Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.29 no.1 São Paulo Jan./Feb. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201600007
A palavra “sexualidade” remete a vários significados e interpretações. Pensa-se, inicialmente, em sexo, ato sexual e reprodução; entretanto, há o envolvimento de todo o corpo, associado aos cinco sentidos, às atribuições simbólicas e à capacidade do ser humano de imaginar e fantasiar.(1)
A construção da sexualidade envolve aspectos sociais, culturais, crenças e ideologias.(2) Em uma dimensão mais ampla, essa vivência pode ser alterada pela presença de uma deficiência e/ou doença. Tem-se, então, uma maior problemática quanto ao exercício da sexualidade, que sofre a influência do preconceito, do estigma, da alteração corporal e do medo da transmissão.(3,4)
Dentre as infecções sexualmente transmissíveis, abordou-se o vírus linfotrópico de células T humana (HTLV). O mais prevalente é o tipo I, que está associado à presença de leucemia/linfoma de células T do adulto e à doença neurológica-paraparesia espástica tropical/mielopatia associada ao HTLV, que provoca manifestações musculares e neuromotoras.(5) As alterações neurológicas podem comprometer o funcionamento da bexiga, levando-a a um estado de neurogênese, que ocasiona disfunções miccionais como noctúria, urgência, disúria, hesitação e força para urinar, sensação de esvaziamento incompleto e incontinência urinária.(5,6)
A soropositividade para o HTLV é mais acentuada nas mulheres do que nos homens e aumenta após os 40 anos. A explicação mais provável para essa diferença é a transmissão por via sexual mais eficiente do homem para a mulher e as transfusões sanguíneas, mais frequentes em mulheres.(6)
Durante o atendimento, percebeu-se que a vulnerabilidade influenciava os relacionamentos afetivos e o quanto isso prejudicava a sexualidade, deixando transparecer, durante as sessões de reabilitação, a grande expectativa em resolver as complicações decorrentes do HTLV, como, por exemplo, a incontinência urinária, e ter novamente a esperança de uma vida sexual sem interferências.
As mulheres com incontinência, secundária ao HTLV diferem das demais que possuem outro tipo de incontinência, por apresentarem, além dos sintomas urinários, outros derivados da mieloppatia, tais como: hipersensibilidade perineal, dor à palpação vaginal, hipertonia de músculo do soalho pélvico, somados a alterações neuromotoras que prejudicam sua autonomia e mobilidade, como alterações da marcha, hiperreflexia patelar e hipertonia de membros inferiores, comprometendo atividade cotidiana, incluindo a sexual, autocuidado, sono e disposição(5,6) as quais constituem como agravantes no exercício da sexualidade.
Assim, a motivação para este estudo adveio da experiência no atendimento clínico por parte de uma das autoras, que percebeu que as mulheres expressavam, com frequência, sua insatisfação quanto às mudanças ocorridas em sua sexualidade, após o advento da incontinência urinária, no adoecimento por HTLV. Tal questão levou as autoras a indagarem: Como as mulheres com incontinência urinária secundária ao HTLV vivenciam a sexualidade? E como se desenvolvem as relações de gênero? Para responder essas questões, definiu-se o objetivo de apreender a vivência da sexualidade das mulheres com incontinência urinária secundária ao HTLV.
Ressalta-se a importância, dessa pesquisa, na medida em que explora as experiências de um grupo específico de mulheres cujo adoecimento é pouco estudado e a invisibilidade dos problemas vividos por elas implicam na qualidade da assistência prestada. Este estudo contribui para que os profissionais de enfermagem compreendam como essas mulheres experienciam a sexualidade, face às limitações impostas pela incontinência e o vírus, e subsidiam o planejamento de um cuidado especializado. Entretanto, não se pretende construir uma generalização da sexualidade, mas provocar uma discussão a partir das interpretações das narrativas de mulheres que vivem em uma sociedade com poucos esclarecimentos a respeito do tema.
Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido em uma unidade de infectologia de um hospital público de Salvador (BA) que atendia pessoas adultas com HTLV, encaminhadas por diversos serviços do Estado.
As participantes foram mulheres que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser adulta, estar cadastrada no serviço especializado de infectologia, ter diagnóstico de HTLV confirmado, apresentar incontinência urinária e ter condições de responder às questões da entrevista.
Informado que a participação era voluntária; que a identidade seria preservada; e que os cuidados a elas prestados, durante a realização da coleta de dados, não seriam prejudicados. A permanência na pesquisa foi livre e espontânea, com a possibilidade de desistir a qualquer momento, mesmo após a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
A aproximação com as participantes se deu no espaço do ambulatório. Em uma conversa preliminar, elas foram convidadas a participarem da pesquisa. A utilização dessa forma de triagem aconteceu porque, na maioria das vezes, as informações sobre a incontinência urinária ou outras alterações urinárias não estavam descritas em prontuário.
Para produção de dados empíricos, utilizou-se a história oral temática, que dispõem à discussão em torno de um assunto central definido, sendo a narrativa de um fato que faz parte de todo um contexto de vida, possibilitando que as participantes narrassem sua história de acordo como ela é vivida e experienciada.(7,8)
A coleta de depoimentos ocorreu por meio de entrevista em profundidade, a qual é recomendada quando se quer acessar as percepções e comportamentos, pois permite que a pessoa possa versar sobre suas experiências, queixas e anseios.(7,8) Associado a isso, utilizou-se um roteiro semiestruturado, que serviu como guia à entrevistadora, a qual se preocupou em não limitar as histórias narradas.
As entrevistas foram gravadas em gravador digital, sendo posteriormente transcritas na íntegra.
Para a análise dos dados, os depoimentos apreendidos foram submetidos à técnica de análise de conteúdo e gênero, como categoria analítica, para o conteúdo relacionado às questões da mulher diante do homem, do seu papel na sociedade, no meio privado, familiar e no público, como ela se via e se comportava conforme seus princípios, valores, crenças e normatizações sociais.
O estudo segue as determinações CNS 196/96 e não tem reparos éticos a sua aprovação.
Entrevistadas dez mulheres com média de idade de 46 anos (de 23 a 70 anos) e tempo médio de diagnóstico do vírus de 6 anos. No entanto, antes mesmo da descoberta da doença, já apresentavam sintomas neurológicos, consequentes da infecção do vírus. Uma mulher apresentava HTLV congênito, outra sem causa ainda confirmada e oito adquiriram pela via sexual; oito se autodeclararam da raça negra, da religião católica, primeiro grau de escolaridade e com renda média de um salário mínimo. Eram moradoras de dez municípios diferentes do Estado da Bahia.
Quanto às relações conjugais, cinco mulheres referiram que já possuíam um bom relacionamento conjugal e mantiveram-se casadas, as outras cinco separaram-se após a descoberta da contaminação, após o aparecimento dos sintomas e por sofrerem violência física, emocional e psicológica de seus companheiros.
Durante a consulta de enfermagem, perguntou-se o que elas entendiam por sexualidade e as respostas, usualmente, vinham precedidas de um momento de reflexão e aparente dificuldade para explicar algo sobre o qual não tinham domínio - ou faltava um pensamento previamente formado sobre o assunto. Acredita-se que, além do pudor e da vergonha, havia também um desconhecimento sobre o tema. Algumas mulheres relataram uma compreensão limitada, como uma relação binária e necessariamente vinculada ao ato sexual e à penetração. Apenas uma entrevistada, que possuía um nível de instrução educacional maior, descreveu o conceito de sexualidade como algo que envolvia não só o ato sexual, mas a sensualidade, o prazer sem necessariamente haver penetração e não apenas entre uma mulher e um homem, mas também com pessoas do mesmo sexo ou até mesmo sozinha. Relatou como jeito de vestir, modo de se sentir, de se ver e se sentir viva.
