versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 19-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3825
A síndrome da leucoencefalopatia posterior reversível (PRES) foi descrita pela primeira vez por Hinchey, em 1996.1 A síndrome é caracterizada pela ocorrência de encefalopatia, concomitantemente a uma ampla gama de sinais e sintomas que incluem cefaleia, visão alterada, diminuição da acuidade visual, cegueira cortical, confusão, estupor, convulsões e alucinações.1,2 Está associada a edema vasogênico de substância branca, predominantemente nos lobos occipital e parietal.5,6 Sua fisiopatologia, contudo, ainda não é totalmente compreendida. Acredita-se que disfunção endotelial e alterações da autorregulação cerebral estejam implicadas.1 A PRES é geralmente associada a encefalopatia hipertensiva, eclâmpsia e uso de medicamentos imunossupressores, particularmente os inibidores da calcineurina; a maioria dos pacientes apresenta elevação acentuada da pressão arterial.1
O presente artigo relata o caso de uma receptora de transplante renal em regime imunossupressor com tacrolimus que manifestou PRES. É enfatizada a importância do diagnóstico precoce e da imediata tomada de medidas terapêuticas.
Uma paciente branca de 48 anos de idade com doença renal terminal por doença policística do adulto foi internada para receber um transplante renal de doador falecido em abril de 2015. A paciente iniciara terapia renal substitutiva com hemodiálise sete anos antes e encontrava-se em bom estado geral de saúde sem comorbidades significativas. O doador era uma menina de dois anos de idade vítima de encefalopatia anóxica. Na coleta de órgãos, a creatinina sérica da doadora estava em 0,58 mg/dL. A doadora e a receptora apresentaram quatro incompatibilidades de HLA (ABDR). A prova cruzada foi negativa e não foram encontrados anticorpos anti-HLA doador-específicos no soro do receptor. Os rins foram transplantados “em bloco” e o procedimento foi realizado após 18 horas de isquemia fria em solução de preservação estática Euro-Collins. O regime imunossupressor consistiu de indução com Basiliximab®, tacrolimus, micofenolato sódico e corticosteroides. O enxerto apresentou função imediata e a paciente recebeu alta no dia 36 do pós-operatório. Durante a internação, ela apresentou infecção do trato urinário e foi submetida a antibioticoterapia por dez dias. O nível sérico de tacrolimus três semanas antes da alta era de 15 µg/mL (administração de tacrolimus 7 mg duas vezes ao dia por via oral). A dosagem foi imediatamente reduzida para 5 mg duas vezes ao dia; três dias após o ajuste da dose, o nível sérico chegou a 11,4 µg/mL; foi feito um novo ajuste da dose para 4 mg duas vezes ao dia. Na alta, a creatinina sérica estava estável em 1,6 mg/dL e no nível sérico de tacrolimus encontrava-se em torno de 10 µg/mL. No décimo-nono dia de pós-operatório, o micofenolato sódico foi substituído por azatioprina por conta de diarreia grave e ausência de resposta a fracionamento e redução da posologia.
Três dias após a alta a paciente retornou ao pronto-socorro com queixa de cefaleia intensa, visão turva e confusão. A pressão arterial estava em 180/100 mmHg, a temperatura axilar em 38 °C e o exame físico geral não revelou anormalidades. Ao exame neurológico a paciente estava confusa, desorientada e apresentando alucinações. Também foram observadas alterações visuais transitórias e hemianopsia esquerda sem sinais de irritação meníngea. Os exames laboratoriais revelaram função estável do enxerto (creatinina sérica 1,53 mg/dL), anemia (hemoglobina 7,7 g/dL) com contagem normal leucócitos, proteína C reativa ligeiramente aumentada (10 mg/dL) e nível sérico de tacrolimus em 10,3 ng/mL. A paciente recebeu Esmolol endovenoso para controle de pressão arterial e antibióticos empíricos endovenosos enquanto eram aguardados os resultados das culturas. Imagens de tomografia computadorizada do cérebro mostraram intensa hipodensidade subcortical nas substâncias branca e cinzenta nos lobos parietal e occipital. Apagamento dos sulcos corticais, mais evidente nos recessos dos hemisférios cerebrais, também estava presente, fazendo com que a PRES fosse considerada no diagnóstico diferencial (Figura 1A). Imagens de ressonância magnética mostraram hiperintensidade em T2/FLAIR nas regiões têmporo-occipital e frontoparietal da convexidade superior, sem sinais de difusão ou sangramento (Figura 1B).
Figura 1 A. Tomografia computadorizada do cérebro, revelando ampla hipodensidade subcortical na substância branca e cinzenta dos lobos parietal e occipital. Apagamento dos sulcos corticais, mais evidente nos recessos dos hemisférios cerebrais. B. Ressonância magnética revelando hiperintensidade em T2/FLAIR nas regiões têmporo-occipital e frontoparietal da convexidade superior, sem sinais de difusão ou sangramento.
