versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.4 supl.1 São Paulo abr. 2020 Epub 14-Nov-2019
https://doi.org/10.36660/abc.20180130
A amiloidose por transtirretina (ATTR) é uma doença familiar causada por uma das mais de 100 mutações descritas, em que há produção de amiloides que se depositam nos tecidos.1 As fenocópias abrangem neuropatia (autonômica e periférica), cardiomiopatia, acometimento renal, gastrointestinal, de vítreo e de meninge, que variam de acordo com a mutação genética, etnia e origem geográfica, mesmo entre indivíduos com a mesma mutação ou dentro da mesma família.2
A síncope (perda transitória da consciência causada por hipoperfusão cerebral global) na presença de cardiopatia, confere risco de eventos fatais.3 A mutação Val142Ile tem a insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP) como fenótipo clínico predominante, sendo a síncope um sintoma pouco comum.4,5
Homem, 64 anos, branco, engenheiro, natural do Rio de Janeiro. Relatava episódio isolado de síncope ao levantar-se rápido da posição sentada, após corrida. Histórico de morte súbita na família (tio aos 60 anos). Usava escitalopram 10 mg/dia e finasterida 5 mg/dia.
Exame físico: IMC de 21,8 Kg/m2 e turgência jugular a 45º. PA: 140x80 mmHg, FC: 85 bpm, FR: 18 ipm, quarta bulha, ictus sustido e palpável no 6º espaço intercostal na linha hemiclavicular, pulmões limpos e edema de tornozelos. Vinha em CF I.
Sangue: peptídeo natriurético do tipo B (BNP): 233 pg/ml (VN: até 100 pg/ml) e Troponina US: 0,135 ng/ml (VN: até 0,01 ng/ml).
Eletrocardiograma (ECG) (Figura 1): ritmo sinusal, FC: 84 bpm, bloqueio de ramo direito, baixa voltagem nas derivações frontais e amputação de R anterosseptal.
Figura 1 A) Eletrocardiograma: Ritmo sinusal, FC: 88 bpm, eixo do QRS indeterminado. Onda P no plano frontal com duração aumentada (160 ms), com bloqueio parcial do feixe de Bachmann e onda P tricuspídea em D2, D3 e aVF; e no plano horizontal observa-se padrão qR em V1 e índice de Morris, o que traduz aumento dos átrios direito e esquerdo. Observa-se também amputação de R anterosseptal e presença de baixa voltagem no plano frontal. B e C) Ressonância magnética do coração em repouso mostra HVE difusa, com áreas de realce tardio subendocárdico difuso no VE (setas), nos átrios e no septo interatrial. D e E) Cintilografia miocárdica com Pirofosfato de 99m-Tecnécio mostrando intensa fixação do radiotraçador no miocárdio (escore grau 3).
Ecocardiograma (ECO TT): hipertrofia ventricular esquerda (HVE) - septo = 16 mm e parede posterior = 13 mm - fluxo mitral com déficit de relaxamento tipo II e volume indexado do átrio esquerdo: 87 ml/m2 (Figura 2). Holter de 24 h e teste ergométrico apresentavam surtos curtos e assintomáticos de taquicardia ventricular polimórfica (TVP).
Figura 2 Ecocardiograma transtorácico mostrando padrão do Doppler mitral do tipo pseudonormal (disfunção diastólica tipo II), pico de velocidade da insuficiência tricúspide > 2,8 m/s e aumento biatrial com volume indexado do átrio esquerdo de 87 ml/m2. Cortes longitudinal paraesternal e apical 4 câmaras mostrando aumento do brilho miocárdico, espessamento do septo interatrial e das valvas e HVE. Strain global longitudinal com padrão típico de amiloidose - "relativa preservação das regiões apicais" e redução do strain longitudinal nos segmentos basal e médio do miocárdio.
Solicitada ressonância magnética do coração (RMC) em repouso e após estresse com dipiridamol, que mostrou HVE difusa e ausência de isquemia miocárdica, com áreas de realce tardio (RT) mesocárdico lateral e anterior e subendocárdico difuso no ventrículo esquerdo (VE), nos átrios e no septo interatrial (Figura 1). Avaliação do strain global longitudinal (SGL), após RMC, mostrou alterações marcadas nas porções basal e medial de todas as paredes do miocárdio, poupando as regiões apicais do VE, o que era compatível com padrão descrito de amiloidose cardíaca (AC).
