versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.4 São Paulo out./dez. 2018 Epub 17-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3941
A pré-eclâmpsia afeta 3-10% das gestações e sua prevalência vem aumentando. Essa condição é um fator de risco significativo para morte materna, morte perinatal, parto prematuro e baixo peso ao nascimento.1,2
Idade materna mais avançada, baixo nível socioeconômico, obesidade, anemia, nuliparidade, falta de pré-natal, hipertensão, diabetes e doença renal crônica, entre outros, são fatores de risco para o desenvolvimento da doença.2
Ao longo dos anos, tem havido uma busca ativa por biomarcadores de pré-eclâmpsia que poderiam melhorar seu diagnóstico. Atualmente, nenhum teste de triagem recomendado está disponível além de um histórico médico completo para identificar possíveis fatores de risco para a doença.3
Os podócitos estão normalmente ausentes ou são observados em pequenos números na urina de indivíduos saudáveis ou com doença renal inativa. Em um estudo anterior, encontramos níveis significativamente mais altos de podocalixina urinária (um marcador de perda podocitária - podocitúria) em pacientes com pré-eclâmpsia/eclampsia, com tendência a normalizar após o parto.4
Foi postulado que a pré-eclâmpsia pode estar associada a futuras doenças cardiovasculares e renais. Por exemplo, pacientes com hipertensão durante a gravidez tiveram maior risco subsequente de microalbuminúria do que aquelas com gravidez normotensa.5
Após a pré-eclâmpsia, pode levar até dois anos para que a hipertensão e a proteinúria se resolvam. Como a presença de excreção urinária de podócitos pós-parto persistente (podocitúria) e proteinúria em pacientes que sofreram pré-eclâmpsia pode indicar dano renal subclínico contínuo, medimos a função renal, proteinúria e podocalixina urinária nessas pacientes 3 anos após o parto.
Até onde sabemos, este é o primeiro estudo que mede os biomarcadores urinários nessas pacientes por um longo período de tempo. Nossa hipótese é que pacientes com história de pré-eclâmpsia apresentem dano renal subclínico em curso, que poderia explicar seu risco aumentado de doença renal crônica mais tarde na vida, e isso pode ser demonstrado pela perda persistente de podócitos na urina.
Com a aprovação do Conselho de Revisão Institucional, este estudo observacional prospectivo foi realizado entre março de 2013 e maio de 2016.
Critérios de inclusão: após a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram incluídos neste estudo pacientes que estavam grávidas em 2013 e recebiam atendimento no Serviço de Obstetrícia do Instituto de Previdência Social do Hospital em Assunção, Paraguai. Elas foram acompanhadas por 3 anos após a gravidez.
Urina e exames de sangue foram obtidos no início do estudo (durante a gravidez), dentro de uma semana após o parto (naquelas com pré-eclâmpsia) e três anos depois.
Pré-eclâmpsia leve foi definida como um novo desenvolvimento de hipertensão (PAS > 140/90 mmHg) em duas ocasiões com pelo menos 6 horas de intervalo em uma mulher sem evidência de hipertensão crônica e normotensa antes de 20 semanas de gestação, juntamente com proteinúria ≥ 300 mg.
Pré-eclâmpsia grave foi definida como pré-eclâmpsia complicada por PAS ≥ 160 mm ou PAD ≥ 110 mmHg em 2 ocasiões com intervalo mínimo de 6 horas e/ou edema pulmonar e/ou oligúria (< 400 mL de débito urinário em 24 horas ), e/ou cefaléias persistentes e sintomas neurológicos, e/ou dor epigástrica e/ou insuficiência da função hepática e/ou trombocitopenia e/ou oligoidrâmnio, diminuição do crescimento fetal ou descolamento placentário e/ou síndrome HELLP (hemólise, elevada enzima hepática, plaquetas baixas).
Eclampsia foi definida como convulsões não atribuídas a outras causas em uma mulher com pré-eclâmpsia.
