versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.22642017
Estudos têm demonstrado que o desempenho escolar durante a adolescência é um importante preditor social e ocupacional na vida adulta1,2. No entanto, o processo educacional é complexo e é determinado por uma série de fatores, como o status socioeconômico, a dinâmica familiar, as relações escolares e o desenvolvimento emocional e cognitivo dos alunos3,4.
Mais recentemente, a partir de uma perspectiva dos fatores de proteção, as pesquisas têm se voltado a investigar os recursos que protegem as crianças e os adolescentes dos efeitos das adversidades enfrentadas no ambiente escolar e, por consequência, contribuem para um melhor desempenho acadêmico5,6. Os trabalhos apontam a importância de se compreender como os alunos podem superar as dificuldades emocionais e acadêmicas do cotidiano, usando seus recursos de enfrentamento individuais. Uma maneira de investigar e entender esses mecanismos individuais é através da teoria salutogênica7.
A teoria salutogênica tem como foco o estudo dos recursos que facilitam o enfrentamento das adversidades ao longo da vida. O Senso de Coerência (SOC), constructo central da teoria, representa um atributo essencial para esse processo. O SOC consiste em uma orientação global no sentido de ver a vida estruturada, manejável e com sentido emocional6. Trata-se de uma forma individual de pensar, sentir e agir com uma autoconfiança que leva as pessoas a identificarem e a utilizarem os recursos disponíveis para lidarem com as situações desafiadoras da vida7,8. O Senso de Coerência individual é composto por três elementos: cognitivo (habilidade de compreender com clareza o caráter do problema a ser enfrentado), comportamental (noção de que os recursos adequados para lidar com a situação existem e podem estar sob seu próprio controle ou sobre o controle de pessoas de sua rede social) e motivacional (capacidade de conferir sentido emocional às situações vividas). Perceber o mundo compreensível, manejável e com significado emocional facilita o enfrentamento das adversidades da vida7.
Para mensurar o SOC, inicialmente, Antonovsky7 desenvolveu uma escala ordinal com 29 itens (Senso de Coerência 29 ou SOC-29) para ser aplicada no formato de entrevista ou de questionário. A versão mais curta dessa escala (SOC-13) contém 13 itens e foi adaptada transculturalmente no Brasil por Bonanato et al.9. O escore do Senso de Coerência é obtido por meio do somatório dos itens. Quanto maior o escore, mais forte é o Senso de Coerência.
Um alto Senso de Coerência2,10 e boas condições de saúde bucal11-14 têm sido apontados como recursos que favorecem um melhor desempenho escolar entre os jovens. O SOC tem papel especialmente relevante se considerarmos que o ambiente escolar pode ser importante fonte de estresse para os adolescentes devido à pressão por bons resultados nos exames, por exemplo. Alguns autores enfatizam que o SC pode apresentar certa estabilidade a partir dos 15-16 anos de idade, podendo, portanto, colaborar na mediação dos fatores estressores durante a adolescência15,16. Um SOC alto na adolescência é capaz de reduzir a percepção de estresse e diminuir os problemas internalizantes e externalizantes nessa fase de mudanças psicológicas e cognitivas da vida do indivíduo17.
É especialmente importante compreender esse mecanismo de enfrentamento em adolescentes de baixo extrato socioeconômico, tendo em vista as consequências negativas que os problemas socioemocionais, comportamentais e as adversidades familiares geram sobre o processo de aprendizagem desse grupo social18.
Embora existam estudos que abordem a complexidade dos fatores implicados no desempenho escolar19,20, nenhum incluiu, em um mesmo modelo, variáveis bucais e recursos psicossociais como o Senso de Coerência enquanto recursos de proteção para esse desfecho.
Investigar o papel do Senso de Coerência e da saúde bucal sobre o desempenho acadêmico de escolares pode contribuir para a elaboração de políticas no campo da educação e da saúde que favoreçam o desenvolvimento de recursos que beneficiem o aprendizado e o desenvolvimento do adolescente gerando, paralelamente, benefícios para a saúde de tal grupo etário.
