versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.28 no.1 São Paulo jan./fev. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162014218
Dentre as dores orofaciais, o segundo tipo de disfunção mais comumente encontrado são as desordens temporomandibulares (DTM), com prevalência estimada entre 3 e 15% da população1. As DTM são reconhecidas pela American Academy of Orofacial Pain como um grupo de condições musculoesqueléticas e neuromusculares que envolvem as articulações temporomandibulares (ATM), os músculos mastigatórios e todos os tecidos associados, cujos sinais e sintomas são diversos, podendo incluir dificuldades na mastigação, fala e outras funções orofaciais2.
Estudos com diferentes amostras populacionais têm descrito e buscado compreender o complexo sintomatológico envolvido na DTM, discutindo as relações entre a sintomatologia, o gênero e a idade dos pacientes3 4 5 6 7.
As evidências demonstradas nos últimos anos indicam substanciais diferenças de gênero nas respostas clínicas e experimentais de dor6. Mulheres apresentam maiores prevalências de estados dolorosos do que nos homens6 8, incluindo tanto a dor orofacial como outros sintomas de DTM, com proporções que variam de 2 a 6 mulheres para cada homem, geralmente com idades entre 20 e 40 anos1 9 10 11 12.
A distribuição da idade e do gênero nos casos de dor orofacial, especialmente a DTM, sugere um possível elo entre a sua patogênese e o hormônio sexual feminino estrogênio11 13, ou entre a DTM e os mecanismos de modulação da dor, uma vez que mulheres apresentam maior sensibilidade para a maioria das modalidades de dor4 6 8 14.
Além das diferenças fisiológicas mencionadas, é importante atentar para o fator psicológico ou comportamental envolvido, ao qual pode ser atribuído o maior número de mulheres buscando por tratamento, seja da DTM ou das demais condições dolorosas11. Porém, é possível que todos esses fatores interajam em algum grau na determinação da prevalência da diferença entre os gêneros.
É importante considerar que, muitas vezes, as diferenças entre homens e mulheres são apresentadas como dados secundários em estudos que originalmente não foram planejados para investigar a distribuição da sintomatologia entre os gêneros, sendo essa relatada apenas como parte de descrições sociodemográficas7 9 10.
Compreender a manifestação de alguns sinais e sintomas de DTM em relação ao gênero incita maiores reflexões sobre o assunto e fornece outras perspectivas para a definição de terapêuticas mais adaptadas e direcionadas.
Portanto, uma vez que a DTM tem prevalência relevante, e que a análise de problemas de saúde em diferentes populações contribui, ao menos em parte, para sua compreensão e solução, o objetivo do presente estudo foi descrever a proporção de homens e mulheres que procuraram por tratamento para DTM, bem como investigar como se distribuem os sinais e sintomas entre os dois gêneros, verificando também a associação entre o gênero e as variáveis idade, duração do problema e os sintomas de DTM.
Estudo retrospectivo analítico cujo projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (Processo nº 2006.1.933.58.6.). Todas as fichas clínicas dos sujeitos continham um termo assinado pelos pacientes, consentindo o uso dos seus dados de avaliação e tratamento em pesquisas.
Foram selecionados 1.000 protocolos de entrevista e avaliação odontológica detalhada, a partir de 1.500 prontuários do banco de dados, de pacientes que buscaram por tratamento na Clínica de Dor Orofacial e DTM da Universidade, durante os 15 anos de clínica (de 1989 a 2005), que precederam a mudança de sistema de funcionamento da mesma. Os pacientes eram encaminhados para exames específicos, depois de examinados no setor de triagem da faculdade, onde chegavam por meio de encaminhamentos de postos de saúde ou mesmo de profissionais de saúde particulares da cidade e diversas regiões dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Os pacientes eram admitidos para tratamento de DTM se apresentassem, ao exame clínico, sinais e sintomas característicos de DTM3.
Dos 1.000 registros analisados, 177 (17,7%) pacientes eram homens e 823 (82,3%) eram mulheres. A seleção da amostra foi realizada por conveniência, isto é, considerando somente os protocolos que foram completamente preenchidos, sem rasuras e assinados pelo professor responsável.
