidades quilombolas destaca também a invisibilidade dessas comunidades aos olhos da academia. Existem poucos estudos que abordam a questão da saúde materno-infantil para comunidades negras ou, mais especificamente, para comunidades quilombolas. Alguns estudos limitam-se a comunidades isoladas e não permitem a generalização de dados. Em Minas Gerais, a distribuição da população quilombola é heterogênea, mas cerca de 40% das comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares encontra-se localizada ao norte do Estado. Não existem estudos que tenham abordado tais comunidades de forma global, buscando identificar similaridades ou condições de risco para os agravos de saúde. O presente estudo objetivou descrever indicadores de saúde materno-infantis para uma amostra representativa de mulheres e crianças de comunidades quilombolas ao norte o Estado de Minas Gerais.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, descritivo e de abordagem quantitativa. A área de abrangência foi a macrorregião norte de Minas, que incorpora 86 municípios, dos quais 20 possuem comunidades quilombolas. Inicialmente, efetuou-se o levantamento de todas as comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares existentes na região norte de Minas Gerais. A partir das 33 comunidades identificadas, elaborou-se um plano amostral para alocação de residências que fossem representativas de todas as comunidades.

Nesse sentido, a unidade amostral do presente estudo foi a residência. O cálculo amostral considerou uma prevalência de 50% para os eventos estudados, pois se trata de um valor conservador, que fornece o maior número amostral. A margem de erro aceitável foi de 5%, e o nível de confiança de 95%. Para a população estimada nas comunidades quilombolas da região, o cálculo amostral definiu a necessidade de 378 domicílios a serem visitados. Como o processo de alocação da amostra foi por conglomerados (comunidades), o número de domicílios foi multiplicado por 1,5 (fator de correção do desenho) e acres-cido de 15% para eventuais perdas (domicílios sem moradores ou recusas). Definiu-se, assim, a necessidade de visitas a 652 domicílios.

Os domicílios foram selecionados por amostragem probabilística em dois estágios. Em um primeiro momento, as comunidades foram alocadas de forma aleatória. Em cada comunidade, selecionou-se um ponto de refêrenda, a partir do qual os domicílios foram visitados, construindo-se uma espiral imaginária, dada a variabilidade da ocupação do espaço, pois as comunidades estavam quase sempre localizadas em zonas rurais. O número de residências selecionadas em cada localidade foi proporcional ao tamanho dela.

Em cada residência, identificou-se, quando presente, uma moradora com idade igual ou superior a 18 anos e inferior a 50 anos, e uma criança com idade igual ou inferior a 5 anos, para coleta de dados relativos aos objetivos do presente estudo. Outros moradores do domicilio também foram alocados para pesquisa, mas não fazem parte do presente estudo.

Foram visitados 756 domicílios em 33 comunidades. Nesses domicílios foram identificadas por sorteio 411 mulheres com idade entre 18 e 49 anos e 234 crianças com idade igual ou inferior a 5 anos.

O projeto de investigação foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros. Todos os respondentes consentiram com a participação no estudo, registrando sua concordância no termo de consentimento livre e esclarecido com assinatura ou com digital, quando não sabiam escrever. O acesso às comunidades foi mediado pelo representante estadual, fato que possibilitou participação universal, sem recusas.

Todas as entrevistas foram conduzidas por profissionais da ârea da saúde nas próprias residências dos respondentes. Foram utilizados instrumentos de coleta de dados já validados, baseados em pesquisas similares. Os dados foram avaliados a partir de sua apresentação em tabelas, com números absolutes e proporcionais.

RESULTADOS

A Tabela 1 caracteriza as famílias estudadas, com base no acesso a bens de consumo duráveis e serviços públicos. Entre os bens de consumo duráveis no domicilio, foram mais comuns o registro de televisão, geladeira, rádio e telefone celular. Entre os serviços públicos, exceto pelo maior acesso à energia elétrica, registrou-se limitado acesso para as famílias quilombolas.

