versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.7 Rio de Janeiro 2016 Epub 21-Jul-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00047716
Desde abril de 2015, o vírus Zika (ZIKV) foi identificado como o agente etiológico de doença exantemática aguda no Brasil 1 e, a partir de outubro do mesmo ano, neuropediatras do Recife (Pernambuco) deram o sinal de alerta sobre uma epidemia de microcefalia com alterações radiológicas peculiares, sugestivas de infecção congênita (calcificações, ventriculomegalia e desordem do desenvolvimento cortical), tendo sido afastadas as principais causas de infecção congênita que cursam com calcificações cerebrais (citomegalovírus e toxoplasmose), assim como outras causas genéticas ou ambientais 2. A incidência de casos de microcefalia no Brasil aumentou consideravelmente no segundo semestre de 2015, chegando, no momento, a 907 casos confirmados e 4.293 ainda em investigação (Portal Brasil. http://www.brasil.gov.br/saude/2016/03/ministerio-da-saude-investiga-4-293-casos-de-microcefalia-no-brasil). A Organização Mundial da Saúde (OMS) atualmente define microcefalia como um perímetro cefálico (PC) igual ou inferior a 31,9cm para meninos e igual ou inferior a 31,5cm para meninas nascidos a termo 3.
Microcefalia não é uma doença em si, mas um sinal de destruição ou déficit do crescimento cerebral, podendo ser classificada como primária (de origem genética, cromossômica ou ambiental, incluindo infecções) ou secundária, quando resultante de evento danoso que atingiu o cérebro em crescimento, no fim da gestação ou no período peri e pós-natal. As sequelas da microcefalia vão depender de sua etiologia e da idade em que ocorreu o evento, sendo que, quanto mais precoce a afecção, mais graves serão as anomalias do sistema nervoso central (SNC) 4. No caso da síndrome da Zika congênita, parecem ocorrer alterações cerebrais também nos segundo e terceiro trimestres da gestação 5), (6. A microcefalia congênita pode cursar diversas alterações, sendo as mais frequentes a deficiência intelectual, paralisia cerebral, epilepsia, dificuldade de deglutição, anomalias dos sistemas visual e auditivo, além de distúrbio do comportamento (TDAH e autismo) 7.
Apesar de ainda serem escassos os conhecimentos sobre a evolução natural da doença e sua patogenia, as evidências atuais são fortes o suficiente para estabelecermos a relação causal entre a infecção pelo ZIKV durante a gravidez, em especial no primeiro trimestre e não necessariamente sintomática, e o aumento da frequência de abortos, natimortos e mortalidade precoce, além da microcefalia 2), (8), (9), (10), (11.
Ao exame físico dos recém-nascidos com síndrome da infecção congênita pelo ZIKV, chama atenção a microcefalia, geralmente grave, com importante desproporção craniofacial. Outras dismorfias, como acentuada protuberância óssea occipital, fontanelas fechadas ao nascer, excesso de pele e/ou dobras de pele no escalpo, além de hérnia umbilical são frequentemente observadas.
Entre as anormalidades neurológicas observadas destacam-se a hipertonia global grave com hiper-reflexia, irritabilidade, hiperexcitabilidade, choro excessivo, distúrbio de deglutição, além de respostas auditivas e visuais comprometidas. Algumas crianças apresentam crises convulsivas já no período neonatal, e observou-se um aumento da frequência destas crises durante o seguimento, sendo a ocorrência de crises epilépticas mais evidentes a partir dos três meses de idade e os espasmos epilépticos o tipo mais comum.
Os exames de imagem do SNC (ultrassonografia transfontanela, tomografia e ressonância magnética) passaram a definir essa nova síndrome, com características distintas das observadas em recém-nascidos com microcefalia provocada por outras infecções congênitas, mostrando marcantes calcificações difusas, puntiformes e predominando na junção córtico-subcortical, podendo estar presente ainda no tronco, núcleos da base e região periventricular. Outros achados incluem comprometimento do padrão de migração neuronal, além de dilatação ventricular, atrofia cortical, atrofia de tronco ou cerebelo e disgenesias do corpo caloso 12. A análise do eletroencefalograma evidencia anormalidades de natureza não epileptiforme inespecíficas, mas também variáveis anormalidades epileptiformes (focais, multifocal ou generalizada, podendo evoluir para o padrão hipsarrítmico), devendo fazer parte do protocolo de seguimento dessas crianças.
Numa frequência menor de pacientes foram identificadas deformidades ósseas, em especial a artrogripose (contraturas congênitas) e pés tortos congênitos. Anormalidades oculares já foram documentadas nessa população, sendo descritos casos de atrofia macular, além de nistagmo horizontal, alteração na retina, no nervo óptico 13.
Ainda são escassos os conhecimentos sobre essa nova síndrome, tanto sobre sua evolução natural, como dos seus fatores de risco ou associados. Desconhecemos a frequência de abortos e morte fetal ou neonatal, assim como todo o espectro de comprometimento das crianças afetadas e o grau de gravidade prognóstica das mesmas. É importante salientar que só estamos avaliando no momento os recém-nascidos com microcefalia de moderada a grave, sem conhecermos outros possíveis comprometimentos das crianças com microcefalia leve (PC entre 32 e 33cm para os recém-nascidos a termo) ou daquelas sem microcefalia, mas cujas mães tiveram infecção pelo ZIKV durante a gravidez (mesmo que assintomática).
Pela complexidade dos casos, a assistência desses bebês deve ser realizada por equipe multidisciplinar, incluindo pediatra, neurologistas e profissionais de estimulação precoce, destacando fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo. Após avaliações iniciais e realização dos exames complementares, propomos reavaliações pediátricas mensais e neurológicas trimestrais para os pacientes estáveis. Conforme a evolução, são necessárias as reavaliações oftalmológica e auditiva semestrais. Diante do impacto familiar, é recomendável apoio psicológico, bem como de assistente social, aos responsáveis. Garantir essa assistência no Sistema Único de Saúde (SUS) é o desafio do momento.