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Sazonalidade nas notificações de dengue das capitais da Amazônia e os impactos do El Niño/La Niña

Sazonalidade nas notificações de dengue das capitais da Amazônia e os impactos do El Niño/La Niña

Autores:

Bergson Cavalcanti de Moraes,
Everaldo Barreiros de Souza,
Giordani Rafael Conceição Sodré,
Douglas Batista da Silva Ferreira,
João Batista Miranda Ribeiro

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.35 no.9 Rio de Janeiro 2019 Epub 16-Set-2019

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00123417

Abstract:

The dynamics of dengue transmission are multifactorial and involve socioeconomic, ecological, and environmental aspects, the latter being closely related to local climatic conditions that affect the vector’s reproductive cycle. Climate depends in turn on tropical oceanic mechanisms such as phases of El Niño/La Niña over the Pacific. The study contributes to this discussion and reports on the correlations between the Multivariate ENSO Index (MEI) in the Pacific and the number of reported dengue cases in seven state capitals in the Brazilian Amazon from 2001 to 2012. The study also analyzes the seasonality pattern (quarterly mean values) in dengue cases throughout the region. Evidence that El Niño/La Niña causes a decrease versus increase in the local rainfall pattern is consistent with the lower versus higher number of reported dengue cases in most of the state capitals in the Amazon, a result proven by the statistically significant negative correlations seen in Manaus (Amazonas), São Luís (Maranhão), Belém (Pará) and Palmas (Tocantins). The 12-years means (2001-2012) revealed the presence of pronounced seasonality in dengue incidence in the majority of the state capitals, with sharp peaks from January to March [Rio Branco (Acre), Manaus, Belém and Palmas] and from April to June (São Luís), corresponding to 50-70% of the annual total. State capitals farther north [Boa Vista (Roraima) and Macapá (Amapá)] showed dengue reporting in all quarters of the year, with no pronounced seasonality.

Keywords: El Niño; La Niña; Seasons; Dengue

Resumen:

La dinámica de transmisión del dengue es multifactorial e implica aspectos socioeconómicos, ecológicos y ambientales, estando estos últimos íntimamente relacionados con las condiciones climáticas locales que interfieren en el ciclo reproductivo de los vectores de la enfermedad. A su vez, el clima depende de los mecanismos oceánicos tropicales, como por ejemplo las fases de El Niño/La Niña sobre el Pacífico. El presente trabajo contribuye a esta temática e informa sobre las correlaciones entre el índice MEI (Multivariate ENOS Index) del Pacífico y el número de casos notificados de dengue en siete capitales de la Amazonia brasileña durante el período de 2001 a 2012. Además, se investiga el patrón de estacionalidad (medias trimestrales) de los casos de dengue a lo largo de la región. Las evidencias de que el fenómeno El Niño/La Niña provoca reducción/aumento en el patrón pluviométrico local es consistente con el número menor/mayor de casos notificados de dengue en la mayor parte de las capitales amazónicas, cuyo resultado se comprobó por las correlaciones negativas estadísticamente significativas encontradas en Manaus (Amazonas), São Luís (Maranhão), Belém (Pará) y Palmas (Tocantins). Las medias de los doce años (2001/2012) revelaron la presencia de estacionalidad pronunciada en la incidencia de dengue en la mayoría de las capitales, con picos acentuados de enero a marzo [Rio Branco (Acre), Manaus, Belém y Palmas] y de abril a junio (São Luís), correspondiendo en torno del 50 al 70% del total anual. Las localidades más al norte [Boa Vista (Roraima) y Macapá (Amapá)] revelaron registro del dengue a lo largo de todos los trimestres del año, no presentando una estacionalidad acentuada.

Palabras-clave: El Niño; La Niña; Estaciones del Año; Dengue

Introdução

A dengue é uma doença sistêmica e de etiologia viral. O vetor de transmissão dessa doença é o mosquito Aedes aegypti, cuja proliferação intensa a partir da década de 1980 resultou em epidemias explosivas em todas as regiões brasileiras 1. A dinâmica sazonal do desenvolvimento desse vetor associa-se às flutuações climáticas (pluviosidade e temperatura do ar), cujas condições são ambientalmente determinantes para o número de criadouros 2.

Por sua vez, o clima da Amazônia é modulado pelos mecanismos oceano/atmosfera dos oceanos tropicais adjacentes, sendo um dos mais importantes o El Niño-Oscilação Sul (ENOS) sobre o Pacífico tropical 3. O ENOS possui duas fases distintas caracterizadas pela persistência dos padrões de temperatura da superfície do mar anomalamente mais quentes (El Niño) e frios (La Niña) por mais de cinco meses sobre o Pacífico tropical. Estudos prévios reportaram que a sequência temporal entre o El Niño e a ocorrência das epidemias de dengue, levando em consideração a inferência causal, ainda não foi algo completamente entendido 4.