Tabela 1 Acessibilidade a bens de consumo duráveis e serviços públicos entre famílias quilombolas no Norte de Minas Gerais, 2013 

Variáveis n %
Bens de consumo duráveis no domicílio*
Rádio 294 71,5
Geladeira 365 88,8
Máquina de lavar 47 11,4
Televisão 370 90,0
Telefone fixo 21 5,1
Telefone celular 250 60,8
Computador 16 3,9
Motocicleta 88 21,4
Carro 18 4,4
Destino do lixo
Queimado 231 56,2
Coletado em caçamba 105 25,5
Coletado pelo serviço público 20 4,9
Enterrado 17 4,1
Jogado em terreno baldio 38 9,2
Destino do esgoto
Fossa séptica 304 74,0
Fossa rudimentar 59 14,4
Vala 22 5,4
Rio ou lago/outros 17 4,1
Energia elétrica
Com medidor exclusivo 365 88,8
Com medidor compartilhado 31 7,5
Sem medidor 9 2,2
Sem acesso 6 1,5
Abastecimento de água
Poço ou nascente 289 70,3
Rede geral 57 13,9
Carro pipa 39 9,5
Rios, açudes, lagos 26 6,3

*O percentual de cada bem/produto se refere ao total de famílias entrevistadas.

A caracterização sociodemográfica das mulheres parti-cipantes do estudo é apresentada na Tabela 2. A maior parte das entrevistadas referia renda familiar inferior a um salário minimo, era casada ou vivia em união estável e declarou esco-laridade inferior a oito anos.

Tabela 2 Características demográficas e sociais de mulheres quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013 

Variáveis n %
Idade
18–29 anos 136 33,1
30–39 anos 149 36,2
40–49 anos 126 30,7
Cor da pele
Preta 343 83,5
Parda 56 13,6
Amarela/branca/indígena 12 2,9
Situação conjugal
Solteira/separada/viuva 126 30,7
Casada ou união estável 285 69,3
Renda familiar
<1 SM 306 73,7
1–1,9 SM 97 22,9
≥2 SM 8 1,9
Escolaridade
Nenhuma 41 10,0
1–4 anos 161 39,2
5–8 anos 85 20,7
≥9 anos 124 30,2

SM: salário mínimo

A Tabela 3 descreve as principals variáveis associadas à saúde reprodutiva das mulheres quilombolas avaliadas. Observou-se que 214 (52,1%) mulheres relataram aprimeira gestação com idade inferior a 20 anos e 144 (35,0%) declara-ram já ter vivenciado 4 ou mais gestações. Registrou-se ainda que 48 (11,7%) mulheres entrevistadas nunca realizaram um exame preventivo para o cancer do colo uterino e 266 (64,7%) informaram que nunca tiveram suas mamas examinadas por um profissional de saúde. Entre as entrevistadas, 109 (26,5%) relataram histórico de contracepção permanente (laqueadura tubária ou histerectomia).

Tabela 3 Variáveis associadas à saúde reprodutiva de mulheres quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013 

Variáveis n %
Idade da 1a gestação
<20 anos 214 52,1
20–24 anos 113 27,5
25–29 anos 29 7,1
≥30 anos 7 1,7
Nunca esteve grávida 48 11,7
Número de gestações
Nenhuma 48 11,7
1 77 18,7
2 74 18,0
3 68 16,5
4 ou mais 144 35,0
Histórico de aborto
Sim 82 20,0
Não 281 68,4
Não se aplica 48 11,7
Realização prévia de PCCU*
Sim 349 84,9
Não 62 15,1
Frequência dos exames preventivos
Anualmente ou menos 257 62,5
Uma vez a cada 2 anos 56 13,6
Uma vez a cada 3 anos ou mais 36 8,8
Nunca fez 62 15,1
Uso de contraceptives
Pílulas 120 29,2
Outros 44 10,7
Nenhum 247 60,1
Exame clínico das mamas
Sim 145 35,3
Não 266 64,7
Intervenção cirúrgica gineco-obstétrica prévia**
Cesárea 85 20,7
Laqueadura tubária 100 24,3
Histerectomia 9 2,2
Outros 7 1,7
Nenhuma 260 63,3

*Exame preventivo de câncer de colo uterine.

