versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.2 Rio de Janeiro fev. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015
No Brasil, o Código Penal isenta de punição para a prática do aborto quando há risco de morte para a mulher ou quando a gravidez é decorrente de estupro1. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal incorporou a gravidez de feto com anencefalia como condição possível de interrupção da gestação2. Apesar de a lei brasileira possibilitar a interrupção voluntária da gravidez decorrente de estupro desde a década de 1940, o acesso aos serviços de saúde não foi regulamentado por quase 50 anos. Em 1989, a Prefeitura Municipal de São Paulo implantou o primeiro serviço de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual no Hospital Municipal Artur Ribeiro de Saboya, conhecido como “Hospital do Jabaquara”. Para ter acesso ao aborto, a mulher deveria apresentar a cópia do Boletim de Ocorrência (BO) e do laudo pericial do Instituto Médico Legal (IML)3.
A regulamentação nacional do aborto previsto em lei ocorreu em 1999, com o lançamento da norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que estimulava e normatizava a estruturação dos serviços4. Atualizada em 2005 e 2011, a norma isentava a mulher de apresentar BO ou laudo do IML. De acordo com essas regulamentações, o único documento necessário para a interrupção da gravidez decorrente de estupro seria o consentimento por escrito da mulher5,6. A implementação da maior parte dos serviços ganhou fôlego com a reedição da norma técnica em 2005, e o dado oficial divulgado pelo Ministério da Saúde era de 60 serviços de aborto previsto em lei estruturados no país em 20097.
Apesar do avanço obtido com a instalação dos serviços em todas as regiões do país, as mulheres vivenciam muitas dificuldades para o acesso ao serviço de aborto. Uma pesquisa realizada em 2003, por meio de questionários enviados pelo correio a ginecologistas e obstetras, observou que cerca de 2/3 dos médicos acreditavam ser necessária a autorização judicial para realização do aborto previsto em lei8. Outro levantamento entre ginecologistas e obstetras de todo o país, em 2012, evidenciou que 81,6% deles solicitavam BO ou outro tipo do documento (como laudo do IML, autorização do comitê de ética hospitalar ou alvará judicial)9. Além disso, a veracidade do relato de estupro feito pela mulher é frequentemente contestada, e sua palavra não é suficiente para garantir a interrupção da gravidez10.
Outra barreira para a adequada estruturação dos serviços de aborto legal tem sido a identificação de profissionais de saúde com disponibilidade para assistência ao aborto permitido pela lei. Seja pelo estigma de serem conhecidos como “aborteiros”, pelo medo de serem processados ou ainda por objeção de consciência moral ou religiosa, o fato é que muitos médicos se recusam a realizar o aborto9,11-13. A norma técnica estabelece que os médicos têm o direito individual de objeção de consciência à prática do aborto, mas também regulamenta que os serviços públicos credenciados para atendimento das vítimas de violência sexual devem garantir o atendimento em tempo hábil por outro profissional da instituição ou de outro serviço. Entretanto, o direito à objeção de consciência não é reconhecido na falta de outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou se a omissão do atendimento puder causar danos6.
A situação do atendimento nos serviços públicos às mulheres vítimas de violência sexual no Brasil foi alvo de duas pesquisas em 2005. A primeira delas avaliou 56 hospitais listados como serviços especializados para a interrupção da gravidez prevista em lei. Os dados mostraram que somente 37 deles estavam capacitados para o aborto legal, que 5 nunca tinham realizado esse procedimento e que, em 6 estados, não havia serviço estruturado. Além disso, 70% dos atendimentos ocorreram na região Sudeste, cujos serviços receberam encaminhamentos de todas as regiões do país14. O segundo estudo, que entrevistou gestores e profissionais de 1.395 estabelecimentos de saúde que prestavam atendimento às mulheres vítimas da violência sexual, mostrou que apenas 12% dos serviços haviam realizado pelo menos um aborto, 53% ofertavam anticoncepção de emergência e 45% ofereciam profilaxia contra HIV15.
Com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, a interrupção da gravidez em caso de anencefalia passou a ser um direito de assistência sem necessidade de autorização judicial. Assim, os serviços de aborto legal também realizam o atendimento desses casos. O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n. 1.989, de 10 de maio de 2012, estabeleceu os critérios para a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo: “duas fotografias, identificadas e datadas, uma com a face do feto em posição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável; laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico”16.