Controle normal da gravidez: pacientes sem diagnóstico de pré-eclâmpsia ou eclampsia. Pacientes sem as condições listadas nos critérios de exclusão.
Critérios de exclusão: pacientes sem urina disponível ou exames de sangue no momento do estudo, pacientes com história prévia de doença renal crônica, glomerulonefrite, hematúria, doenças autoimunes, câncer ou diabetes mellitus e pacientes grávidas no momento do acompanhamento.
Variáveis coletadas: idade, creatinina sérica, proteína urinária, podocalixina urinária e creatinina urinária.
Estimativa de podocitúria: urina aleatória (10 mL) foi coletada em tubos plásticos sem conservante. Quando necessário, elas eram clarificadas por centrifugação (a 3.000 rpm por 5 min). A urina foi mantida a 4ºC por até 1 semana. Antes do ensaio, as amostras foram deixadas para descongelar à temperatura ambiente (24ºC). Todos os ensaios foram concluídos utilizando recipientes duplos para cada diluição do padrão e da amostra.
Foi utilizado um teste ELISA de podocalixina comercialmente disponível (Exocell Inc.). Este ensaio destina-se a medir a podocalixina em amostras de urina ou tecido de roedores ou de origem humana. O intervalo do ensaio foi de 0,156 a 10,0 ng/ml. A precisão intra e inter-ensaio para amostras dentro do intervalo do ensaio tem um CV < 7%. Cada amostra foi medida em duplicado. Os valores foram expressos como ng/mL.
Estimativa da função renal: a função renal foi expressa como creatinina sérica (mg/dL).
Estimativa da proteinúria: foi obtida a relação proteína/creatinina total da urina aleatória (UPC, expressa em mg/g). A proteína total foi medida pelo método do corante vermelho de pirogalol. A creatinina na urina foi medida pela reação de Jaffe na mesma alíquota da urina. Para ajustar ainda mais a creatinina na urina, utilizou-se a proporção de podocalixina urinária para creatinina (ng/mg).
Análises estatísticas: os dados foram apresentados como média e desvio padrão quando normalmente distribuídos, e mediana [percentis 25 e 75%] quando não.
As diferenças entre as médias foram comparadas pelo teste-t de Student. Para dados altamente distorcidos, foi utilizado o teste U de Mann-Whitney. Para dados pareados, foi utilizado o teste signed rank de Wilcoxon.
Diferenças nas proporções foram avaliadas pelo teste exato de Fisher.
Valores de P menores ≤ 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. Todas as análises foram realizadas usando o SOFA Statistics versão 1.4.0 (Paton-Simpson & Associates Ltd, Auckland, Nova Zelândia) e o software estatístico JMP versão 11.2.0 (SAS Campus Drive, Cary, NC).
As características basais estão descritas na Tabela 1. As pacientes com pré-eclâmpsia tenderam a ter níveis mais elevados de podocalixina e proteína urinária durante a gravidez.
Tabbela 1 Características basais durante a gravidez. Pacientes com pré-eclâmpsia tenderam a ter mais proteinúria e podocitúria (podocalixina urinário)
Gestação normalN = 8 | Pré-eclâmpsiaN = 11 | Valor de p | |
---|---|---|---|
Idade (anos), média ± DP | 32.2 ± 5.11 | 29.8 ± 5.86 | 0.31 |
Idade gestacional (semanas), mediana [IQR] | 37 [36.2, 38.7] | 34 [30, 36] | 0.06 |
Creatinina sérica (mg/dL), mediana [IQR] | 0.6 [0.59, 0.86] | 0.74 [0.5, 1.08] | 0.77 |
Proteína urinária/creatinina (mg/g), mediana [IQR] | 123.5 [65.9, 194.8] | 757.2 [268.4, 5031.7] | 0.001 |
Podocalixina urinária /creatinina (ng/mg), mediana [IQR] | 54.4 [34.2, 76.9] | 97.5 [64.9, 318.4] | 0.09 |
IQR = Intervalo Interquartil. DP = desvio padrão.
