Compartilhar

Seguindo as pegadas do caminho do ouro: um começo para as pesquisas sobre a experiência norte-americana na ilha de Santa Catarina

Seguindo as pegadas do caminho do ouro: um começo para as pesquisas sobre a experiência norte-americana na ilha de Santa Catarina

Autores:

Cecilia Luttembarck Oliveira Lima Rattes

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.24 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017000200017

O livro “A caminho do ouro: norte-americanos na ilha de Santa Catarina”, de Marli Cristina Scomazzon e Jeff Franco, debruça-se sobre a presença de norte-americanos1 na vila de Nossa Senhora do Desterro, localizada na ilha de Santa Catarina, em meados do século XIX. A descoberta do ouro na Califórnia, em 1848, atraiu uma multidão advinda principalmente da costa leste norte-americana, interessada nas promessas de fortuna; dirigir-se ao oeste, porém não era uma tarefa simples. O interior dos EUA ainda era perigoso, repleto de obstáculos naturais e habitado por população hostil. A travessia pelo México era complicada, e a estrada transcontinental americana só seria inaugurada em 1869. A rota considerada mais segura consistia em contornar a América do Sul, passando pelo cabo Horn. O caminho era conhecido e já havia sido utilizado por baleeiros e viajantes que comercializavam com o Oriente. A cidade de Desterro era uma das opções de parada, e, inevitavelmente, seu porto atraiu um grande fluxo de visitantes.

O livro divide-se em três capítulos. No primeiro, os autores descrevem a mobilização gerada pela notícia de ouro na Califórnia: a quantidade de barcos que se dirigiram ao Brasil, os perigos encontrados no mar e o dia a dia da viagem. Narram ainda o contato ianque com a ilha: suas percepções sobre a natureza local, a cidade e seu povo; como também as dificuldades em lidar com as burocracias portuárias e as diferenças culturais. No segundo capítulo, resgatam a memória dos ilhéus em relação à experiência estrangeira. Utilizando documentos oficiais e periódicos brasileiros da época, os autores tentam explicar a mistura de sentimentos vivida pelos catarinenses, que oscilavam entre a boa hospitalidade, prognósticos de bons negócios e a hostilidade e desconfiança diante de número tão grande de forasteiros. Já no último capítulo, abordam os autores o funcionamento do consulado norte-americano na cidade, mencionando, sobretudo, a atuação de alguns cônsules no período da “febre do ouro”. O livro procura relatar o encontro estadunidense com a região e as formas como a população local teria reagido a essa “invasão estrangeira”.

Apesar de ser um texto agradável e de fácil leitura, e de conter material relevante, a obra, quando analisada como um estudo histórico, apresenta limitações. Houve a tentativa de criar uma descrição do passado a partir da transcrição de documentos, porém predomina uma visão de que os textos falam por si, não existindo problematização ou contextualização adequada do período estudado. A narrativa não abordou, por exemplo, as relações políticas vividas entre o Brasil Imperial e os EUA, embora fosse um momento de insegurança na América Latina, com a recém-anexação de territórios mexicanos, o fortalecimento de uma política expansionista estadunidense e a formulação do Destino Manifesto.

É interessante pensar que as relações diplomáticas entre Brasil e EUA, embora fossem consideradas cordiais, foram igualmente marcadas por tensões ao longo do período imperial e início da Primeira República. Na década de 1850 – mesmo período abordado no livro –, existiu uma campanha norte-americana de ocupação da Amazônia. Exigia-se a abertura do Amazonas e preparavam-se expedições que antecederiam a vinda de empresários, colonos e escravos para a região. Representantes do governo de Washington tentavam angariar apoio a sua causa junto aos países fronteiriços com o Brasil, indispondo-os contra a monarquia, que mantinha o Amazonas fechado à livre navegação internacional. Não faltaram pressões; porém, o Brasil não cedeu às exigências, conquanto tentasse manter a cordialidade com a potência do norte. Jornais brasileiros da época publicavam notícias alarmistas, denunciando a possibilidade de uma ocupação ianque especialmente no norte do país.2

Em vários momentos da leitura, não é difícil indagar se Desterro poderia representar as tensões vividas entre as duas nações, já que a ilha recebia diariamente centenas de norte-americanos. Os autores expuseram inúmeros conflitos entre a população estrangeira e a brasileira que chegaram, muitas vezes, às esferas diplomáticas, mas o livro aborda tais questões pautando-as em justificativas baseadas na bebedeira e na farra dos visitantes. A obra tem trechos promissores, que possibilitariam um diálogo com a historiografia já produzida, como, por exemplo, a construção de um discurso nacionalista norte-americano, no qual o “espírito aventureiro” teria papel central; as concepções de fronteira e imperialismo desenvolvidas na época; ou a visão estrangeira construída sobre o Brasil (permeada por noções de “Paraíso” e “Inferno”).

As imagens apresentadas também não foram exploradas, transformando-se em simples ilustrações. Desconsiderou-se aquilo que possuem de mais expressivo: suas relações com os momentos históricos nos quais vieram à luz. Elas precisariam ser melhor analisadas como fontes históricas, uma vez que se ligaram a um modo particular de percepção, moldada na experiência social. O exame dos documentos visuais, tanto de sua constituição plástica quanto de seu conteúdo, permitiria inferir, por exemplo, sobre os objetivos do artista assim como entender algumas demandas de seu tempo. Em determinadas imagens do livro é possível identificar valores estéticos pertencentes a uma tradição colonialista, em que se abordavam conceitos como “conquista”, “poder” e “masculinidade”.3 Representações como essas haviam sido expostas na imprensa norte-americana como forma de corroborar a ideia de um ímpeto natural de seus cidadãos em desbravar novos territórios, justificando, assim, uma política expansionista.4 Diante disso, é possível questionar se as imagens apresentadas no livro não poderiam se integrar a esse repertório simbólico responsável pela criação de uma identidade nacional estadunidense.

O livro carece de mais reflexões teóricas e diálogos com a literatura acadêmica, já que os documentos dão abertura para isso. Ou seja, há grande potencial nas fontes, mas o texto pesa a descrição de acontecimentos. Apesar desses limites, o livro possui riquezas. Os autores conseguiram reunir um interessante conjunto de documentos, que versam sobre narrativas de viagem, artigos publicados em revistas e jornais, correspondências oficiais e imagens. Além disso, o tema continua pouco explorado pela historiografia, o que garante a sua originalidade. A obra pode ser usada como ferramenta para os historiadores que desejem enveredar-se pelo estudo da expansão estadunidense no Oitocentos ou pela presença norte-americana no Brasil imperial, sendo capaz de descortinar novas possibilidades de análises.