Apesar de a avaliação periódica dos serviços estar especificada na norma técnica de 20116, isso não acontece de maneira regular. O percurso de uma mulher vítima de violência sexual que deseja interromper a gravidez pode ser dificultado por obstáculos geográficos, institucionais ou de consciência dos profissionais que as atendem. Não existem dados consolidados sobre a qualificação e a composição das equipes, sobre o número de abortos realizados por todos esses serviços, e tampouco se ofertam acesso real e facilitado às mulheres. Este artigo descreve os resultados de um estudo censitário nos serviços especializados que atendem mulheres vítimas de violência sexual e habilitados para o aborto previsto em lei no país. O objetivo principal é apresentar dados atualizados sobre a estrutura dos serviços e a situação do atendimento à violência sexual, além do perfil das mulheres e das características do aborto.
Trata-se de estudo de métodos mistos, de abrangência nacional, tendo como unidade de análise os serviços de aborto legal no Brasil em 2013-2015. Foram avaliados os 60 serviços listados pelo Ministério da Saúde como em funcionamento em 20097. Antes do início da coleta de dados, houve checagem por telefone, com as Secretarias Estaduais de Saúde e a Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, para avaliar criação ou extinção de algum serviço. Como resultado, mais 8 instituições foram incorporadas ao estudo, totalizando 68 serviços. A coleta de dados ocorreu de julho de 2013 a março de 2015 e compreendeu duas etapas: a primeira, à distância, e a segunda, presencial.
Primeiro, um questionário estruturado foi enviado por via eletrônica (e-mail) a todos os serviços com perguntas sobre: i. ano de implantação; ii. composição da equipe; iii. condutas no atendimento em violência sexual; iv. realização de interrupção da gravidez prevista em lei; v. documentação exigida para o aborto legal; vi. técnicas para interrupção da gravidez; e vii. número de mulheres que já realizaram aborto. Para cada serviço, foram enviados carta de apresentação da pesquisa e parecer de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. As próprias instituições designaram um profissional responsável pelo preenchimento do questionário e devolução à equipe de pesquisa.
Segundo, foram visitados 5 serviços de cada uma das regiões do país. Os critérios para escolha desses serviços foram já terem realizado aborto legal nos 5 anos anteriores e serem de referência para a região em número de atendimentos. Essa etapa foi constituída por duas fases: análise do perfil das mulheres e das características do aborto legal em cada serviço pela pesquisa nos arquivos de prontuários; e entrevistas com a equipe multiprofissional. Os dados coletados em cada serviço foram aqueles disponíveis no arquivo institucional desde a fundação: entre os cinco serviços, três foram fundados nos anos 1990 e dois nos anos 2000. Para os dados sobre aborto, foi preenchido formulário padronizado com base nos prontuários das mulheres, que continha questões sobre cor, idade, escolaridade, estado civil, religião, idade gestacional, justificativa para o aborto e técnica empregada para a interrupção. As entrevistas com os profissionais foram guiadas por roteiro semiestruturado composto por 10 perguntas com 2 categorias de análise (estrutura do serviço e padrão e dificuldades de atendimento no aborto legal). Foram entrevistados 82 profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e técnicos de enfermagem. As entrevistas foram realizadas por duas pesquisadoras em local disponibilizado pelo hospital. Os instrumentos de pesquisa foram pré-testados em serviço da região Sudeste, onde o número de abortos se mostrou regular ao longo dos anos.
Os dados quantitativos foram tabulados em planilha Microsoft Excel para análise descritiva. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Três pesquisadoras leram e codificaram as entrevistas, e os dados foram tabulados por meio de um instrumento composto por duas questões: se havia dificuldades para o funcionamento do serviço e, caso houvesse, como elas ocorriam. Os padrões foram comparados e, em caso de discrepância, as transcrições foram revisadas.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. No entanto, houve exigência de nova revisão ética por comitês institucionais em 9 serviços, tanto na primeira como na segunda etapa da pesquisa. O tempo de aprovação do parecer da nova revisão foi, em média, de quatro meses, mas um dos serviços demorou 14 meses para concluir a reavaliação ética. Em um deles, os dados da fase censitária somente foram recuperados após consulta via Lei de Acesso à Informação, pois havia recusa sistemática em autorizar a pesquisa. Todos os profissionais concordaram previamente com a entrevista e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Dos 68 serviços avaliados, 37 informaram que realizam interrupção da gravidez por estupro (37/37), por risco de morte da mulher (27/37) e por anencefalia (30/37). Apesar de realizarem a interrupção da gravidez, 2 hospitais informaram que encaminhavam o caso para outro serviço quando a gestação era acima de 14 semanas. Dos serviços inativos, 28 disseram que deixaram de fazer o aborto legal e 4 informaram que nunca fizeram. Entre os serviços em atividade, 29 foram implementados até 2005, tendo apenas 8 sido estruturados após essa data e, destes, somente 2 nos últimos 2 anos. Os serviços são distribuídos em 20 unidades da Federação (5 na região Norte, 11 no Nordeste, 3 no Centro-Oeste, 6 no Sul e 12 no Sudeste), mas em 7 estados não há serviço ativo (1 na região Sul, 1 no Centro-Oeste, 2 no Nordeste e 3 no Norte). Apenas em 6 estados há mais de 1 serviço, e em 4 deles existem serviços localizados fora das capitais (8 cidades).