Frente à relevância dessa temática, o objetivo deste estudo foi analisar a existência de associações entre o Senso de Coerência, as condições de saúde bucal, características sociodemográficas e de acesso aos serviços odontológicos no desempenho escolar dos adolescentes de baixo extrato socioeconômico.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CEP/UFMS). Foram seguidos todos os procedimentos normativos e éticos tais como: a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Termo de Assentimento, e a autorização oficial da Secretaria de Estado de Educação (SED) de Mato Grosso do Sul, para realização da coleta de dados.
Estudo transversal analítico.
Participaram deste estudo 381 adolescentes de baixo extrato socioeconômico, de 15 a 18 anos, aleatoriamente selecionados, matriculados no ensino fundamental e ensino médio de escolas estaduais do município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul (MS), no ano de 2013.
De acordo com os dados da Secretaria Estadual de Educação do Mato Grosso do Sul, o município de Campo Grande contava, na época da pesquisa, com 76 escolas estaduais, distribuídas em oito sedes urbanas da cidade, a saber: Anhanduizinho (5), Bandeira (6), Sul (12), Hércules (8), Segredo (12), Central (12), Imbirussu (13), Lagoa (8). Foram excluídas as escolas que não possuíam turmas de ensino médio, as escolas indígenas e as pertencentes à zona rural, totalizando 61 escolas participantes e 27.274 escolares matriculados no ensino médio.
Aplicou-se uma técnica de amostragem probabilística por conglomerados para selecionar as escolas estaduais por macrorregião. O primeiro sorteio das escolas foi baseado na divisão do município por sede urbana. Algumas escolas apresentaram resistência para aplicação da pesquisa (região Segredo, Sul e Hércules).
Ao final, foram totalizadas nove escolas participantes, duas na região do Anhanduizinho, quatro na região Bandeira, uma para a região Central, Imbirussu e Lagoa, respectivamente. O tamanho da amostra foi calculado considerando um erro amostral de 5%, nível de confiança de 95% e resposta de distribuição de 50%, totalizando 385 alunos, selecionados aleatoriamente nas escolas participantes do estudo.
Foram incluídos os estudantes sorteados, matriculados nas escolas públicas selecionadas, com idade de 15 a 18 anos, que aceitaram participar da pesquisa e levaram o TCLE assinado pelos pais ou responsáveis que estavam presentes no dia do levantamento. Foram excluídos três alunos da pesquisa que possuíam cinco ou mais dentes com bandas ortodônticas.
Para a coleta de dados sociodemográficos (idade, gênero, anos de estudo, renda familiar mensal, número de pessoas moradoras na casa) e sobre a autopercepção da saúde bucal e utilização de serviços odontológicos, utilizou-se um questionário adaptado do Projeto SB Brasil 201021.
A necessidade de tratamento dentário foi avaliada por meio da seguinte pergunta: “Você acha que necessita de tratamento odontológico?”. O impacto das condições bucais nas atividades diárias foi questionado também, através das perguntas: “Nos últimos 6 meses, apresentou dificuldades de comer ou beber por causa dos dentes?”; “Nos últimos 6 meses, apresentou incômodo ao escovar os dentes?” e “Nos últimos 6 meses, sentiu vergonha de sorrir ou falar?”. As respostas alternativas eram sim ou não.
A utilização de serviços odontológicos foi avaliada por meio das questões: “Já foi ao dentista alguma vez?” (sim, não, nunca foi ao dentista) e “Qual foi o motivo da consulta?” (consulta de rotina, consulta curativa ou outros).
Foi utilizada, no estudo, a versão validada do SOC9, composta por 13 questões, cada uma com cinco opções de respostas em escala likert. As primeiras cinco perguntas da escala são referentes à compreensão e as quatro questões seguintes dizem respeito à capacidade de manejo e as demais à habilidade de conferir sentido emocional. O escore total do SOC foi obtido através do somatório das pontuações de todas as dimensões do instrumento, sendo que o seu valor absoluto pode variar de 13 a 65. Quando analisado, os maiores valores do escore representam uma maior capacidade do indivíduo para enfrentar as situações estressantes e se manter saudável7.