**Percentual >100%: algumas mulheres tiveram mais de um procedimento.

As Tabelas 4 e 5 descrevem as caracteristicas da assistência ao ciclo gravidico-puerperal e das crianças quilombolas avaliadas. Essa avaliação apenas foi realizada para as mães de crianças menores de cinco anos. Entre os aspectos mais importantes, destaca-se que 55 (23,5%) mães fizeram menos de 6 consultas de atendimento pré-natal e, entre as que tiveram atendimento pré-natal, 77 (32,9%) iniciaram esse atendimento após o ter-ceiro mês de gestação. Entre as crianças, 35 (15,0%) nasceram com peso abaixo de 2.500 g. Os principals problemas crônicos apresentados pelas crianças foram: asma/bronquite, anemia falciforme e problemas ortopédicos.

Tabela 4 Características da atenção ao ciclo gravídico-puerperal para mulheres quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013 (n=234) 

Variáveis n %
Consultas de pré-natal
<4 20 8,5
4 a 5 35 15,0
6 ou mais 179 76,5
Local do pré-natal
PSF 170 72,6
Centro de Saúde 42 17,9
Hospital 19 8,1
Não fez pré-natal 3 1,3
Quem acompanhou o pré-natal
Médico generalista ou médico do PSF 166 70,9
Enfermeiro do PSF 59 25,2
Ginecologista 6 2,6
Não fez pré-natal 3 1,3
Início do pré-natal
≤3 meses 154 65,8
>3 meses 77 32,9
Não fez 3 1,3
Uso de vitaminas na gestação
Não 21 9,0
Sim 213 91,0
Tipo de parto
Normal 185 79,1
Cesariano 49 20,9
Consulta de puerpério
Não 104 44,4
Sim 130 55,6
Idade da primeira consulta puericultura
≤15 dias 60 25,6
15–30 dias 125 53,4
>30 dias 49 20,9

PSF: Programa de Saúde da Família.

Tabela 5 Características das crianças quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013 

Variáveis n %
Idade da criança
<12 meses 42 17,9
12–23 meses 48 20,5
24–35 meses 56 23,9
36–47 meses 51 21,8
48–59 meses 37 15,8
Cor da pele
Preta 202 86,3
Parda 23 9,8
Amarela/branca/indigena 9 3,9
Peso de nascimento
<2.499 g 35 15,0
2.500–2.999 g 66 28,2
3.000–3.999 g 115 49,1
>4.000 g 18 7,7
Número pessoas na casa
<4pessoas 48 20,5
4 a 7 pessoas 154 65,8
>8 32 13,7
Presença do pai
Sim 185 79,1
Não 49 20,9
Registro de problema crônico de saúde da criança
Sim 12 9,4
Não 212 90,6
Uso regular de vitamina A
Sim 119 50,9
Não 95 40,6
Não se aplica 20 8,5
Benefício social do governo ("bolsa famflia")
Sim 212 90,6
Não 12 9,4
Vacinação em dia
Sim 229 97,9
Não 5 2,1

DISCUSSÃO

As comunidades quilombolas se caracterizam por particu-laridades étnicas que as distinguem do restante da sociedade. Historicamente, esse grupo esteve à margem dos benefícios sociais governamentais por muitos anos. Seu reconhecimento oficial, com a outorga de direitos plenos de cidadania somente ocorreu a partir da Constituição Federal de 1988, e políticas especiais de assistência social e saúde para esse grupo só foram implantadas mais tardiamente11. Os resultados do presente estudo destacam que esse grupo continua marcado por proces-sos de discriminação e exclusão, e que muitos dos indicadores de saúde materno-infantil ainda estão distantes dos valores eticamente aceitáveis.

Registrou-se uma acentuada diferença entre o acesso aos bens de consumo duráveis no domicílio e o acesso aos serviços públicos. Enquanto o primeiro parece ter sido ampliado nos últimos anos, o segundo mantêm-se com indicadores críticos. O restrito acesso à água tratada e a um adequado esgotamento sanitário satisfatório imprime, sobretudo às crianças das comunidades, um maior risco de contrair doenças decorrentes da agressão ao meio ambiente12.