Todas as 37 instituições em funcionamento informaram ter equipe multiprofissional mínima (médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social) no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual. No entanto, em 35 (95%) deles não havia equipe específica, sendo o atendimento feito pelos profissionais em regime de plantão. Em dois serviços, havia presença de advogado (assessor jurídico) na equipe e, em 3 deles, havia médico psiquiatra e infectologista. 15 serviços informaram selecionar os profissionais por meio de concurso público específico para composição da equipe de aborto previsto em lei.
Sobre o atendimento inicial às vítimas de violência sexual, 35 (95%) dos 37 serviços ativos ofertavam anticoncepção de emergência, 33 (89%) prescreviam profilaxia para DST não virais e 34 (92%) realizavam profilaxia das DST virais. A coleta de material para possível identificação do agressor é feita em somente 2 serviços. Para a interrupção da gravidez por estupro, houve relato de solicitação de autorização por escrito da mulher em 34 serviços (34/92%), BO (5/14%), laudo do IML (3/8%), alvará judicial (3/8%), parecer do Comitê de Ética institucional (4/11%) e, ainda, despacho do Ministério Público (3/8%). Em caso de anencefalia, 2 (6%) serviços ainda requeriam o alvará judicial como condição para a interrupção da gravidez.
Os serviços em atividade informaram que foram atendidas 5.075 mulheres em busca do aborto legal e, desse total, 2.442 realizaram a interrupção da gravidez. O primeiro serviço foi criado em 1994 e o mais recente em 2014. Chama a atenção o fato de que 15 serviços realizaram menos que 10 procedimentos nos últimos 10 anos, sendo 4 deles localizados em capitais e os únicos da região. Os métodos disponíveis nos serviços para a interrupção da gravidez foram curetagem uterina (89%), uso de medicamentos (97%), aspiração manual intrauterina (86%) e aspiração elétrica (3%).
Foram analisados 1.283 prontuários de mulheres que realizaram o aborto legal em 5 serviços de cada região do país, sendo que um deles foi responsável por 80% do total de procedimentos registrados. Em 4 serviços, havia arquivo com os casos de interrupção da gravidez prevista em lei desde sua implementação, porém em um deles somente havia arquivo dos casos atendidos nos cinco últimos anos. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dessas mulheres. Houve uma concentração de mulheres na faixa de 15 a 29 anos (62%), solteiras (71%), com ensino médio (37%) e católicas (43%). Deve ser destacado que 38% delas ainda eram crianças e adolescentes, sendo que 5 tinham menos de 10 anos.
Tabela 1 Características sociodemográficas das mulheres. Serviços de Aborto Legal no Brasil, 2013-2015.
i Os percentuais foram arredondados; ii Faltaram dados em 108 casos (8%); iii Faltaram dados em 74 casos (6%); iv Faltaram dados em 136 casos (11%); v Houve maior número de casos analisados em serviços do Sudeste e Sul, o que pode explicar a concentração de mulheres da cor/raça branca, além do que nos outros serviços este não era um dado de registro nos prontuários; vi Faltaram dados em 192 casos (15%).
A Tabela 2 mostra que o principal motivo para o aborto legal foi o estupro (94%). A idade gestacional predominante para a interrupção da gravidez foi entre 9 e 14 semanas (41%). A antecipação do parto por anencefalia foi responsável pela maioria dos casos de interrupção acima de 20 semanas (apenas 5%). Quanto ao método para o aborto, houve emprego mais frequente da aspiração manual intrauterina (45%) e do misoprostol (32%).