Para o cálculo do desempenho escolar dos alunos, foi considerado o somatório das notas finais referentes às disciplinas de Matemática e Português do ano 2013, que variaram de 0 a 10 cada, de acordo com o regulamento das escolas estudadas. As notas foram obtidas a partir de documentos disponibilizados pelas instituições participantes.
Para a aplicação do questionário, os alunos eram chamados em pares na sala de aula e se dirigiam para um ambiente confortável nas dependências da escola, e que oferecesse privacidade aos alunos.
Após o preenchimento do questionário, realizou-se o exame clínico bucal, utilizando-se o índice CPO-D (total de dentes cariados, perdidos e obturados na dentição permanente), seguindo os códigos e critérios da Organização Mundial de Saúde22. O exame foi realizado por duas examinadoras, previamente calibradas, e auxiliado por duas anotadoras, sob luz natural, com o estudante sentado e a examinadora em pé, com uso de equipamento de proteção individual (EPI) completo: jaleco, gorro, máscara, óculos de proteção e luvas descartáveis. Foram utilizadas sondas do tipo ball point apenas para a remoção de placa, espelho bucal devidamente esterilizados e em alguns casos, abaixadores de língua de madeira.
O processo de treinamento e calibração foi realizado em uma escola do polo Central durante o mês de setembro de 2013. Foi realizada uma exposição dialogada com as orientações do SB Brasil21 e o uso de recursos multimídia. Nessa oportunidade, foi realizado também um estudo piloto com 40 estudantes com a finalidade de ajustar o questionário e evitar dificuldades no seu preenchimento pelos adolescentes.
A concordância intra e inter examinadores, necessária para aplicação do exame clínico (CPO-D), foi realizada por meio do coeficiente Kappa. O Kappa inter examinador foi 0,84 e o intra examinador 0,89 e 0,92.
Considerou-se como variável dependente o desempenho escolar. As variáveis independentes foram: as condições sociodemográficos (idade, gênero, anos de estudo, renda familiar mensal, número de pessoas moradoras na casa), o Senso de Coerência, a autopercepção da saúde bucal, a utilização de serviços odontológicos e a variável clínica (CPO-D).
Realizou-se análise descritiva, por meio de tabela de frequência e medidas de tendência central e dispersão. Em seguida, foram estimados modelos de regressão simples e múltipla, pelo procedimento PROC GENMOD do programa estatístico SAS (SAS, 2001). Inicialmente foi estimado o modelo vazio (modelo 1), sem a inclusão das variáveis, para se avaliar a redução da variância em relação ao modelo final. As variáveis que apresentaram p ≤ 0,20, na análise individual, foram testadas na análise múltipla. Um modelo final foi ajustado com as variáveis que permaneceram com p ≤ 0,05, após o ajuste das demais variáveis.
A Tabela 1 apresenta os valores da média, desvio padrão, mediana, valor mínimo e máximo da variável idade, CPO-D, Senso de Coerência, desempenho escolar, escolaridade, número de pessoas na casa e renda familiar mensal.
Tabela 1 Média, Desvio padrão, Mediana, Valor mínimo e Valor máximo das Variáveis analisadas.
Variável | Média | Desvio padrão | Mediana | Valor mínimo | Valor máximo |
---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 16,2 | 1,2 | 16,0 | 14,0 | 18,0 |
CPO-D | 4,1 | 3,4 | 4,0 | 0,0 | 15,0 |
Senso de Coerência | 44,5 | 6,4 | 44,0 | 24,0 | 65,0 |
Desempenho escolar | 12,8 | 2,2 | 13,0 | 4,5 | 18,5 |
Escolaridade (anos de estudo) | 12,5 | 2,1 | 11,0 | 11,0 | 14,0 |
Número de pessoas na casa | 4,5 | 1,2 | 4,0 | 2,0 | 8,0 |
Renda familiar mensal | 2109,1 | 1798,5 | 1600,0 | 350,0 | 17000,0 |
Do total da amostra, 61,41% dos adolescentes eram do sexo feminino e 38,58% do sexo masculino, 62,81% perceberam necessidade de tratamento odontológico, 97,09% já visitaram o dentista, sendo que 68,35% dos indivíduos procuraram o dentista para consulta de rotina e 18,88% para consulta curativa. A maioria dos participantes (83,53%) não relatou incômodo ao escovar os dentes e nem vergonha de sorrir ou falar (78,98%). Além disso, 62,76% dos indivíduos não relataram dificuldades de comer ou beber por causa dos dentes. (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição de frequências das variáveis analisadas.