A biópsia de gordura abdominal e reto confirmaram o diagnóstico de amiloidose, pela coloração vermelho congo. Imunofixação no sangue e na urina de 24 horas e dosagem de cadeias leves no sangue afastaram gamopatia monoclonal, sendo solicitada, após isso, cintilografia miocárdica (CM) Pirofosfato de 99m-Tecnécio (Figura 1), que mostrou intensa fixação do radiotraçador no miocárdio (escore grau 3), sugerindo ser a etiologia da AC do tipo ATTR.
Por fim, o paciente foi submetido a teste genético, o qual confirmou mutação em heterozigose para o gene da transtirretina (TTR) do tipo Val142Ile.
Quando se avalia um paciente vítima de síncope, é prioritária a estratificação do risco de eventos fatais,3 que levam em conta alterações eletro e ecocardiográficas, as quais estavam presentes neste paciente. As alterações encontradas no ECG (Figura 1), na presença de HVE, já são sinais de alerta para o diagnóstico de AC.1,4,6
O BNP e a troponina elevados traduziam aumento de pressões intracavitárias e injúria miocárdica em curso, o que era indicativo de doença cardíaca.
O ECO TT confirmou a suspeita de cardiopatia. As alterações encontradas (Figura 2), a história familiar de morte súbita e TVP ao esforço, levantaram suspeita de síncope cardíaca e os diagnósticos diferenciais principais seriam miocardiopatia hipertrófica (MCPH), doença arterial coronariana (DAC) e AC.3
A RMC, solicitada a seguir, forneceu evidências fortemente sugestivas de AC, dado ao padrão característico do RT, afastando as hipóteses de MCPH e de DAC. Por ser o gadolíneo um agente puramente extracelular e não penetrar no cardiomiócito intacto, a aparência característica do RT (Figura 1) em território não coronariano é extremamente sugestiva de AC e foi determinante no caso relatado.1,4,7
A avaliação da deformidade miocárdica pela técnica do SGL, realizada após a RMC, demonstrou um padrão típico de AC (Figura 2), o que pôde descartar outras causas de HVE e corroborar o diagnóstico, o que tem sido muito útil neste cenário.8
Dentre os tipos de AC, a causada por cadeias leves de imunoglobulina (AL) é a que mais comumente acomete o coração, por isso, inicia-se a investigação pela busca de doença hematológica.1,4,6 Como o diagnóstico definitivo de AC requeria, à época, biópsia tissular, assim foi feito. Algoritmos diagnósticos mais recentes reservam a biópsia tissular apenas para os casos suspeitos de AL, já que a CM com Pirofosfato de 99m-Tecnécio substitui a biópsia miocárdica na ATTR.1,9
Essa técnica é usada há tempos para diagnóstico de patologias ósseas, cujo radiotraçador tem grande afinidade pelo cálcio, o qual está presente, quase sempre, apenas nos depósitos da ATTR. Os valores preditivos positivos e negativos para o diagnóstico de ATTR pela CM com escore ≥ 2 é de 88 e 100% respectivamente. Propõe-se certeza diagnóstica quando há escore ≥ 2 na ausência de pico monoclonal de imunoglobulina, o que equivaleria à biópsia endomiocárdica,9 como aconteceu no caso descrito (Figura 1), confirmado pelo teste genético.
Os sintomas cardiológicos mais frequentes na ATTR Val142Ile são: insuficiência cardíaca, dispneia, arritmias e tonteira. Síncope é um achado incomum (8%), mais frequente AL (20%), e quando acontece no esforço representa a inabilidade em aumentar o débito cardíaco, o que confere alta mortalidade.5,10 Além disso contribuem para a ocorrência de síncope, a sensibilidade a depleção de fluidos do intravascular combinada a neuropatia autonômica, reserva miocárdica deprimida, disfunção e rigidez atrial e a presença de arritmias.6 Todas essas possibilidades fazem da síncope uma apresentação multifatorial na AC, como pode ter ocorrido no caso descrito.
O THAOS, um registro mundial, aberto a todos os pacientes portadores de ATTR, mostra que a mutação Val142Ile (também conhecida como Val122Ile) é a segunda mutação mais comum no mundo e a mais comum nos EUA, contabilizando 23% do total neste país e 1% do resto do mundo. Os portadores dessa mutação são, em sua maioria, afrodescendentes e homens, sendo prevalente em 3 a 4% de afroamericanos ao nascerem, com penetrância de aproximadamente 20%.5
A ATTR é uma causa subdiagnosticada de ICFEP, embora depósitos de TTR sejam identificados em até 30% de idosos encaminhados a autópsia.1,2,5 Síncope apesar de incomum na apresentação desse fenótipo, pode ser o primeiro sintoma dessa enfermidade.