versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.2 São Paulo abr./jun. 2016 Epub 24-Maio-2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082016RC3429
A síndrome da hiperestimulação ovariana (SHO) é a combinação do aumento dos ovários, devido à presença de múltiplo cistos e de hiperpermeabilidade vascular, que resulta em saída de fluido a partir do espaço intravascular, com subsequente hipovolemia e hemoconcentração.(1)
Na maioria dos casos, a SHO é uma complicação iatrogênica de indução de ovulação. A SHO grave apresenta incidência de 1 a 2% em ciclos de hiperovulação e permanece como uma das complicações mais significantes do uso de gonadotrofina em tecnologias de reprodução assistida. Essa síndrome é associada com morbidade, porém raramente com mortalidade.(2) Não é frequente sua associação com ciclos ovulatórios espontâneos. A síndrome é geralmente descrita em gravidezes múltiplas, hipotireoidismo gestacional, e gravidezes molares.(3)
Os sintomas da SHO espontânea se desenvolvem mais tardiamente do que na SHO iatrogênica: a síndrome ocorre entre 3 a 5 semanas de amenorreia em ciclo iatrogênico, e entre 8 e 12 semanas de amenorreia em casos de SHO espontânea.(4)
A SHO pode ser classificada em leve, moderada e grave, baseada na gravidade dos sinais, sintomas, exames laboratoriais e achados ultrassonográficos. A SHO grave é caracterizada por ovário aumentado (maior do que 12cm), presença de diversos cistos no ovário, ascites e, algumas vezes, efusão pleural e/ou pericárdica. Alguns caso podem apresentar desequilíbrio eletrolítico (hiponatremia e hipercalemia), choque hipovolêmico, insuficiência renal, tromboembolismo e morte.(5)
Relata-se caso de SHO espontânea em gestação única.
Paciente com 25 anos de idade, nulípara, com gestação espontânea, de 12 semanas, de acordo com o último período menstrual. A gravidez ocorreu sem eventos significativos até 11 semana de idade gestacional; após, a gestante passou a se queixar de distensão abdominal progressiva, associada com desconforto abdominal, porém sem outros sintomas.
O exame ultrassonográfico de rotina do primeiro trimestre mostrou ovários aumentados, cistos múltiplos e ascite.
Não foi encontrada referência a doenças. Os ciclos menstruais da pacientes eram irregulares, sem dismenorreia, acne ou hirsutismo. A paciente não relatou doença ginecológica.
A paciente foi hospitalizada e, na internação, estava hemodinamicamente estável. O exame pélvico mostrou tamanho do útero compatível com a idade gestacional. As massas anexiais bilaterais eram grandes e móveis.
Os exames laboratoriais mostraram nível de hemoglobina de 13,1g/dL, hematócrito de 39,5%, hipoalbuminemia de 2,3g/dL e hipoproteinaemia de 5,2g/dL; teste de coagulação, função renal e hepática sem alterações (ureia de 29mg/dL e creatinina de 0,8mg/dL). O β-hCG foi de 24.487mlU/mL, hormônio estimulante da tireoide (TSH - thyroid-stimulating hormone) de 2,2μUI/mL e T4 livre de 1,8ng/dL, – ou seja, todos os valores estavam dentro dos parâmetros normais. Porém, os níveis de estradiol aumentaram (10.562pg/mL).
A sonografia transvaginal revelou feto com 12 semanas de idade gestacional e fluido amniótico normal. Os ovários estavam aumentados (ovário direito com 13,9cm e o esquerdo 12,8cm, medidos a partir de seus eixos principais), com cistos múltiplos e quantidade moderada de líquido pélvico. O resultado do ultrassom para anormalidade cromossômica foi negativo.
Durante a hospitalização, a paciente foi mantida em vigilância clínica e sonográfica, e recebeu albumina humana intravenosa por 3 dias, além de furosemida (40mg/dia) e dose profilática de enoxaparina. A paciente permaneceu clinicamente estável, apresentando recuperação nos exames séricos e nos parâmetros sonográficos. A alta hospitalar ocorreu no sexto dia após internação. Na alta, o ultrassom revelou ovários aumentados, estando o direito com 9,3cm e o esquerdo com 8,1cm a partir de seus eixos principais. Não se observaram sinais de ascite.
A gestação continuou sem outras complicações. A criança nasceu de parto normal, do sexo masculino e com idade gestacional de 39 semanas e 5 dias, pesando 3.125kg. Não houve complicações no puerpério.
No décimo dia após o parto, a paciente estava assintomática, e 6 meses após o parto, iniciou tratamento com Depo® (acetato de medroxiprogesterona) intramuscular para contracepção; não foram observadas alterações ao exame físico. A sonografia pélvica mostrou útero com tamanho regular e uniforme, endométrio fino e regular, e os ovários estavam normais.
Em geral, as formas espontâneas da SHO se desenvolvem entre 8 e 14 semanas de amenorreia, diferindo da SHO iatrogênica, que normalmente inicia-se entre 3 a 5 semanas de amenorreia. As formas espontâneas da SHO são muito raras e sempre relatadas durante a gravidez. Diversos casos têm sido observados durante gestações múltiplas ou mola hidatiforme, conhecidas por se associarem com anormalidade, como valores altos de hCG. Outros casos são associados com hipotireoidismo, sugerindo que os altos níveis de TSH podem estimular os ovários.
