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Síndrome complexa de dor regional em região orofacial. Relato de caso

Síndrome complexa de dor regional em região orofacial. Relato de caso

Autores:

Elba Lúcia Wanderley Santos,
Igor Santos Sales,
Nadja Maria Jorge Asano,
Maria das Graças Wanderley de Sales Coriolano

ARTIGO ORIGINAL

BrJP

versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192

BrJP vol.1 no.4 São Paulo out./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180071

INTRODUÇÃO

A síndrome complexa de dor regional (SCDR) se caracteriza por apresentar alterações autonômicas, sensitivas e motoras de evolução crônica. É uma doença de difícil controle cuja fisiopatologia não está totalmente definida, causando preocupação aos profissionais de saúde, na busca de um tratamento cada vez mais eficaz. O comprometimento da região orofacial tem uma incidência ainda mais rara, como mostrado em revisão sistemática realizada de 1947 a 2010, com apenas 14 casos publicados. Assim, mais pesquisas e publicações científicas são necessárias para uma melhor compreensão, diagnóstico preciso e tratamento eficaz desta fenomenologia1.

Essa síndrome orofacial tem origem após lesões teciduais locais, traumas como extrações dentárias difíceis, acidente por instrumentos pérfuro-contundentes, pós-cirurgias, ou mesmo por doenças sistêmicas. Acomete mais o sexo masculino, com idade média de 45,5 anos. A doença é classificada em dois tipos: SCDR tipo I, também denominada distrofia simpático reflexa e SCDR tipo II, também denominada causalgia2.

O quadro clínico desta síndrome na região orofacial pode variar de paciente para paciente. A dor geralmente compromete a topografia inervada pelo sistema simpático local que acompanha o sistema vascular dessa área, compreendendo regiões dos dermátomos1,3. Além disso, o paciente pode apresentar outras alterações locais, como modificações na coloração e na temperatura da pele, hipersalivação, e, em alguns raros casos, alterações tróficas e edema da pele local2. Diferentemente da SCDR tipo I das extremidades, que cursa com alterações profundas teciduais, vasculares e tróficas, essas alterações não são relatadas nesta síndrome orofacial1.

A fisiopatologia é controversa, porém as alterações podem ocorrer no órgão efetor, na fibra aferente periférica, no neurônio simpático, na medula espinhal e nos centros supraespinhais. A teoria principal sobre a origem desta doença indica modificações na recepção, transdução, modulação e percepção da dor, em que as fibras A delta e C sofrem modificações e exacerbam suas atividades, ocasionando distorções desproporcionais na caracterização e sentimento da dor relatada pelo paciente. Uma resposta inflamatória exagerada, cicatrização aberrante4, formação de neuroma, uma estrutura desorganizada com impulsos nociceptivos espontâneos por alterações bioquímicas locais levam a uma distorção do processo de transmissão e modulação da dor5.

O diagnóstico é puramente clínico. Os critérios da International Association for the Study of Pain (IASP) (1994), revisados em 2007 para o diagnóstico da SCDR devem ser seguidos, lembrando que a SCDR orofacial uma entidade rara e de difícil diagnóstico e tratamento6.

O objetivo deste relato foi alertar médicos e pesquisadores para a importância de um diagnóstico correto e mostrar a possibilidade de controle dessa disfunção com o tratamento conservador.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 68 anos, relata ter sofrido queda da própria altura há três meses, com pequena lesão no lábio inferior, próximo à comissura labial esquerda. A partir desse trauma, iniciou um quadro álgico, que perdurou, mesmo após o processo de cicatrização. A dor era contínua, de intensidade 8/9 pela escala analógica visual (EAV). A paciente referia sensação de corpo estranho no local, com edema e dificuldade para falar. Ao exame, o lábio inferior apresentava discreto edema e hiperestesia. Foi submetida a exames de imagem: ultrassom (USG) e tomografia computadorizada (TC) dos lábios, para investigar corpo estranho, porém nada foi detectado, apenas imagem compatível com tecido fibrótico.

Inicialmente, foi estabelecida a hipótese diagnóstica de dor crônica neuropática pós-trauma, por possível neuroma, e prescrito: gabapentina (300mg) 1 comprimido a cada 12h e codeína (30mg) 1 comprimido a cada 8h e mantida a amitriptilina (25mg) que a paciente já usava há 3 anos, para tratamento de neuralgia pós-herpética na face lateral D do tórax, no momento controlada. Não houve alívio para a dor facial.