Variável | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 234 | 61,41 |
Masculino | 147 | 38,58 |
Visita ao dentista | ||
Sim | 368 | 97,09 |
Não | 11 | 2,90 |
Motivo de visita ao dentista | ||
Nunca foi | 12 | 3,19 |
Consulta de rotina | 257 | 68,35 |
Consulta curativa | 71 | 18,88 |
Outros | 36 | 9,57 |
Necessita de tratamento | ||
Sim | 223 | 62,81 |
Não | 132 | 37,18 |
Dificuldades de comer ou beber por causa dos dentes | ||
Sim | 140 | 37,23 |
Não | 236 | 62,76 |
Incômodo ao escovar os dentes | ||
Sim | 58 | 15,46 |
Não | 317 | 83,53 |
Vergonha de sorrir ou falar | ||
Sim | 79 | 21,01 |
Não | 297 | 78,98 |
A Tabela 3 apresenta os parâmetros estimados da análise de regressão individual e múltipla, ajustados para descrever a influência das variáveis sobre o desempenho escolar. No modelo final, os indivíduos do sexo feminino apresentaram melhor desempenho escolar do que aqueles do sexo masculino (p = 0,0014). Com relação ao número de pessoas na família, os voluntários que moravam em domicílios com maior número de pessoas tiveram um pior desempenho escolar (p = 0,0013). Os indivíduos com maior SOC apresentaram melhor desempenho escolar (p = 0,0009). Aqueles que apresentaram dificuldades para comer ou beber por causa dos dentes tiveram um pior desempenho do que aqueles sem nenhuma dificuldade (p = 0,0580).
Tabela 3 Análise individual e múltipla para o desempenho escolar como variável dependente.
Análise individual | Análise múltipla | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Modelo 1 (modelo vazio) | Modelo final | ||||||||
Estimativa | Erro padrão | p-valor | Estimativa | Erro padrão | p-valor | ||||
Intercepto | 12.8018 | 0.1138 | < 0.0001 | 10,9868 | 0,8996 | < 0,0001 | |||
Variáveis sociodemográficas | |||||||||
Sexo (ref = masculino) | 0.5823 | 0.2320 | 0.0121 | 0,7437 | 0,2322 | 0,0014 | |||
Idade (anos) | -0.0900 | 0.0971 | 0.3541 | ||||||
Escolaridade (anos de estudo) | 0.0067 | 0.0207 | 0.7453 | ||||||
Número de pessoas na família | -0.2414 | 0.0799 | 0.0025 | -0,2514 | 0,0784 | 0,0013 | |||
Renda familiar mensal | 0.0000 | 0.0001 | 0.8469 | ||||||
Variável psicossocial | |||||||||
Senso de Coerência | 0.0533 | 0.0176 | 0.0025 | 0,0584 | 0,0176 | 0,0009 | |||
Variáveis de acesso ao serviço de saúde | |||||||||
Visita ao dentista (ref=não) | -0.1250 | 0.6812 | 0.8544 | ||||||
Motivo de visita ao dentista (ref=outros) | |||||||||
nunca foi | 0.3139 | 0.7437 | 0.6730 | ||||||
consulta de rotina | 0.2578 | 0.3970 | 0.5162 | ||||||
consulta curativa | 0.0241 | 0.4565 | 0.9579 | ||||||
Variáveis do impacto da saúde bucal nas atividades diárias | |||||||||
Dificuldades para comer ou beber por causa dos dentes (ref=não) | -0.4427 | 0.2373 | 0.0621 | -0,4398 | 0,2320 | 0,0580 | |||
Incômodo ao escovar os dentes (ref=não) | 0.1547 | 0.3193 | 0.6279 | ||||||
Vergonha de sorrir ou falar (ref=não) | -0.2874 | 0.2825 | 0.3091 | ||||||
Variáveis clínicas | |||||||||
CPO-D | -0.0181 | 0.0340 | 0.5943 | ||||||
Necessidade de tratamento | -0.3822 | 0.2368 | 0.1066 | ||||||
AICC | 1693.7070 | 1638,6696 |
AICC: Akaike Information Criterion.