Houve redução do interesse sexual. A falta de respeito nos relacionamentos, associada à traição dos companheiros, à transmissão do vírus HTLV, às situações de violência conjugal e à decepção com os companheiros contribuíram para o descrédito nas relações afetivas e na figura masculina, desestimulando as mulheres a investirem em seus relacionamentos ou em uma nova relação. Além das alterações emocionais e psicológicas sofridas, observaram-se também alterações físicas e anatômicas da vagina e do canal vaginal, devido à neuropatia causada pelo vírus e, em algumas mulheres, causada também pela menopausa.
Outra condição que contribui para a redução do interesse sexual foi o medo de transmitir o vírus ao parceiro não infectado. Havia um sentimento de altruísmo e respeito diante do parceiro, sentimentos que elas não vivenciaram com seus companheiros, que as traíram.
Observou-se que os homens exerciam poder, hierarquia e dominação sob a mulher, a qual permanecia passiva aos desejos masculinos e aos seus atos de violência psicológica, emocional e física, sendo comum o sexo sem concessão feminina. O uso constante de bebida alcoólica, por alguns companheiros, contribuía, também, para fortalecer as ações de agressividade e manter o sentimento do medo. Contudo, essas mulheres que sofriam, conseguiram se empoderar e se libertaram desses relacionamentos violentos, optando por se manterem sozinhas.
As mulheres, que se mantiveram casadas e que possuíam um bom relacionamento conjugal, relataram que, grande parte das vezes, mantinha relação sexual sem prazer, como uma obrigação de esposa, apenas para satisfazer seus parceiros, e que poucas vezes chegavam ao orgasmo. Elas atribuíram a falta da libido ao HTLV, à incontinência, e às dores que sentiam no corpo e na penetração.
A perda de urina, a umidade presente nas roupas, o odor desagradável e a necessidade constante em usar absorvente denunciavam a fragilidade dessas mulheres em se conter, principalmente em um momento tão íntimo e pessoal, como é o momento do namoro, das carícias, do toque e da penetração. A realização do cateterismo vesical de alívio também foi relatada como algo que desestimulava a sexualidade, mas, em outros momentos, era um coadjuvante para se manter continente. As posições das mulheres para o ato sexual também foram lembradas como algo limitante, uma vez que tinham medo de perder urina, dependendo do esforço que fizesse, e o ato da penetração contribuía, em alguns momentos, para aumentar a sensação de bexiga cheia e de vontade de urinar.
Devido à presença da incontinência, algumas mulheres possuíam uma baixa autoestima, perda da confiança em si mesma e, consequentemente, negação da relação sexual e incapacidade em ter um parceiro.
Compreender a vivência da sexualidade de mulheres HTLV positivas com incontinência urinária, por meio de entrevista em profundidade, foi satisfatório para apreender as reflexões sobre o tema. Há uma limitação quanto ao número de entrevistadas, entretanto, ocorreu uma convergência nos discursos, com saturação das informações dentro dos propósitos do estudo e a construção de uma matriz de análise, das histórias narradas, com núcleos de sentido bem estruturados.
Entende-se que dialogar sobre sexualidade pode ser algo constrangedor, e o pudor impede o pensamento livre e sem preconceitos. Além disso, a falta de conhecimento sobre o tema também contribui para definições reducionistas, uma vez que sexualidade é sentir prazer em fazer qualquer coisa, é ficar ao lado de alguém, conversar, tocar-se, é viver.(5)
Alterações vaginais como atrofia, falta de lubrificação e dispareunia, decorrentes do HTLV e mudanças nos níveis hormonais, contribuem para a diminuição e até mesmo suspensão da relação sexual,(9) principalmente quando restrita à penetração, limitando-se as possibilidades de prazer feminino.