Após 10 meses, a paciente regressou ao Hospital das Clínicas, com história de intervenção cirúrgica no local da dor, em instituição privada. Foi realizada exérese da região dolorosa endurecida, tendo o exame histopatológico mostrado tecido fibrótico.

Após essa primeira intervenção, a dor se apresentava intensa, espontânea, contínua, acompanhada agora de queimação e alodínia mecânica. Foi reiniciado o tratamento farmacológico: amitriptilina (25mg/dia), gabapentina (300mg) de 8/8h, introduzido o clonazepam (2mg) à noite, fluoxetina (20mg) ao dia, para ansiedade, sintomas depressivos e distúrbios do sono consequentes à dor crônica. A codeína foi substituída pelo tramadol (50mg) a cada 6h, associado ao tratamento com acupuntura. Foi constatada melhora em torno de 40%, no quadro álgico.

Na procura de solução rápida para o seu problema, a paciente se submeteu a mais duas intervenções cirúrgicas, o que agravou ainda mais o quadro doloroso e o seu sofrimento. Queixava-se, na ocasião, de dor com EAV 9/10, queimor e calor local, edema que se agravava quando ela falava, com distorção da anatomia oral, dificuldade para mastigar sólidos. O exame revelou: aumento da temperatura no local, hiperestesia, hiperalgesia e alodínia mecânica na região topograficamente exata dos traumas.

Foi diagnosticada, assim, uma SCDR orofacial, consequente aos traumas sucessivos em nível das vias sensitivas periféricas faciais. Dessa forma, foi reiniciado o tratamento com eletroacupuntura de baixa e alta frequências alternadas, o que gerou alívio imediato da dor; porém, após dois a três dias, a dor retornava na mesma intensidade. Foi associada, então, metadona (5 mg), 1 comprimido a cada 12h (em substituição ao tramadol), e substituída a gabapentina pela oxcarbazepina (300mg) 3 comprimidos ao dia). Foi sendo retirada progressivamente a amitriptilina, para evitar possíveis efeitos adversos, por se tratar de uma paciente idosa.

Com esse esquema terapêutico, a paciente ficou completamente assintomática, por até 24 horas. Infelizmente, começou a apresentar efeitos adversos à metadona, como: edema acentuado em membros inferiores e oligúria. Assim, a metadona foi substituída por morfina simples (10mg) de 6/6h, disponibilizada pelo serviço. Foi realizado resgate nas dores episódicas, com 5mg de morfina, até ficar assintomática, substituindo-se a dose diária pela morfina de liberação controlada (LC), 60mg de 12/12h e início da reabilitação oral.

No momento, a paciente está quase assintomática. Refere apenas dor em peso, EAV 2/3, quando fala mais durante o dia. Usando morfina LC (60mg) de 12/12h, oxcarbazepina (600mg) à noite e 300mg pela manhã. Melhorou da depressão com fluoxetina (40mg/dia) e clonazepam (2mg), 1 comprimido à noite.

DISCUSSÃO

É notório ser a SCDR orofacial um caso desafiador, pela escassez de literatura científica específica e suficiente para direcionar seu manuseio e entendimento adequados.

Os critérios de diagnóstico para a SCDR, preconizados pela IASP, revisados em congresso realizado em Budapeste7,8 são classificados com base em quatro itens. 1) Dor contínua, desproporcional a qualquer evento-incidente; 2) Presença de um sintoma, dentre as quatro categorias seguintes :a) sensorial: hiperestesia e/ou alodínia; b) vasomotor: assimetria de temperatura e/ou mudanças de cor da pele e/ou assimetria de cores da pele; c) sudomotor/edema: edema e/ou mudanças de transpiração e/ou suavização da assimetria; d) motor/trófico: diminuição da amplitude de movimento e/ou disfunção e/ou mudanças tróficas; 3) exibir pelo menos um sinal, no momento da avaliação, dentre dois ou mais das seguintes categorias: a) sensorial: hiperalgesia e/ou alodínia, b) vasomotor: evidência de assimetria de temperatura (>1ºC) e/ou mudanças na cor da pele e/ou assimetria; c) sudomotor/edema: evidência de edema e/ou mudanças de transpiração e/ou suavização da assimetria; d) motor/trófico: evidência de diminuição da amplitude de movimento e/ou disfunção motora e/ou mudanças tróficas e 4) Não existe outro diagnóstico que explique melhor os sinais e sintomas.