Apesar das características diferenciadas de cada serviço, na perspectiva dos profissionais entrevistados, existem dois principais obstáculos para o funcionamento dos serviços de aborto legal atualmente. Primeiro, a pequena disponibilidade dos profissionais, principalmente médicos, para a realização do aborto. Segundo, a necessidade de maior capacitação da equipe quanto à ampliação do conhecimento sobre a legislação e sobre a garantia de direitos em saúde sexual e reprodutiva. A infraestrutura dos serviços foi pouco apontada como problema, ainda que a ausência de espaços específicos para atendimento e a internação conjunta com puérperas e recém-nascidos tenham sido citadas.
A maioria dos relatos expressa uma dinâmica do atendimento marcada pelo acolhimento das mulheres, além da tentativa de agilidade e resolutividade dos casos. Nos cinco serviços, havia equipe multiprofissional para o atendimento inicial da vítima de violência sexual, com prescrição de medicações para profilaxia da gravidez e infecções. Para a maior parte dos entrevistados, as dificuldades têm início com a decisão da mulher pelo aborto. A interrupção da gravidez é, segundo eles, responsabilidade dos médicos obstetras que estiverem de plantão no dia e, se estes recusarem o procedimento, as mulheres “[...] precisam esperar até o dia em que outro [médico], em outro plantão, concorde em fazer o aborto. E tem anestesista que concorda, tem aquele que não concorda. Às vezes, isso pode demorar algum tempo [...]”. A negociação para o atendimento da mulher também acontece com outros profissionais, como aponta uma das entrevistadas: “[...] a gente tem que pensar também nas auxiliares [de enfermagem] e, no dia do aborto, a gente põe aquelas que circulam na sala de cirurgia, que não causam problema [...]”.
Para os profissionais entrevistados, a razão mais comum para essa recusa seriam barreiras morais ou religiosas ao aborto. Raros foram os profissionais que descreveram a experiência das barreiras como um direito individual à objeção de consciência, pois a maioria ressaltou que os direitos da mulher não podem ser ignorados, ou seja, que a mulher “[...] não poderia ter sua solicitação de aborto negada por todos os profissionais. Mesmo que a mulher passe de um plantão para outro, é obrigação do serviço atendê-la [...]”. Além da motivação religiosa, o estigma que permeia o aborto faz com que profissionais recusem a participação nas equipes, temendo ser conhecidos como “aborteiros” entre seus pares. Principalmente para a equipe médica, ainda existe o medo de ser incriminado pela interrupção da gravidez que não seja decorrente de estupro. A contestação da veracidade do relato de violência pela mulher, assim como a solicitação do BO e do laudo do IML, seriam tentativas de blindar a equipe contra a simples palavra da mulher, que poderia mentir sobre a violência.
A capacitação continuada dos profissionais que participam das equipes foi defendida como ferramenta necessária para melhorar o acesso das mulheres aos serviços. A falta de informação dos profissionais sobre a legislação e as políticas públicas faria com que muitas barreiras fossem criadas, prejudicando a qualidade do atendimento e, às vezes, a viabilidade da interrupção da gravidez. Principalmente para aqueles serviços nos quais os profissionais são plantonistas e inexiste equipe específica para o aborto legal, “[...] seria importante passar por cursos, por treinamento, compartilhar experiências e dificuldades. Temos que implementar isso em todo serviço [...]”. Os entrevistados também apostam que a imposição de barreiras burocráticas seria reduzida se os profissionais fossem treinados em conceitos como “saúde sexual e reprodutiva”, “violência de gênero”, “humanização” e “direitos humanos”.
O estupro de mulheres é uma das faces mais perversas da violência de gênero. Em decorrência das consequências físicas, psíquicas e sociais da violência sexual, é consenso que o sistema de saúde deveria ter infraestrutura adequada e equipe capacitada para o atendimento integral das mulheres. Quando a gestação acontece, geralmente é insuportável para a maioria das vítimas. Um dos pilares desse atendimento no Brasil é a possibilidade de interrupção da gravidez, se essa for a escolha da mulher. A Lei n. 12.845/2013 determina que os hospitais prestem atendimento multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre as medidas da lei, está a “profilaxia da gravidez” e o “fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais”17. No entanto, os resultados deste estudo mostram que ainda existem muitos impedimentos para a adequada assistência às mulheres que buscam o aborto legal no Brasil.
A localização majoritária dos serviços em capitais e grandes cidades, além da inexistência deles em 7 estados, evidencia a barreira de acesso encontrada por muitas mulheres quando desejam interromper a gravidez por justificativa legal. Quando comparamos este estudo com a última avaliação dos serviços de aborto legal, realizada em 2005, arriscamos dizer que não houve avanço na implementação de novos serviços, principalmente em cidades do interior do país. Em 2005, 37 serviços de saúde declararam realizar o aborto legal, sendo que 6 estados não possuíam nenhum ativo14. Atualmente, também existem 37 serviços ativos, e há ausência deles em 7 estados.