Este estudo mostrou que o desempenho escolar dos adolescentes foi relacionado com os fatores demográfico, socioeconômico, psicossocial e bucal. Tanto o fator psicossocial, mensurado pelo SOC10, como a condição bucal, avaliada por questões sobre impacto nas atividades diárias12,23, já foram associados ao desempenho escolar em estudos anteriores.
Alguns estudos têm procurado investigar os fatores associados ao baixo desempenho ou às dificuldades de aprendizagem dos estudantes24,25. No que se refere ao gênero, Osti e Martinelli25 apontaram que os meninos apresentam maior desempenho insatisfatório no processo de aprendizagem, se sentem mais criticados e são vistos pelos professores como estudantes indisciplinados, cujas origens do mal comportamento são atribuídas às famílias. Por outro lado, as meninas recebem mais apoio e menos desaprovação por parte dos professores, o que pode aumentar a motivação pelos estudos. Tais fatos corroboram os achados do presente trabalho, em que os meninos tiveram relação com o pior desempenho escolar, reforçando assim a necessidade de se discutir os vínculos entre alunos e professores.
Embora exista um consenso de que mesmo entre as crianças mais vulneráveis a causa principal de repetência e deserção escolar reside no comportamento e no desenvolvimento mental, são incontestáveis os efeitos das condições desfavoráveis de vida sobre o fracasso escolar26. Nesse aspecto, a aglomeração familiar, que é uma das características da baixa renda, foi relacionada com o pior desempenho escolar no presente trabalho, revelando que, de alguma forma, o agrupamento de pessoas em uma casa com poucos cômodos pode tirar a concentração e disciplina nos estudos dos jovens, possivelmente pela construção de um ambiente familiar tumultuado.
Sabe-se também que a baixa condição socioeconômica contribui para a exposição de fatores que interferem tanto na saúde bucal, como na autopercepção e na qualidade de vida27-29. Assim, os escolares participantes da pesquisa apresentaram CPO-D próximo à média nacional (4,25 dentes com experiência de cárie dentária)21, e foram observadas associações entre problemas bucais e o desempenho escolar. A relação entre dificuldade para comer ou beber por causa dos dentes e baixo desempenho escolar revela que a saúde bucal pode comprometer o aprendizado, tal como já evidenciado por outros estudos13,14,30,31. Isso porque, a condição bucal interfere na autoestima, na socialização e concentração escolar12. Além disso, estudos apontam que os problemas dentários são causas das faltas escolares, o que diminui a oportunidade de aprendizado14,32.
O Senso de Coerência mais elevado dos adolescentes esteve relacionado a melhor desempenho escolar. Esse achado pode indicar que, mesmo entre adolescentes de baixo extrato socioecômico, um SOC elevado é importante para o enfrentamento das adversidades do meio escolar. A desvantagem socioeconômica entre os adolescentes do estudo por si só representa um obstáculo para seu desempenho. Além disso, a literatura aponta que muitas crianças percebem a escola como importante fonte de estresse, seja devido à pressão por bons resultados escolares como também em decorrência da competição entre os estudantes e a alta expectativa por parte dos pais33. No entanto, para aqueles com Senso de Coerência elevado, o ambiente escolar pode não ser percebido como um fator gerador de estresse e sim como um desafio a ser enfrentado. Quando os estímulos são compreendidos enquanto experiências que podem ser superadas, esses eventos passam a ser considerados desafios a serem superados7. O Senso de Coerência elevado motiva, portanto, as pessoas a terem confiança de que o resultado alcançado será razoável, estimulando, desse modo, a busca dos recursos para lidarem com a situação. Desta forma, os estudantes com alto SOC são capazes de mobilizar os recursos adequados para manejar os desafios escolares, tendo como consequência uma melhor performance acadêmica.