As comunidades avaliadas revelaram-se sem adequado aten-dimento em relação aos serviços de saneamento básico, coleta de lixo e acesso à água tratada. Naturalmente, as condições geográficas das comunidades quilombolas, quase sempre loca-lizadas em áreas rurais, representam uma grande dificuldade, mas o histórico de segregação dessas comunidades pode estar contribuindo para a perpetuação das condições observadas. Situação similar de inexistência de condições sanitárias apropriadas, como água corrente limpa para consumo humano e esgoto sanitário tratado, foi registrada na comunidade de Caiana dos Crioulos, na Paraíba13.

As características das mulheres quilombolas registram uma população jovem, cuja maioria encontra-se em união conjugal. Socialmente, existem indicadores que reforçam os aspectos de pobreza, pois cerca de 70% dessas mulheres referiam uma renda familiar inferior a um salário mínimo e baixa escolaridade (menos de 8 anos). Essas condições em si já prenunciam riscos para diversos agravos à saúde. Quando se observa a cor da pele autodeclarada, mais de 80% dessas mulheres referem cor da pele preta, corroborando a ancestralidade africana, outro aspecto que, infelizmente, também já foi apontado como risco para agravantes na área da saúde. Esse risco não se encontra associado a fatores biológicos, mas deve-se ao racismo institucional14. Um estudo de base populacional realizado com mulheres de 20 a 60 anos, no sul do Brasil, revelou que a probabilidade de as mulheres não realizarem os exames citopatológicos e de mamas foi significantemente maior nas negras, mesmo após ajustamento de variáveis sociais e econômicas. Para os autores, o diferencial observado pode ser um reflexo das desigualdades raciais e socioeconômicas vividas por mulheres negras no acesso aos serviços e ações de atenção à saúde reprodutiva3.

Nos resultados do presente estudo, as caracteristicas das mulheres em relação à saúde reprodutiva apontam para um acesso restrito às atividades educativas ou de planejamento familiar. Mais da metade das mulheres tiveram sua primeira gestação ainda na adolescência e referem três ou mais gestações. Outro aspecto que define uma situação crítica é que o exame preventivo para o câncer do colo uterino não foi realizado por mais de 15% das mulheres e muitas o realizam de forma irregular. Esses resultados apontam para uma situação de negligência que é corroborada pelo relato de que mais de 60% das mulheres informaram que nunca tiveram suas mamas examinadas por profissionais de saúde. São dados que, efetivamente, reforçam as percepções de outros pesquisadores sobre desigualdades sociais e raciais vivenciadas por mulheres negras3,15.

É digno de análise mais criteriosa o fato de que mais de um quarto das mulheres já vivenciam situação de esterilidade, com registro de laqueadura tubária e/ou histerectomia. Não foi objetivo deste estudo avaliar as indicações dos referidos procedimentos, mas é preciso destacar que os números denotam uma interferência precoce no direito de procriação. Muitas mulheres costumam vivenciar sentimentos de arrependimento após procedimentos de esterilização definitiva como laqueadura tubária16.

Para avaliação específica do ciclo gravídico-puerperal, o presente trabalho limitou-se às mulheres com filhos menores de cinco anos, buscando minimizar limitações de memória. Embora esse fato tenha restringido o número de mães avaliadas, ainda foi possível registrar situações críticas de acesso e atenção à saúde da mulher e da criança. Mais de 20% das mulheres com crianças menores de cinco anos relataram menos de seis consultas pré-natais. Esses valores, associados ao registro de inicio tardio da assistência pré-natal para um terço das mulheres quilombolas, corroboram a existência de entraves no acesso e a indisponibilidade de serviços para a população avaliada. Situação similar já foi referida para outras comunidades de mulheres negras no país3,17,18.

É relevante destacar ainda a falta de acesso aos cuidados puerperais, pois quase metade das entrevistadas não passou por consultas puerperais, ocasião em que essas mulheres poderiam ser orientadas sobre diversos aspectos da sua saúde reprodutiva. Infelizmente, a situação verificada não é singular ou pontual. Outros estudos já apontaram que a as atividades de atenção à saúde da mulher são mais deficitárias em áreas rurais e particularmente mais críticas em comunidades mais pobres19,20.