Os critérios de exclusão foram: protocolos incompletos, indevidamente preenchidos, com rasuras ou não assinados pelo profissional responsável. Também foram excluídos os protocolos de pacientes portadores de distúrbios neurológicos centrais ou periféricos, doenças cardíacas, histórico de cirurgias e/ou de tumores ou traumas na região de cabeça e pescoço, além de gestantes e daqueles que faziam uso de analgésicos, anti-inflamatórios ou psicotrópicos, de placa oclusal ou que já tivessem sido submetidos a qualquer outro tipo de tratamento para DTM antes da avaliação inicial.
De acordo com a rotina da clínica de dor orofacial e DTM da instituição, os sujeitos foram entrevistados por alunos de graduação em Odontologia, supervisionados por três docentes e dois técnicos especializados com formação em Odontologia e Fonoaudiologia, sobre as queixas que os levaram a procurar por tratamento e também responderam a um questionário sobre os sinais e sintomas de DTM, com respostas positivas ou negativas, que foram registradas em seus prontuários. As perguntas foram formuladas para cada sintoma ou sinal (ruído articular) da seguinte maneira:
• Você sente com frequência....?: [Dor no pescoço e ombros; dor de cabeça (cefaleia); cansaço (fadiga) nos músculos mastigatórios; dor nos músculos da face (mastigatórios); dor no ouvido; sensação de ouvido tampado (plenitude auricular); zumbido ou algum barulho dentro do ouvido; dificuldade para abrir boca; dificuldade para fechar a boca; dificuldade para mastigar; dificuldade para bocejar (dificuldades funcionais)];
• Você percebe com frequência...?: [Ruídos (estalo, barulho de folha amassando, ou outro) na ATM; sensibilidade nos dentes; que não consegue abrir a boca totalmente (abertura bucal limitada); que sua voz está rouca ou com alguma outra alteração].
A pergunta era detalhada ou o local apontado, como por exemplo os músculos mastigatórios, as ATMs, todas as vezes que necessário. Os sinais e sintomas investigados encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1: Frequências absolutas e percentuais e odds ratio dos sintomas relacionadas à desordem temporomandibular nos grupos feminino e masculino
Legenda: ATM = articulação temporomandibular; OR = odds ratio; IC95% = intervalo de confiança de 95%
O exame clínico odontológico consistiu na avaliação dos movimentos excursivos da mandíbula, palpação dos músculos mandibulares e cervicais e análise de oclusão estática e dinâmica3.
Um diagnóstico de DTM foi feito quando os sujeitos relataram sintomas de DTM e durante o exame clínico apresentaram três ou mais manifestações, como: dor nos músculos mastigatórios, nas ATMs durante a função mandibular, à palpação das estruturas, limitação ou desvios dos movimentos mandibulares, ruídos na ATM, e relação oclusal estática ou dinâmica anormais3.
Os indivíduos foram divididos em dois grupos segundo o gênero: grupo masculino e grupo feminino. A proporção de homens e mulheres da amostra foi determinada e, em seguida, foram realizadas as comparações entre os grupos, considerando-se as informações contidas nos prontuários sobre a idade e a duração da DTM até o dia da consulta inicial, bem como sobre a presença dos sintomas relatados durante a anamnese.
Todas as análises estatísticas foram realizadas pelo Software SAS, versão 9.0. O teste do χ2 e as odds ratio (OR) foram utilizados para analisar as diferenças entre homens e mulheres. Assim, para todas as variáveis binárias, os dados foram analisados em tabelas de contingência e por análise de regressão logística. O teste proporções bicaudal foi empregado para analisar se havia prevalência de alguma faixa etária. O nível de significância adotado foi de 5% (p<0,05) para todas as análises.
Dos 1.000 pacientes cujos prontuários foram analisados, 177 (17,7%) eram homens e 823 (82,3%) eram mulheres. Foi verificada uma proporção de 4,6 mulheres para cada homem. A idade variou de 12 a 83 anos, sendo a média 33,04 e o desvio padrão (DP) 13,86 anos para o grupo masculino e de 11 a 77 anos (33,26±12,73 anos) para o grupo feminino. Houve um predomínio de adultos jovens (59,9%) na amostra, sobre a soma das outras faixas etárias (40,1%) (p<0,001). Não houve associação entre a idade e o gênero (Tabela 2).