O mecanismo patofisiológico do SHO não é totalmente explicado. Ele parece depender da liberação de substâncias vasoativas secretadas pelos ovários, causando hiperpermeabilidade mesotelial com extravasamento de fluído do espaço intravascular para o espaço extravascular, gerando um terceiro espaço massivo. O crux é um equilíbrio entre os fatores pró-angiogênicos e antiangiogênicos presentes no fluído folicular. β-hCG, estradiol, prolactina, histamina e prostaglandinas têm sido apontados como atuantes na SHO, porém hoje entende-se muito melhor que as substâncias vasoativas, como interleucinas, fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), endotelina 1 e fator de crescimento vascular endotelial (VEGF) secretado por meio dos ovários, têm atuado no aumento das permeabilidade vascular.(3,6)
A perda de fluído e proteína na cavidade abdominal gera hipovolemia e hemoconcetração, responsáveis por distúrbios na circulação e na função renal. A maioria das complicações mais sérias são resultados de hipercoagulabilidade e diminuição da perfusão renal.
A intensidade da síndrome está relacionada com grau de resposta folicular ovariana. Os estrógenos produzidos por meio dos folículos desenvolvidos atingem altos níveis e podem ser utilizados como marcadores do grau de hiperestimulação.
Na maioria dos casos, a SHO é resultado de administração de gonadotrofinas exógenas nos tratamentos para infertilidade. Porém, em algumas circunstâncias, essa síndrome também ocorre quando não há esse tratamento. Alguns autores sugerem que a ocorrência dessa síndrome é mais frequente em casos de síndrome do ovário policístico, hipotireoidismo, gestação gemelar e doença molar.(3) Em nosso caso, a paciente não apresentou nenhuma dessas alterações.
O câncer ovariano pode ser parte do diagnóstico diferencial nos casos com rápido crescimento do ovário. Porém, o envolvimento bilateral e as imagens ultrassonográficas de cistos simples e parede fina homogênea, mesmo com vascularização fisiológica padrão, sugerem disfunção benigna.(7) A medida sérica CA-125 tem pouco interesse, já que seu valor é normalmente alto durante a gestação. Determinar os níveis de estradiol pode ser a chave para o diagnóstico. Os níveis de estradiol acima de 6.00pg/mL, assim como as características de massas ovarianas por meio de ultrassom, foram consistentes com SHO.(8)
A causa da hiperestimulação do ovário espontânea parece ser um permissividade do ovário ao hormônio estimulante folicular (FSH - follicle-stimulating hormone) receptor para hCG e/ou TSH. Três mecanismos são descritos na gênesis de SHO espontânea. Há relatos de SHO espontânea associada com altos níveis de hCG, particularmente em gravidez molar e nascimentos múltiplos. Este mecanismo é relacionado à hiperativação do receptor FSH em células granulosas do ovário, por meio do hCG, com consequente hiperestimulação do ovário. Do mesmo modo, o TSH elevado espontaneamente por hiperativação do FSH, a partir do receptor TSH, como ocorre no hipotireoidismo, poderia causar a síndrome. O terceiro mecanismo é baseado na mutação do receptor FSH, com consequente diminuição de sua especificidade e aumento da sensibilidade ao hCG e TSH.(9,10)
De Leener(11) classificou a síndrome de SHO espontânea em três tipos, com base na apresentação clínica e na mutação do receptor FSH. O tipo I é associado com mutação do receptor FSH e pode causar recorrência de SHO espontânea. O tipo II é secundário a altos níveis de hCG, assim como em mola hidatiforme e gestações múltiplas, sendo que é o tipo mais frequente. O tipo III está relacionado ao hipotireoidismo. As mutações no receptor do hormônio estimulante folicular (FSHR - follicle-stimulating hormone receptor) podem ser ativadas, levando a uma predisposição à SHO, ou inativadas, resultando em esterilidade, devido à fraca responsta dos ovários às gonadotrofinas. Os polimorfismos do FSHR têm sido investigados, e cerca de 744 polimorfismos de nucleotídeo único foram identificados no gene FSHR. Destes polimorfismos, apenas oito estavam localizados na região codificadora, éxons, sendo o restante intrônicos. A resposta ovariana é dependente do genótipo do FSHR. Estudos clínicos com o polimorfismo p.N680S do gene do FSHR demostraram que a variante homozigótica Ser/Ser é menos sensível ao FSH endógeno ou exógeno em relação a produção de estradiol. O polimorfismo do FSHR, Ser680Asn, no gene do FSHR, é um preditor de gravidade dos sintomas em pacientes que desenvolveram SHO.(12,13)
As mutações ativas do gene do FSHR, que causam hiper-resposta para FHS circulante, ou mesmo reposta cruzada do FSHR aos hormônios com estrutura similar ao FSH, como hCG ou TSH,(14) e a mutação do gene receptor hCG/LH provocaram aumento na resposta aos níveis normais de hCG e, portanto, hiper-resposta nos ovários.(11)
No caso descrito, os valores de TSH e hCG foram normais. O mecanismo mais provável é a mutação do gene receptor do FSH. Este diagnóstico é possível pelo sequenciamento genético, já que diversas mutações no gene têm sido descritas. A presença de mutação tem implicações em relação à recorrência da síndrome em gestações futuras.(10) Apesar dos ovários aumentados e de ascite moderada, a paciente apresentou poucos sintomas, o que permitiu uma abordagem convencional, com uso apenas de infusão de albumina humana.