O percentual elevado de crianças que nasceram de baixo peso (maior que a mádia nacional) é outro indicador de cuidados precários em relação ao ciclo gravídico-puerperal. O peso de nascimento é uma medida-resumo dos cuidados recebidos pela mãe durante a gestação e da saúde do concepto. Em um estudo conduzido em São Paulo, maiores taxas de nascimento de recém-nascidos de baixo peso e prematures se mostraram estatisticamente associadas à cor da pele da mãe (preta e parda). Essa associação permaneceu mesmo após ajustamento dos dados em relação à renda familiar e escolaridade materna, o que sugere, segundo os autores, que iniquidades raciais e discriminação podem estar definindo esses resultados2.

Outros aspectos relacionados aos determinantes de saúde para a criança revelaram que, além da vulnerabilidade social e econômica, as crianças quilombolas residem em casas com elevada densidade populacional e mais de um quinto delas não contam com a presença do pai na mesma residência. Especificamente em relação aos cuidados de saúde, apesar da situação favorável em relação ao estado vacinal, elevado percentual de crianças não recebiam regularmente a suplementação de vitamina A, conforme recomendação do Ministério da Saúde para a região21.

Além das questões de preconceito racial e cultural enfrentadas pela comunidade quilombola, a situação geográfica, de localização em meio rural, representa outro importante obstáculo para o acesso pleno aos cuidados de saúde. Beheregaray e Gerhardt22, avaliando especificamente a atenção materno-infantil em um município do Sul do Brasil, constataram que existe significativa condição de desvantagem para as comunidades rurais. Para as autoras, os serviços de saúde e os modelos assistenciais de atenção à saúde ainda são muito voltados para comunidades urbanas, fato que compromete, sobretudo, a integralidade da assistência. Deve-se considerar também que as particularidades culturais podem interferir na busca pelos serviços de saúde e que comunidades quilombolas apresentam menores taxas de utilização de serviços de saúde8.

Em outro estudo que investigou a percepção de mães quilombolas sobre os cuidados de saúde, os atributos da atenção primária foram avaliados por meio dos escores aferidos segundo o PCA-Tool (Primary Care Assessment Tool - Instrumento de Avaliação da Atenção Primária), validado internacionalmente e recomendado pelo Ministério da Saúde do Brasil. Verificou-se baixa fidelidade aos atributos da atenção primária, com piores escores para os atributos de Orientação Familiar e Acesso-acessibilidade. Para os autores, esses resultados também destacam a necessidade de maiores esforços para adequação do novo modelo assistencial à população estudada23.

É relevante destacar alguns aspectos positivos, como o fato de que 100% das crianças passaram por acompanhamento de puericultura, que quase todas as crianças se encontravam com vacinação em dia e que mais de 90% das famílias avaliadas contavam com benefício social do governo. Esses dados indicam que algumas medidas têm sido tomadas, sendo desejável que se incrementem para assegurar maior qualidade de vida às comunidades quilombolas.

Em síntese, os resultados observados registram um conjunto de carências e fragilidades que ainda apontam para um histórico de abandono das comunidades quilombolas, pelo menos em relação aos cuidados de saúde materno-in-fantil. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra11, que propõe ações transversais, no Sistema Único de Saúde (SUS), visando garantir a efetivação do direito à saúde da população negra em relação à promoção, à prevenção e ao tratamento dos agravos de saúde, parece ainda não ter se materializado. Enquanto o estímulo à criação de equipes específicas para as comunidades quilombolas se traduzir em simples repasse financeiro, sem acompanhamento e monitoramento mais estritos, as repercussões sobre o estado de saúde dessa população tendem a ser muito limitadas. Assim, se perpetuam as dificuldades de acesso, a falta de vínculos e responsabilização por parte dos profissionais de saúde. As questões apontadas são graves e ensejam a inserção de aspectos éticos na discussão das políticas específicas às comunidades quilombolas, buscando-se, inclusive, dar voz aos sujeitos envolvidos9.

Parece necessário, portanto, repensar a atenção à saúde para as comunidades quilombolas, considerando as suas particularidades, o contexto de localização predominantemente rural, as peculiaridades culturais, de acesso aos bens de consumo duráveis e serviços públicos, de oportunidades sociais, além das características epidemiológicas. Processos inclusivos e estratégias mais efetivas de promoção da equidade são imperativos para minimizar os danos recorrentes que o racismo institucional tem produzido às comunidades quilombolas.

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