No Brasil, a correlação da condição climática associada ao ENOS e às epidemias de dengue ainda apresenta ausência de estudos mais específicos. Assim, o objetivo deste trabalho é investigar a relação entre a ocorrência dos fenômenos El Niño e La Niña e a incidência de dengue nas capitais da Amazônia.

Método

Os dados de notificação de dengue foram adquiridos no Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Informática do SUS (DATASUS; http://www.datasus.gov.br), que integra o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) do Sistema Único de Saúde (SUS) 5. Foram selecionadas séries temporais de casos notificados de dengue em sete capitais da Amazônia brasileira de 2000 a 2012: Belém (Pará), Boa Vista (Roraima), Manaus (Amazonas), Macapá (Amapá), Palmas (Tocantins), Rio Branco (Acre) e São Luís (Maranhão), exceto Porto Velho (Rondônia) e Cuiabá (Mato Grosso), por não possuírem séries contínuas. Concernente aos dados climáticos, utiliza-se o MEI (Multivariate ENOS Index), que integra as variáveis oceânicas/atmosféricas que caracterizam o ciclo do ENOS 6, sendo este um índice numérico que oscila entre valores positivos (El Niño) e negativos (La Niña).

Quanto aos métodos empregados, foi realizada a caracterização estatística dos dados anuais e trimestrais dos casos de dengue, visando a demonstrar a existência da sazonalidade da doença na região. Essa análise é baseada nas médias trimestrais: janeiro a março (JFM), abril a junho (AMJ), julho a setembro (JAS) e outubro a dezembro (OND). Em seguida, avalia-se a influência do ENOS nos casos de dengue nas capitais amazônicas, por meio do coeficiente de correlação de Pearson, aplicado aos dados de notificações e ao índice MEI para o Lag0 e Lag-1. Lag0 representa a correlação simultânea e o Lag-1, a correlação defasada (cada trimestre de dengue contra o trimestre anterior). Ao final, o teste t de Student foi aplicado para se obter a significância da correlação ao nível de 5%.

Resultados

Na Figura 1, apresentam-se as médias anuais (gráficos de barra) e percentuais trimestrais (gráficos sobre o mapa) dos casos de dengue nas capitais da Amazônia. Na Figura 1a, nota-se que, em Manaus e em Rio Branco, ocorrem as médias anuais mais altas, 2.678 e 2.272 casos, respectivamente. Palmas com 782, Boa Vista com 722 e Belém com 713 exibem números intermediários, ao passo que Macapá com 571 e São Luís com 556 apresentam as médias anuais mais baixas. A Figura 1b mostra os percentuais trimestrais dos casos de dengue em cada capital, permitindo uma análise epidemiológica em termos sazonais sobre a região. Destaca-se o trimestre de JFM como o período de maior incidência de dengue em Manaus (73%), Rio Branco (64%), Belém (55%) e Palmas (46%). No restante do ano, essas capitais exibem percentuais baixos em AMJ (37% em Palmas, 20% em Belém, 17% em Manaus, 12% em Rio Branco) e menores ainda em JAS (10% em Belém, 8% em Palmas, 4% em Manaus, 3% em Rio Branco) e OND (21% em Rio Branco, 15% em Belém, 9% em Palmas e 6% em Manaus). Por outro lado, em São Luís se verifica percentual maior de dengue em AMJ (44%), seguido de JAS (35%), OND (6%) e JFM (15%). As capitais mais ao norte, Boa Vista e Macapá, denotam variações bem distribuídas nos quatro trimestres e, assim, não apresentam sazonalidade pronunciada.

Figura 1 Dengue nas capitais da Amazônia. 