Os níveis urinários de podocalixina e proteína diminuíram ao longo do tempo, em ambos os grupos. (Figura 1 e 2).
Figura 1 Podocalixina urinária (ng/mg) ao longo do tempo. Nos dois grupos, a podocalixina urinária diminuiu após a gravidez. Após 3 anos, não houve diferença na podocitúria entre os grupos (as barras representam o erro padrão).
Figura 2 Proteinúria (mg / g) ao longo do tempo. Nos dois grupos, a proteinúria diminuiu após a gravidez. Após 3 anos, não houve diferença na proteinúria entre os grupos (as barras representam o erro padrão).
Após 3 anos, não houve diferença significativa na podocalixina urinária nas pacientes com ou sem pré-eclâmpsia: 4,34 ng/mg [2,69, 8,99] versus 7,66 ng/mg [2,35, 13], p = 0,77. O mesmo se aplica à excreção urinária de proteínas: 81,5 mg/g [60,6, 105,5] vs. 43,2 mg/g [20,9, 139,3] p = 0,23.
Aos 3 anos, a creatinina sérica foi de 0,86 mg/dL [0,7, 0,9] versus 0,8 mg/dL [0,68, 1] p = 0,74 naquelas com e sem pré-eclâmpsia, respectivamente (Figura 3).
Figura 3 Creatinina sérica (mg/dL) ao longo do tempo. Após 3 anos, não foi observada diferença na função renal entre os grupos (as barras representam o erro padrão).
Em pacientes normais, a podocalixina urinária diminuiu de 54,4 ng/mg [34,2, 76,9] durante a gestação para 7,66 ng/mg [2,35, 13] três anos após a gravidez, p = 0,01. A proteinúria caiu de 123,5 mg/g [65,9, 194,8] para 43,2 mg/g [20,9, 139,3], p = 0,12.
Em pacientes com pré-eclâmpsia, a podocalixina urinária diminuiu de 97,5 ng/mg [64,9, 318,4] durante a gravidez para 37,1 ng/mg em uma semana pós-parto [21,3, 100,4] p = 0,05 e 4,34 ng/mg [2,69, 8,99] três anos após a gestação, p = 0,003. A proteinúria foi de 757,2 mg/g [268.4, 5031.7] durante a gravidez vs. 757,2 mg/g [288.2, 2917] pós-parto, p = 0.09 vs. 81.5 mg/g [60.6, 105.5] três anos depois, p = 0.01. Os níveis urinários de podocalixina diminuíram mais rapidamente do que a proteinúria.
Duas pacientes com história de pré-eclâmpsia ainda apresentavam proteinúria (proteína urinária para creatinina > 300 mg/g) aos 3 anos, contra nenhuma no grupo de gestação normal. Nestas duas pacientes proteinúricas, a podocalixina urinária pós-parto foi de 37,1 ng/mg e 182,9 ng/mg, respectivamente; após 3 anos foi de 1,81 e 2,67 ng/mg. A proteinúria pós-parto foi de 28,3 mg/g e 94,6 mg/g.