A composição da equipe profissional ainda é um obstáculo para a maioria dos serviços pesquisados. Por um lado, a presença das equipes multidisciplinares atesta o compromisso com a oferta de assistência integral à mulher vítima de violência sexual. Por outro, a inexistência de equipe médica específica para a realização do aborto faz com que o atendimento da mulher que busca a interrupção da gravidez seja mais demorado e, por vezes, impossibilita o aborto. Outros estudos com profissionais de saúde que atuam com o aborto previsto em lei demonstraram que o despreparo técnico, o desconhecimento da legislação e o sofrimento emocional são comuns na equipe18,19. Tanto a inclusão do tema nos currículos acadêmicos da área da saúde como a capacitação continuada dos profissionais nos serviços já existentes são estratégias que aumentam sua participação no serviço de aborto previsto em lei20,21.
Estima-se que somente 20% a 30% das mulheres que sofreram violência sexual procuram por atendimento médico e, destas, apenas 10% a 30% aderem ao tratamento e ao seguimento ambulatorial22,23. A qualidade dos serviços de saúde é um dos principais fatores que influenciam a adesão ao seguimento, incluindo-se tanto a existência de profissionais capacitados como um atendimento sigiloso, ágil e unificado em um só hospital22,24. No que diz respeito à oferta de contracepção de emergência e profilaxia de doenças infecciosas, os dados deste estudo demonstram maior estruturação dos serviços quando se compara com pesquisas da década de 200014,15. A profilaxia para doenças virais (notadamente para o HIV) somente não é ofertada em 4 serviços, mas cerca de ¼ deles declarou que encaminhava a mulher para outro hospital por não possuir equipe técnica capacitada para a prescrição de antirretrovirais, principalmente médicos infectologistas. Há consenso de que, após atividade sexual desprotegida e quando o status sorológico do agressor é desconhecido, a profilaxia contra o HIV deve ser iniciada o mais breve possível, no máximo 72 horas após o estupro25.
Chama a atenção o fato de que cerca de 5% (2) dos serviços informaram não ofertar a contracepção de emergência. Não se sabe se isso acontece por falta da medicação nos serviços, por desconhecimento técnico ou por objeção moral e/ou religiosa dos profissionais. Em outros países, dados demonstram que somente cerca de 50% dos médicos orientam e prescrevem anticoncepção de emergência para mulheres pós-estupro26. Médicos que não receberam treinamento especializado e que atendem poucos casos de violência sexual costumam prescrever menos a anticoncepção de emergência26,27. Tendo em vista que cerca de 5% das mulheres têm chance de gravidez após estupro e que há diminuição de 85% dessa chance quando a anticoncepção de emergência é ofertada nas primeiras 72 horas22,25,26, esta deve ser considerada prioritária no cuidado inicial da mulher vítima de violência sexual.
As exigências burocráticas feitas pelos serviços para realização do aborto diminuíram consideravelmente desde a avaliação de 2005, quando 70% dos hospitais exigiam o BO14. No estudo atual, 14% dos serviços em atividade ainda condicionam o atendimento à apresentação do BO pela mulher. Este estudo não questionou os motivos para a solicitação de documentos não especificados pela norma técnica, porém pesquisas anteriores em contextos semelhantes já observaram que o desconhecimento do marco legal que regulamenta o aborto e o medo das consequências judiciais são razões comumente apontadas8,9,28. Apesar da disposição em prestar o cuidado às mulheres, as recomendações da norma técnica do Ministério da Saúde não são cumpridas por todos os serviços.
A recusa em realizar o aborto por parte dos médicos, frequentemente justificada como barreira moral ou religiosa, foi apresentada pelos próprios profissionais como um dos principais problemas no funcionamento dos serviços. Um estudo realizado com ginecologistas e obstetras no Brasil em 2003 mostrou que 85% dos médicos concordavam com o direito das mulheres de interromper a gravidez decorrente de estupro, mas apenas 50% estavam disponíveis para realizar o aborto29. Outra pesquisa com ginecologistas e obstetras brasileiros, em 2012, evidenciou que 43% dos médicos declararam objeção de consciência quando não tinham certeza de que a mulher estava contando a verdade sobre o estupro9. A razão para a recusa em realizar o procedimento não seria a proteção de convicções morais ou religiosas, mas o temor das consequências legais e sociais negativas relacionadas ao estigma do aborto13,18,30.