A Figura 2 mostra o índice MEI trimestral de 2001 a 2012, no qual se verificam quatro eventos El Niño (2002/2003, 2004/2005, 2006/2007, 2009/2010) e seis eventos La Niña (2001, 2005/2006, 2007/2008, 2008/2009, 2010/2011, 2011/2012). As correlações entre o índice MEI e o número de casos trimestrais de dengue são mostradas de forma quantitativa na Tabela 1. Em geral, na maior parte das capitais (exceto Macapá) e em todos os trimestres do ano, evidenciam-se correlações negativas, indicando a interpretação de que eventos El Niño (aquecimento no Pacífico) associam-se com incidência reduzida de dengue e, inversamente, episódios La Niña (resfriamento do Pacífico) relacionam-se com incidência intensificada de dengue na região. Considerando a intensidade das correlações com significância estatística em 5%, enfatizam-se os resultados encontrados para Manaus e São Luís, onde há correlações negativas significantes em todos os quatro trimestres do ano. Essas mesmas correlações ocorrem em três trimestres em Belém (AMJ, JAS e OND), em dois trimestres em Palmas (AMJ e JAS) e Rio Branco (JAS e OND) e apenas no trimestre AMJ em Macapá. Boa Vista foi a única capital que não apresentou correlações significantes.

Figura 2 Índice MEI (Multivariate ENOS Index) 2001 a 2012 com os eventos El Niño (círculos vermelhos) e La Niña (círculos azuis). 

Tabela 1 Correlações entre o índice MEI (Multivariate ENOS Index) e casos de dengue nas capitais da Amazônia. 

Belém Boa Vista Manaus Macapá Palmas Rio Brabco São Luís
Lag-1
JFM -0,12 -0,29 -0,59 0,13 -0,03 -0,18 -0,34
AMJ -0,44 -0,35 -0,53 0,45 -0,33 -0,24 -0,18
JAS 0,17 -0,09 -0,32 0,12 -0,54 0,14 -0,24
OND -0,44 -0,02 -0,77 0,06 0,18 -0,60 -0,61
Lag0
JFM -0,05 -0,28 -0,58 0,09 -0,02 -0,08 -0,43
AMJ -0,28 -0,10 -0,70 0,07 -0,43 -0,03 -0,42
JAS -0,78 -0,29 -0,59 0,01 -0,18 -0,71 -0,75
OND -0,28 -0,05 -0,68 0,09 0,18 -0,42 -0,49

Nota: os valores em negrito indicam significância estatística em 5%. Trimestres: JFM: janeiro a março; AMJ: abril a junho; JAS: julho a setembro; OND: outubro a dezembro.

Discussão

Os dados de dengue de 2001/2012 demostraram a existência de sazonalidade pronunciada nas capitais da Amazônia, com picos acentuados de janeiro a março (Rio Branco, Manaus, Belém e Palmas) e de abril a junho (São Luís), exceto em Boa Vista e Macapá, onde a dengue ocorre ao longo de todo o ano. Esses resultados são consistentes com análises epidemiológicas em estudos de caso, a exemplo de Belém, com picos da doença em março 7, e em Roraima, de maio a agosto 8. A dinâmica de transmissão da dengue é multifatorial, envolvendo aspectos socioeconômicos, ecológicos e ambientais, sendo este último relacionado às condições climáticas que interferem no ciclo reprodutivo dos vetores da doença. Os eventos El Niño/La Niña modulam o clima das regiões tropicais, de forma que, em anos de El Niño, devido à redução do volume de chuvas, prolongando o período de estiagem, as condições ambientais necessárias para o desenvolvimento do vetor da dengue não são favorecidas. Por outro lado, em anos de maior volume pluviométrico, com o La Niña, há episódios frequentes de cheias e alagamentos, principalmente em áreas urbanas, o que contribui diretamente para a proliferação de focos do mosquito vetor e, consequentemente, da dengue.

Contudo, é importante frisar que os efeitos das oscilações do ENOS não são homogêneos em todo território amazônico 9, e a ocorrência desse fenômeno apenas potencializa ou inibe as condições ambientais pré-existentes, o que pode ser umas das possíveis explicações para os resultados observados em Macapá, o qual, dentre os municípios estudados, apresenta os piores índices de saneamento básico 10, fator que pode contribuir diretamente para o número de focos 11. Assim, para o Município de Macapá, a frequência da precipitação pode não ser fator modulador, pois a ocorrência de qualquer precipitação, estando ou não relacionada à variação do ENOS, formará pontos de retenção de água com potencial para ser um novo criadouro do vetor. Pesquisas anteriores reportaram relações entre o ENOS e a incidência da dengue na Austrália 12 e na África 13, ao passo que, para a América do Sul, os poucos trabalhos abordaram o problema para a Venezuela 14, a Colômbia 15 e o Equador 16,17. Os resultados do presente trabalho contribuem nessa temática, com evidências de que El Niño e La Niña associam-se com número menor/maior de casos de dengue nas capitais amazônicas. Portanto, esses resultados podem antecipar informações úteis ao planejamento dos órgãos de saúde quando da iminência de tais eventos climáticos.

REFERÊNCIAS

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