Vários estudos sugerem que mulheres com distúrbios hipertensivos durante a gestação apresentam maior risco de doença renal crônica, hipertensão, tromboembolismo venoso e diabetes mellitus tipo 2, mesmo após o controle de fatores de risco comuns. Além disso, mulheres com pré-eclâmpsia ou eclampsia podem ter um risco maior de doença renal terminal em comparação com mulheres que tiveram apenas hipertensão gestacional.6,7
Os riscos cardiovasculares e renais em pacientes com pré-eclâmpsia podem ser devidos à presença de fatores antiangiogênicos, como o receptor 1 do fator de crescimento endotelial vascular solúvel (sVEGFR-1), também conhecido como tirosino-quinase solúvel tipo fms 1 (sFlt1). Os efeitos de fatores proangiogênicos, como o VEGF (fator endotelial vascular) e PIGF (fator de crescimento placentário) são antagonizados por sFlt-1. Níveis aumentados de sFlt-1 e níveis reduzidos de PlGF podem predizer o desenvolvimento subsequente de pré-eclâmpsia.8,9
Além da disfunção endotelial presente na pré-eclâmpsia, ocorre dano podocitário. Estudos anteriores mostraram que a podocitúria poderia ser usada como marcador de pré-eclâmpsia, e poderia ser mais específica e sensível do que marcadores anti-angiogênicos no diagnóstico da doença.10,11 Diferentes marcadores de excreção urinária de podócitos têm sido utilizados, entre eles nefrina e podocalixina. Estas proteínas estão elevadas na pré-eclâmpsia e são dificilmente detectáveis em mulheres normais e mulheres com hipertensão crônica.12 Por outro lado, a podocitúria foi detectada nos sedimentos urinários de pacientes com várias formas de glomerulonefrite, particularmente naqueles com início agudo.13
Mesmo após o parto, algumas alterações persistem em pacientes afetados com pré-eclâmpsia. As mulheres podem ter podocitúria 5-8 semanas após o parto, e 39% ainda apresentam hipertensão após 3 meses, o que diminui para 18% após 2 anos. Três meses após o parto, 14% apresentam proteinúria, que diminui para 2% após 2 anos.14,15 Em teoria, esses marcadores persistentes de lesão renal em curso (ou seja, podocalixina urinária, proteinúria) sinalizariam pacientes com maior risco de doença renal progressiva.
Similarmente a outros estudos, nesta coorte descobrimos que tanto os níveis de podocalixina urinária quanto proteicos urinários são mais altos durante a gravidez naquelas com pré-eclâmpsia. Estes tendem a normalizar após o parto, embora tenhamos notado que dois pacientes com pré-eclâmpsia ainda apresentavam proteinúria após três anos.
Em pacientes com pré-eclâmpsia, a podocitúria aos 3 anos foi menor do que durante a gravidez e pós-parto, e foi semelhante nas pacientes sem pré-eclâmpsia. A creatinina sérica foi semelhante nos dois grupos, assim como durante o seguimento. Nossos achados estão de acordo com estudos anteriores que sugerem que a podocitúria tende a ser limitada ao dano glomerular contínuo, e desaparece após a condição subjacente ser corrigida. Em contraste com isso, a proteinúria pode ser um marcador de doença glomerular em curso ou de lesão glomerular crônica e pode levar mais tempo para se normalizar.16
É importante ressaltar que as pacientes em nosso estudo eram jovens e não apresentavam nenhuma condição de comorbidade no momento da inclusão. Não conseguimos medir os fatores antiangiogênicos.
Este estudo teve um longo seguimento e não encontrou diferenças na função renal da maioria das pacientes após 3 anos. Parece que o dano renal causado pela pré-eclâmpsia é mais perceptível durante o curso da doença e se resolve na maioria das pacientes, embora a proteinúria possa estar presente em poucos casos, mesmo após 3 anos.
Esta foi uma pequena coorte e mais estudos com amostras maiores são necessários para se chegar às conclusões finais. Estudos futuros devem incluir marcadores séricos e urinários de pré-eclâmpsia, medidos em diferentes momentos.
Na pré-eclâmpsia, a podocalixina urinária pós-parto diminuiu antes da proteinúria. Após três anos, a creatinina sérica, a podocalixina urinária e a proteína urinária tendem a se normalizar, embora algumas pacientes com pré-eclâmpsia ainda possam apresentar proteinúria.
Considerações éticas: todos os procedimentos realizados em estudos envolvendo participantes humanos estavam de acordo com os padrões éticos do comitê de pesquisa institucional e/ou nacional e com a declaração de Helsinque de 1964 e suas posteriores alterações ou padrões éticos comparáveis.