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Sepse grave por salmonelose Ciprofloxacino-resistente em paciente transplantado renal

Sepse grave por salmonelose Ciprofloxacino-resistente em paciente transplantado renal

Autores:

Matheus Miranda Mendes,
Moisés Carminatti,
Hélady Sanders Pinheiro

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170014

Introdução

A diarreia é comum entre receptores de transplante renal (RTR). Muitas são suas possíveis etiologias e os casos podem variar de discretos e limitados a crônicos e incapacitantes.1-3 A prevalência de bactérias gram-negativas multirresistentes pode variar de 20% a 50% entre receptores de transplante de órgãos sólidos, dependendo da população estudada.4,5 A enterite causada por Salmonella sp. é uma forma rara de infecção que não pode ser clinicamente diferenciada da enterite aguda comum; geralmente, responde bem a tratamento com fluoroquinolonas.6-8 Em pacientes imunossuprimidos, contudo, pode se associar mais facilmente a bacteremia e, consequentemente, a um prognóstico muito pior.9-11

Neste trabalho, apresentamos um caso raro de diarreia invasiva com sepse grave causada por Salmonella sp. resistente a ciprofloxacina em um RTR, além de uma breve revisão da literatura.

Relato de caso

Um RTR do sexo masculino de 73 anos, com enxerto previamente funcional (creatinina sérica 1,2 mg/dL), em tratamento com prednisona (5 mg por via oral a cada dois dias), sirolimus (2 mg por via oral diariamente) e micofenolato mofetil (750 mg por via oral duas vezes ao dia), foi internado com histórico de cinco dias de astenia, dor abdominal difusa e diarreia aquosa não-inflamatória, com mais de dez evacuações por dia. O paciente negou ter usado antibióticos nos últimos dois anos.

O exame físico revelou que o paciente estava desidratado, taquicárdico (105 bpm), com hipotensão ortostática (90x50 mmHg) e afebril. Seu abdômen estava flácido, com peristaltismo ligeiramente aumentado e sem massa palpável. Seis meses antes, o paciente fora hospitalizado por sete dias para investigar um nódulo benigno na tireoide.

Foram realizados exames de rotina e culturas de sangue; foram colhidas amostras de urina e fezes. O paciente foi prontamente tratado com ciprofloxacina endovenosa (400 mg a cada 12 hours) e reposição volêmica com cristaloides e suplementação de potássio, uma vez que o mesmo apresentava hipocalemia grave (2,4 mEq/L), creatinina elevada (5,5 mg/dL), discreta hiponatremia (129 mEq/L) e leucograma com desvio à esquerda (20% de neutrófilos da banda). Vinte e quatro horas após a internação a dor abdominal ainda persistia, e uma radiografia simples mostrou o íleo, o que foi atribuído a hipocalemia persistente (3,1 mEq/L), desidratação e acidose metabólica (pH 7,27, HCO3 - 11 mEq/L).

No segundo dia, o paciente sofreu um episódio de diarreia sanguinolenta. A função renal (creatinina 6,6 mg/dL) e a acidose metabólica (pH 7,10, HCO3 - 4 mEq/L) pioraram, levando à instituição de hemodiálise. Inicialmente uma laparotomia exploratória foi indicada após drenagem abundante de material fecaloide através de uma sonda nasogástrica, mas depois a mesma foi contraindicada em função da má condição clínica do paciente.

O paciente apresentou melhora clínica aparente após a diálise, mas sofreu deterioração hemodinâmica e parada cardíaca 54 horas após o início da antibioticoterapia. A cultura de fezes, feita em ágar MacConkey, e a hemocultura convencional, incubada manualmente em meio de ágar chocolate, ficaram prontas apenas 24 horas após o óbito do paciente, e ambas eram positivas para uma cepa de Salmonella sp. susceptível apenas a cloranfenicol e cefalosporinas anti-pseudomonas de terceira e quarta gerações, tais como ceftazidima e cefepime, mas não a ciprofloxacina, ampicilina e cotrimoxazol. A Tabela 1 apresenta uma visão geral dos dados laboratoriais do caso.

Tabela 1 Dados laboratoriais 

Data Internação 24 h após internação 48 horas após internação (antes da diálise) 48 horas após internação (após diálise)
Creatinina (mg/dL) 5,5 6,5 6,6 2,9
Hemoglobina (g/dL) 11,3 - 10,7 -
Leucócitos (por mm3) 8.670 - 12.500 -
Neutrófilos de banda (%) 20 - 71 -
Ureia (mg/dL) 172 211 229 110
Potássio (mEq/L) 2,4 3,1 3,5 -
Sódio (mEq/L) 129 141 139 136
pH - 7,27 7,10 7,42
HCO3(mEq/L) - 11 4 18

mg/dL: miligramas por decilitro; g/dL: gramas por decilitro; mm3: milímetros cúbicos; %: porcentagem em relação ao total; mEq/L: miliequivalente por litro.

Discussão

Descrevemos um caso atípico de um RTR de 73 anos de idade, que apresentou diarreia aguda invasiva e desenvolveu sepse grave causada por uma cepa resistente a ciprofloxacina de Salmonella sp. não efetivamente tratada com antibioticoterapia padrão.