As alterações psicoemocionais como os sentimentos, a relação interpessoal e a autoestima influenciam consideravelmente e todas essas estruturas se interligam, havendo prejuízo quando existe um processo de doença instalada, e quando há casos de violência e baixa autoestima.(9,10)
Em doenças sexualmente transmissíveis e de pouca informação a respeito das manifestações, como é o caso do HTLV, o medo da transmissão é real. A invisibilidade sobre o tema é um agravante que afasta os companheiros e que amedronta as pessoas que têm vírus de transmiti-lo, impedindo novos relacionamentos afetivos. Além disso, após sofrer a violência, o abandono e a discriminação, a solidão passa a ser um refúgio da mulher que, ao se perceber diante de tudo que já sofreu, o estar sozinha pode ser a melhor opção.(11,12)
Sob esse aspecto psicológico, a falta da libido e negação da sexualidade poderiam ser trabalhados, no sentido de buscar outras alternativas de prazer e de satisfação pessoal, reduzindo as queixas femininas e essa negação. A sensualidade, a vaidade, o cuidado com o próprio corpo, a relação da mulher com sua doença, a busca de valorização de si e da imagem corporal, o empoderamento diante do cônjuge e a construção de uma relação de gênero equilibrada são elementos socioculturais constitutivos do exercício dessa sexualidade.(13,14)
Na análise de gênero, a sexualidade, vista como impulso biológico e instintivo, é utilizado principalmente nos discursos masculinos, justificando a dominação e o impulso sexual.(14,15) A ideia de que o desejo sexual masculino é algo incontrolável e, por isso, o homem precisa “biologicamente” ter relações sexuais faz com que as mulheres sofram ainda mais no momento de cumprir seu papel de esposa, mesmo que estejam doentes e sem desejo.
Essa concepção contribui, sobremaneira, para a ocorrência de sentimento de passividade das mulheres, diante dos desejos masculinos. Dessa forma, a identidade de gênero traduz o comportamento ativo e viril dos homens, e passivo das mulheres, as quais não possuem o pertencimento de seus próprios corpos e, consequentemente, violentam-se em prol dos desejos de seus parceiros.(15)
O poder masculino, configurado pela força física e psicológica, e pelos seus desejos sexuais, impõe uma relação afetiva desigual, na qual as questões de gênero não são trabalhadas no sentido de equilibrar os interesses mútuos.(16,17) Em contrapartida, só existe opressor porque há oprimido.(16) Dessa forma, é primordial que a mulher se empodere em suas relações e decida o que é melhor para si.
Diante desse contexto social e afetivo, há uma repercussão também da incontinência na vida dessas mulheres. O odor, o medo de se molhar em público, a necessidade do cateterismo e a falta de controle do próprio corpo levam-nas a sentimentos de fragilidade, baixa autoestima, isolamento social, repressão da sexualidade e diminuição da vida sexual.(18-20) Dessa forma, acredita-se que se os profissionais de saúde, ao atenderem essas pessoas com o vírus, tivessem uma visão mais cuidadosa para os sintomas da incontinência e implementassem técnicas de manejo, essas pessoas não estariam vivenciando a incontinência associada ao odor e à vergonha.(18-20)
Ao implementar estratégias para evitar a incontinência, como a terapia comportamental, a utilização de produtos para contenção da urina no lugar de panos, de exercícios de fortalecimento pélvico, conhecimento do hábito miccional e, em algumas situações, a eletroestimulação e o biofeedback pela enfermeira especializada, pode-se mudar consideravelmente a forma como as mulheres vivem e convivem com a sexualidade.
As mulheres que possuem o vírus HTLV e a incontinência urinária desenvolvem diversos conflitos sociais-afetivos e emocionais, o que dificulta o exercício da sexualidade, implicando em prejuízos para a sua satisfação. No entanto, ao se empoderarem e se posicionarem diante das dificuldades, conseguem ter uma vida mais livre e feliz.