A paciente preenchia os 4 itens dos critérios diagnósticos preconizados pela IASP e revisados em 2007. Dor desencadeada após vários eventos nocivos no lábio inferior, à esquerda; presença de dor intensa (EAV 9/10) contínua, espontânea, não proporcional ao evento inicialmente desencadeante; alodínia mecânica, hiperalgesia, edema, sensação de calor local, além da distorção da anatomia, com dificuldade para falar. Foram excluídas outras possibilidades diagnósticas de dor facial, através de exames complementares e avaliações com equipe multidisciplinar.

No tratamento desses pacientes é fundamental a reabilitação e o alívio da dor, com a utilização de fármacos e intervenções, como bloqueio simpático e somático9.

No tratamento farmacológico podem ser empregados opioides, que devem seguir o protocolo para dor crônica não oncológica10. Antidepressivos tricíclicos têm sua eficácia comprovada na modulação da dor crônica por vários mecanismos, principalmente bloqueio da receptação da serotonina e noradrenalina. Os anticonvulsivantes, através de estabilização dos canais de sódio, cálcio e potássio. A gabapentina mostrou-se eficaz para o tratamento dessa síndrome11-13. A carbamazepina é também indicada em dor neuropática na região de cabeça e pescoço14. O bloqueio do nervo somático ou gânglio simpático é realizado em casos mais complexos e refratários da síndrome3.

Um dos tratamentos não farmacológicos descritos na literatura é o uso de eletroestimulação, como estimulação elétrica nervosa transcutânea, estimulação nervosa percutânea (eletroacupuntura), ou mesmo a utilização de biofeedback, porém são poucos os estudos controlados que validem o emprego dessas técnicas11.

Neste relato, o tratamento consistiu em eletroacupuntura com baixa e alta frequências alternadas, que propicia a liberação de diferentes neurotransmissores opioides em nível central, com efeito inibitório e modulatório da dor crônica15. Foram administrados opioides (morfina LC) e o anticonvulsivante (oxcarbazepina), levando em consideração que o opioide pode ser utilizado quando outras medidas terapêuticas falham e a paciente não respondeu ao anticonvulsivante de primeira linha indicado na literatura16. O antidepressivo seletivo da recaptação da serotonina foi utilizado para estabilização emocional. A paciente melhorou em 80%, não necessitando de bloqueio do gânglio estrelado simpático, possivelmente por se tratar de SCDR do tipo II7. A oxcarbazepina foi mais eficaz em relação à gabapentina16.

Heir et al.17 observaram os tratamentos para essa síndrome em dois casos relatados. No primeiro, foram realizados dois bloqueios do gânglio estrelado, obtendo uma melhora de 80%; e no segundo, após inúmeras falhas no tratamento, só foi possível abolir o quadro álgico com esse bloqueio. Segundo Melis et al.18, a presença de sinais e sintomas reflexos simpáticos é uma das principais indicações para a aplicação de bloqueio ganglionar. Possivelmente, nos casos relatados, havia manutenção do quadro clínico pelo sistema nervoso simpático, obtendo-se uma resposta ótima no controle da dor, o que não foi o caso deste relato, pois optou-se primeiramente pelo tratamento conservador para o controle da dor, levando em consideração a idade da paciente, complicações irreversíveis e o embasamento científico7,18,19. Ressaltando que mudanças vasomotoras e sudomotoras não fornecem necessariamente evidências para dor mantida pelo simpático, mas certamente demonstram envolvimento do simpático20.

Sakamoto et al.21 relataram um caso em que o paciente foi submetido aos mais diversos tipos de tratamentos farmacológicos e não farmacológicos. O mais eficaz foi o bloqueio do gânglio estrelado, que proporcionava um alívio instantâneo e completo da dor por alguns dias. A dor retornava, sendo necessário realizar o procedimento inúmeras vezes, o que o tornava menos efetivo e necessitava sua associação com os mais diversos tratamentos. No período de 1996 a 2001, alguns fármacos utilizados atualmente ainda não haviam sido aplicados no tratamento da SCDR.

CONCLUSÃO

Este relato demonstrou a importância do alerta para o diagnóstico da SCDR orofacial, bem como do controle da dor, principalmente no tipo II, adotando uma conduta conservadora.

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