Diarreia é uma complicação relativamente comum entre RTR, com incidência superior a 20% ao ano.1,2 Geralmente é discreta, autolimitada ou indolente, e muitas vezes está relacionada a infecções virais ou bacterianas, uso de medicamentos ou toxicidade gastrointestinal causada por imunossupressores específicos, em particular as preparações com ácido micofenólico.3 A enterite causada por Salmonella sp. não pode ser clinicamente diferenciada daquelas causadas por outras bactérias, pois em ambos os casos os sintomas clássicos são febre de início agudo, diarreia e dor abdominal.6,7

A incidência de salmonelose em RTR é inferior a 2% ao ano.6,8 Trata-se de uma condição clínica com amplo espectro de gravidade, mas em hospedeiros imunocompetentes, bacteremia é observada em apenas 5-10% dos casos. Em RTR é bastante comum encontrar formas extra-intestinais de salmonelose tais como meningite, osteomielite, colangite e pneumonia (até 35%), enquanto bacteremia pode estar presente em 60-70% dos casos.9-11

Bacteremia por Salmonella sp. apresenta alto risco de mortalidade, conforme descrito em uma casuística do Massachusetts General Hospital, em que um surto registrado em 1990 levou 18% dos pacientes a óbito.7 Em geral, infecções tendem a durar mais tempo em RTR e a apresentar taxas de recidiva de 43-45% e mortalidade de 5-6%.6,10

Uma revisão da literatura que incluiu 37 casos de salmonelose em RTR identificou a presença de Salmonella sp. em 35 pacientes, com predomínio de S. typhimurium em 24 casos, S. panama em três e S. johannesburg e S. enteritidis em dois casos cada.6 No sudeste brasileiro, região em que este caso foi registrado, o sorotipo mais comum é S. enteritidis (67,4%), seguido por S. typhimurium.11

As infecções causadas por Salmonella sp. devem ser tratadas com antibióticos venosos empíricos, preferencialmente em esquema de 14 dias consistindo de fluoroquinolona ou cefalosporinas de terceira geração, iniciado após hemocultura e cultura de fezes padrão, cultivadas em ágar chocolate, ágar com sangue de ovelha ou ágar MacConkey, conforme o caso.3,7,12

Nos casos de bacteremia associada a Salmonella sp., as mesmas classes de antibióticos são indicadas, mas o tempo de antibioticoterapia deve ser individualizado, pois pode ser necessário tratamento mais prolongado ou intervenção cirúrgica por conta da maior incidência de recidivas observadas em hospedeiros imunocomprometidos e da possibilidade de haver uma fonte de infecção persistente, como um abscesso.3,7,12

O caso descrito tem a particularidade de apresentar uma forma extremamente grave de salmonelose, causada por uma cepa de Salmonella sp. com amplo espectro de resistência, que inclui a ciprofloxacina, o que não é comum na literatura e impossibilitou o diagnóstico em tempo hábil por meio de culturas, razão pela qual o tratamento antibiótico inicial com ciprofloxacina não foi alterado.13

Além disso, o paciente não apresentava nenhum fator de risco específico para infecção bacteriana resistente a ciprofloxacina, tais como tratamento anterior com antibióticos de amplo espectro, uso prolongado de qualquer dispositivo médico ou internação prolongada recente, e apresentava boas condições clínicas já por um longo período antes do início da enterite.14 A falta de resposta clínica não pôde ser avaliada de forma exaustiva, uma vez que um período inferior a 48 horas havia transcorrido entre a internação e o imediato início da antibioticoterapia e a manifestação de uma piora clínica mais acentuada.

A prevalência global de infecções resistentes causadas por bactérias Gram-negativas vem aumentando nos últimos anos. O mesmo padrão também foi relatado em receptores de transplantes. As bactérias resistentes a fármacos mais clinicamente importantes relatadas em pacientes transplantados incluem as não-fermentadoras da lactose tais como Pseudomonas sp., Burkholderia sp. e Stenotrophomonas sp.; Acinetobacter sp. resistentes a carbapenêmicos; e Enterobacteriaceae multirresistentes, com as Enterobacteriaceae resistentes a carbapenêmicos suscitando particular preocupação. Vale ressaltar que as espécies de Salmonella não fazem parte do grupo de maior preocupação.14

Nesse caso em particular, as bactérias isoladas, apesar de apresentarem padrão de resistência bastante amplo que incluía ciprofloxacina, eram suscetíveis a alguns antibióticos - caso do cloranfenicol - e, portanto, não podiam ser classificadas como multirresistentes.15 A salmonelose resistente a ciprofloxacina é bastante rara, apesar do crescimento do número de casos relatados na literatura. Foi sugerido que sua ocorrência pode estar relacionada a uso prévio de antibióticos, contactantes ou uso agrícola de quinolonas. O paciente descrito no presente caso não relatou exposição prévia a ciprofloxacina.15

Em conclusão, o padrão resistente a ciprofloxacina tornou o tratamento ineficaz e o paciente desenvolveu uma forma invasiva e letal de infecção. Este caso ilustra que manifestações bastante comuns como a diarreia podem corresponder a formas de infecção potencialmente fatais e raras em RTR, sugerindo que, além de outras formas de bactérias resistentes, a possibilidade de salmonelose resistente a ciprofloxacina deve ser considerada quando a antibioticoterapia inicial baseada em evidências não conduzir a melhora clínica dentro de 48 horas de tratamento.

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