Tabela 2: Frequências absolutas e percentuais dos grupos de acordo com a faixa etária e análise da associação entre as faixas etárias e os gêneros
*O valor de p não é significante (>0,05)
A duração dos sintomas variou de 1 a 276 meses para o grupo masculino (58,38±63,83 meses) e de 1 a 468 meses para o grupo feminino (58,60±59,89 meses).
De modo geral, os sintomas foram mais frequentemente relatados pelas mulheres do que pelos homens. Os valores de OR indicaram que os seguintes sintomas foram associados de modo estatisticamente significante ao gênero feminino: dor nas ATM, dor nos músculos faciais, dor na região de pescoço e ombros, cefaleia, fadiga nos músculos mastigatórios, sensibilidade nos dentes, pelo menos um sintoma otológico (ex: otalgia, zumbido e sensação de plenitude auricular) e disfonia. O ruído articular apresentou frequências de ocorrência (%) semelhantes para ambos os gêneros (Tabela 1).
No presente estudo, em que foram analisados 1.000 prontuários de pacientes brasileiros com DTM, as médias de idade foram semelhantes entre os grupos feminino e masculino, com predomínio de sujeitos adultos jovens (19 a 40 anos). As mulheres tiveram aproximadamente duas vezes ou mais chances de apresentar sintomas dolorosos e queixa de disfonia do que os homens, mas chance semelhante de apresentar ruídos articulares.
Os resultados confirmaram achados prévios a respeito da proporção de mulheres e homens, da média de idade e da média de duração do problema em diversas amostras3 7 9 10 12.
Tem sido abordado que, de modo geral, a idade parece ser uma variável com maior influência nas mulheres do que nos homens. Mais especificamente, estudos apontaram que a DTM tende a iniciar após a puberdade, sendo que o aumento da severidade dos sinais e sintomas geralmente tem seu pico na idade reprodutiva, com maiores prevalências em mulheres com idades entre 20 e 40 anos11.
A maior chance observada nas mulheres para maioria dos sintomas investigados é consistente com achados prévios7, e o fato da maioria deles estar relacionada à dor é sugestivo de uma ativação diferenciada do sistema de analgesia endógena de homens e mulheres5 e no processamento central de estímulos nociceptivos5 15. Estudos que utilizaram neuroimagem revelaram ativação de áreas corticais e subcorticais comuns em homens e mulheres, bem como ativação de áreas gênero-especificas em resposta cerebral a estímulos dolorosos. Geralmente, os homens demonstram grande ativação das áreas cognitivas, área simpática central e de inibição da região límbica, enquanto mulheres apresentam grande ativação da região afetiva e regiões autonômicas6 16.
Hormônios sexuais, especialmente o estrogênio, desempenham um papel na sensibilidade dolorosa, inclusive nos músculos mastigatórios e na patogênese da DTM, podendo o limiar de dor e a tolerância à mesma variarem de acordo com a fase do ciclo menstrual4 5 8 17.
Sendo o estrogênio um fator de risco para DTM e outras condições de dor craniofacial, estudos com animais e humanos têm demonstrado que o mesmo pode ter ação periférica e central na modulação da dor14, bem como têm destacado que os hormônios sexuais e os receptores de estrogênio regulam a sensibilização dos neurônios trigeminais ou exercem alguma influência nas vias trigeminais da dor (ou no núcleo espinhal do trigêmeo)18 19 20.
Há também evidências de que os níveis de estrogênio podem agir não somente sobre o metabolismo, mas também sobre o desenvolvimento e a restituição da ATM e estruturas associadas, como ossos, cartilagens e disco articular, podendo influenciar a síntese de colágeno e elastina (que constituem a estrutura do disco articular)11. Apesar do potencial do estrogênio para modular múltiplos processos biológicos na região da ATM, incluindo inflamação, atividade de metaloproteinase e modulação da dor, nenhum desses processos consegue explicar completamente a predileção da DTM pelo gênero feminino, o que sugere que outros mecanismos dependentes estejam envolvidos21.