O principal motivo para a interrupção da gravidez neste estudo foi estupro, o que é compatível com o perfil das mulheres vítimas de violência sexual que chegam aos serviços: predominantemente jovens, solteiras e escolarizadas, como descrito em outros estudos22,23,31. O número de casos de aborto por anencefalia foi baixo, ocorrendo de forma regular em todos os anos nos serviços, o que sugere não ter havido aumento após a decisão do Supremo Tribunal Federal em 20122. A aspiração manual intrauterina (AMIU), método mais frequente de interrupção da gravidez nos casos analisados, encontra respaldo nas recomendações da Organização Mundial da Saúde para esvaziamento uterino32. Para os casos de até 12 semanas de gestação, a AMIU deveria ser o método de eleição, pela possibilidade de ser realizada com anestesia local, apresentar menos complicações, ter custos menores e ser tão eficaz quanto o esvaziamento proporcionado pela curetagem uterina. Além disso, nas situações em que a AMIU é empregada, o controle da dor é facilitado e o tempo de espera pelo procedimento é menor32,33.
Este estudo ainda tem perguntas não respondidas sobre os serviços. Primeiro, menos da metade das mulheres que procuraram os serviços de aborto legal foram atendidas em sua solicitação. Porém, não sabemos se isso ocorreu porque elas chegaram aos serviços fora do tempo previsto na norma (acima de 20 semanas de gestação), porque não atendiam aos critérios estabelecidos na legislação para interrupção da gravidez (estupro, anencefalia ou risco de morte da gestante), porque houve negação da solicitação por barreiras burocráticas ou morais dos profissionais ou, ainda, porque a mulher desistiu voluntariamente durante o atendimento no serviço. Segundo, desconhecemos o intervalo médio de tempo que a mulher leva entre o atendimento inicial e a realização do aborto. Terceiro, não sabemos se os serviços realizam seguimento ambulatorial pós-aborto nem que tipo de cuidado ofertam. Inquéritos futuros poderão elucidar essas lacunas sobre o funcionamento dos serviços.
Os dados deste estudo mostram que ainda há um distanciamento entre o previsto pelas políticas públicas de saúde e a realidade do funcionamento dos serviços de aborto legal. Mesmo com a disposição dos serviços de ofertar o cuidado em saúde adequado, o cumprimento das recomendações contidas nas normas ainda é infrequente. Nos serviços ativos, houve avanço na qualidade do atendimento inicial à mulher, com maior frequência de cobertura de profilaxia contra infecções sexualmente transmissíveis e anticoncepção de emergência. Além disso, a exigência de documentos desnecessários, que muitas vezes atuam como obstáculos ao cuidado em saúde, é menor que o encontrado em estudos anteriores, mas ainda presente. Por outro lado, a implementação de novos serviços é uma demanda a ser atendida, principalmente levando-se em consideração que vários estados ainda não possuem unidade estruturada e que há escassez desses serviços no interior do país.
O aborto legal necessita da diligência do Estado para a ampliação e consolidação dos serviços, a capacitação da equipe profissional e a avaliação continuada. Segundo o Programa Nacional de Direitos Humanos, de 2010, deve ser responsabilidade do Ministério da Saúde e da Secretaria de Política para as Mulheres a proposição de “mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo seu cumprimento e facilidade de acesso”34. Esse compromisso governamental, porém, tem sido pontuado por retrocessos nos últimos anos, como atesta a redução dos serviços de aborto legal e, também, a revogação da Portaria n. 415/2014, do Ministério da Saúde35. A portaria, que adicionava o registro do aborto legal na tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde, facilitaria a notificação dos casos e regulamentaria a garantia desse direito reprodutivo já previsto na lei brasileira.
A política pública brasileira assegura a assistência à saúde da mulher vítima de violência sexual, incluindo a possibilidade de interrupção da gravidez. Para que as mulheres tenham acesso ao aborto previsto em lei, deve haver disponibilidade de serviços de saúde com qualidade, que respeitem e atendam suas escolhas reprodutivas. A avaliação periódica dos serviços, como é o caso deste estudo, deve ser encarada como parte das estratégias para o fortalecimento dos serviços de aborto legal. Decisões políticas baseadas em pesquisas e direcionadas à garantia dos direitos reprodutivos das mulheres podem solidificar o atendimento justo para o aborto previsto em lei.