Nesse sentido, além do Senso de Coerência, a disponibilidade de Recursos Gerais de Resistência (RGR) também podem ter contribuído para um enfrentamento mais efetivo das adversidades por parte dos adolescentes com alto SOC. Os RGR referem-se aos fatores que facilitam a habilidade individual de lidar efetivamente com os estressores7.
O presente estudo não pretendeu identificar outros recursos que os adolescentes lançam mão para lidar com questões acadêmicas além do Senso de Coerência e da condição de saúde bucal. Entretanto, o apoio social, um ambiente familiar que favoreça a comunicação, bem como o estabelecimento de relações afetuosas com os pais contribuem de forma significativa para que os eventos de vida, dentre eles os enfrentados no ambiente escolar, sejam percebidos como compreensíveis, manejáveis e com significado emocional17. Futuros estudos precisam aprofundar a investigação das interações complexas que envolvem o conjunto de recursos (fatores salutogênicos) que favorecem o desempenho escolar.
É importante salientar que o SOC é fruto de um processo de desenvolvimento durante a infância e a adolescência, sendo, portanto, consequência das experiências de vida individual, do processo de aprendizagem e das influências do meio. Dessa forma, intervenções no ambiente escolar que ofereçam oportunidades para que crianças e adolescentes adquiram recursos gerais de resistência podem gerar consequências positivas não somente sobre o desempenho escolar, mas, principalmente, sobre a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida. Para tanto, os programas deveriam envolver ações em vários domínios, incluindo mudanças nos currículos escolares e reforço de recursos que são fundamentais para a estruturação do SOC na adolescência, quais sejam: o empoderamento, o reforço da autoestima e da autoconfiança dos estudantes, o estreitamento das relações dos alunos com a escola, os professores, a comunidade e, principalmente, a família34. Já foi demonstrado que o apoio dos professores, de colegas de classe, assim como, os modelos de comportamento de grupo exercem papel relevante na estruturação do SOC durante a adolescência35. Tudo isso contribui para o desempenho escolar e gera mudanças favoráveis à saúde sustentáveis ao longo do tempo.
Ressalta-se que este estudo apresentou algumas limitações, por ser um delineamento transversal, não foi possível definir a relação causal entre as variáveis analisadas. É possível que um melhor desempenho escolar esteja exercendo influência sobre o Senso de Coerência dos adolescentes. A literatura já confirmou achados dessa natureza36. Estudos longitudinais são necessários para o esclarecimento dessa relação. Além disso, a amostra do estudo envolveu adolescentes de baixo extrato socioeconômico e os resultados não podem ser estendidos para outros grupos sociais com características socioeconômicas e culturais distintas. Futuros estudos devem ser realizados no sentido de explorar a complexa relação entre SOC, recursos gerais de resistência, saúde bucal e seus efeitos sobre o rendimento escolar.
Por fim, cabe destacar que os resultados encontrados são importantes, pois este foi o primeiro estudo relacionando ao SOC na presença de alterações bucais, como a cárie dentária e sua relação com o desempenho escolar em adolescentes. A melhora das condições de saúde bucal dos adolescentes aliada ao reforço do Senso de Coerência podem contribuir para o desempenho escolar. Entretanto, o desenvolvimento de políticas públicas sociais alinhadas à perspectiva salutogênica são fundamentais para viabilizar o acesso e a disponibilidade de recursos que contribuam para o desempenho acadêmico e gerem resultados positivos para o bem-estar e qualidade de vida de grupos socioeconômicos menos favorecidos.
O desempenho escolar em adolescentes é um fenômeno complexo associado ao SOC, características de saúde bucal e sociodemográficas.