Também, a cefaleia é uma queixa comum em pacientes com DTM, podendo estar associada à dor nos músculos mastigatórios e na ATM, sendo também mais frequente em mulheres1 22. Outro aspecto interessante é que mulheres com migrânea têm maior probabilidade de experienciar DTM dolorosa (tanto miogênica quanto artrogênica) quando comparadas às mulheres que não sofrem de cefaleia23.
Dentre os sinais e sintomas com prevalência no gênero feminino, um que merece atenção é a disfonia, por ser a qualidade vocal um aspecto também fortemente influenciado por variações hormonais ao longo da vida e, no caso das mulheres, por exibir ainda mais variações quando ocorrem flutuações hormonais importantes24 25. Na presente amostra as mulheres demonstraram 2,21 vezes mais chances de apresentar queixa de disfonia do que os homens. Contudo, em estudo anterior, mulheres disfônicas não apresentaram mais dores nos músculos mastigatórios do que o grupo controle26. Além disso, a disfonia em pacientes com DTM pode ser decorrente da amplitude reduzida dos movimentos mandibulares durante a produção da fala, com consequente mudança na ressonância e ajustes compensatórios27.
No presente estudo, os ruídos articulares, que podem indicar deslocamento de disco articular ou alterações na forma da ATM, apresentaram-se com a mesma frequência em ambos os gêneros, assim como verificado previamente12.
A longa duração da sintomatologia da DTM verificada na presente amostra é também um aspecto a ser considerado, pois sinais e sintomas como dor muscular, dor na ATM e ruídos articulares, não apenas são manifestações da DTM, mas também podem agravá-la com o decorrer do tempo, devido à necessidade de adaptações ou compensações que envolvem a musculatura e as funções estomatognáticas28.
A duração média da DTM foi semelhante entre os grupos, e não foi verificada diferença estatística entre os grupos masculino e feminino para o relato das dificuldades funcionais (dificuldade para mastigar, deglutir, falar) ou limitação da abertura bucal. Contudo, em ambos os grupos essas queixas tiveram prevalência >24% e podem ter um significado relevante para a saúde e a qualidade de vida, porque muitas vezes elas são expressas somente quando há grande limitação funcional e desconforto, enquanto o exame das funções orofaciais revela não apenas alta prevalência de distúrbios miofuncionais orofaciais (DMO) em pacientes com DTM28, mas também um alto grau de comprometimento das funções de mastigação e deglutição29 30.
Também, futuras pesquisas controladas envolvendo a comparação de homens e mulheres, com DTM e saudáveis, quanto às condições miofuncionais orofaciais, são de grande importância para que se possa compreender melhor como estas se apresentam em relação ao gênero e se possa agir, caso necessário, de modo direcionado e eficaz.
Assumindo que as mulheres são mais susceptíveis à dor e que é necessário um certo nível de dor para que uma pessoa busque por uma consulta com um especialista, supõe-se que em parte, as diferenças nas prevalências entre homens e mulheres possa decorrer da sensibilidade dolorosa12, especialmente em estudos como este, que foi realizado em clínica universitária, aonde os pacientes dirigiram-se em busca de tratamento.
Contudo, na análise de qualquer doença ou disfunção que demonstre certa predileção por um gênero, é importante atentar para três possíveis fatores causais, as diferenças biológicas e fisiológicas, os fatores comportamentais e a herança genética11. Lembrando, ainda, que a idade dos sujeitos pode interagir com os demais fatores.
O presente estudo, realizado com uma amostra de pacientes brasileiros, apresenta uma evidência das diferentes prevalências e manifestações dos sinais e sintomas de DTM entre homens e mulheres. Adicionalmente, estudos futuros deveriam analisar a resposta ao tratamento em função do gênero.
Houve prevalência do gênero feminino entre as pessoas que buscaram por tratamento para DTM em uma clínica universitária, numa proporção de 4,6:1. O grupo feminino apresentou aproximadamente duas vezes mais chances de apresentar sintomas relacionados à dor (dor no pescoço e ombros, nos músculos faciais, nas ATMs e cefaleia) e à voz do que o masculino, enquanto a frequência de relatos de ruído articular, dificuldades funcionais e abertura bucal limitada foi semelhante nos grupos estudados. Não houve associação do gênero com a duração do problema ou a idade.