O tacrolimus foi retirado da terapia imunossupressora. Nos dois dias seguintes, a paciente apresentou reversão completa dos sintomas neurológicos. Foi iniciada ciclosporina 100 mg duas vezes ao dia, chegando a um nível sérico de 146 ng/mL. A função do enxerto manteve-se estável e, dois anos após o transplante, a paciente desfruta de boa condição geral e boa função do enxerto (creatinina sérica 1,2 mg/dL), relação proteína-creatinina em amostra aleatória de urina de 0,35 mg/mg, sem novos episódios de estado mental alterado ou demais sinais neurológicos.
A PRES está associada a uma variedade de condições, incluindo encefalopatia hipertensiva, eclâmpsia, porfiria, hipomagnesemia, sepse, doença renal crônica e uso de medicamentos imunossupressores, particularmente os inibidores da calcineurina (CNI).1,2 A síndrome foi relatada em receptores de transplante de órgãos sólidos e medula óssea.3,4,5,6,7 A incidência após transplante de órgãos sólidos foi estimada em cerca de 0,5%.1,6,8 A maioria dos relatos de PRES envolve pacientes em terapia imunossupressora com CNI (ciclosporina ou tacrolimus), embora casos com inibidores da mTOR (sirolimus ou everolimus) também tenham sido citados.9,10,11 O tacrolimus foi o principal medicamento utilizado nos casos descritos. Não foi relatada relação aparente com níveis séricos do fármaco. A interrupção do medicamento causador geralmente leva a melhora clínica.7,9,11
O diagnóstico de PRES requer um alto nível de suspeita. Em ambiente clínico, as queixas do paciente, o exame físico - e especialmente o neurológico - são elementos cruciais na propedêutica diagnóstica. Exames por imagem, normalmente TC e em especial a ressonância magnética, corroboram o diagnóstico, pois revelam a presença de edema de substância cinzenta e branca, primariamente nos lobos occipital e parietal e, em menor grau, nos lobos frontal e temporal, ponte, cerebelo e outros locais.1 No contexto pós-transplante, o diagnóstico diferencial inclui infecções ou encefalite autoimune, vasculite e doenças malignas do sistema nervoso.12 Trombose da artéria basilar com infarto bilateral simultâneo do território da artéria cerebral posterior é outro importante diagnóstico diferencial confirmado via ressonância magnética.13 Os achados de ressonância magnética fornecem o aspecto fisiopatológico predominante da síndrome, a disfunção endotelial que induz o edema cerebral.1,14,16
No presente relato de caso, a PRES parecia estar associada ao uso de tacrolimus, uma vez que houve uma rápida melhora clínica após a suspensão do medicamento. Nossa paciente nunca foi exposta a níveis tóxicos de tacrolimus, o que nos impediu de experimentar um regime de dosagem mais baixa do medicamento. Em vez disso optamos pelo uso da ciclosporina, começando com doses baixas e controlando os níveis séricos até a concentração terapêutica mais baixa. A opção pela ciclosporina se deu em função da menor incidência de neurotoxicidade observada em relação ao tacrolimus.7,8,9 No entanto, devemos reconhecer que poderia ter havido recidiva com ciclosporina.
Duas abordagens principais foram descritas para o tratamento da síndrome em receptores de transplante de órgãos sólidos: suspensão do suposto fármaco ofensivo e redução da dose.7,8,9 Na primeira abordagem, o medicamento é geralmente substituído por outro agente imunossupressor, como feito em nosso relato. A segunda possibilidade procura atingir o menor nível eficaz do medicamento.
A fisiopatologia da PRES ainda não foi completamente elucidada. Duas hipóteses principais foram propostas, ambas relacionadas a mudanças no fluxo sanguíneo cerebral.8,12,13,17 Em suma, atualmente acredita-se que hipertensão e falha transitória na autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral causam edema vasogênico. As respostas neurogênicas e miogênicas levam a vasodilatação vascular cerebral e a subsequentes extravasamentos de líquidos no parênquima cerebral.1,11,15 Contudo, alguns pacientes apresentam pressão arterial normal. Uma possível explicação alternativa estaria relacionada a dano e disfunção endotelial, seguidos de vasoconstrição e hipoperfusão cerebral.6,12,17 Do mesmo modo, incertezas ainda pairam sobre a fisiopatologia da PRES associada a medicamentos imunossupressores e fármacos citotóxicos. Credita-se a sua ocorrência a um efeito tóxico direto que causa danos ao endotélio vascular, levando a disfunção endotelial, o que causaria vasoespasmo, redução da perfusão tecidual, ativação da cascata da coagulação e extravasamento de líquidos.1,12,17 Inicialmente sugeriu-se que um insulto tóxico agudo de origem indeterminada produzido por tais agentes farmacológicos resultaria em edema axonal e aumento do teor de água na substância branca.6,15,16 Outra alternativa propunha que o espasmo vascular secundário à elevação das concentrações de endotelina pudesse produzir um quadro de isquemia reversível. 12,17,18
Estudos anteriores indicaram que polimorfismos em genes metabolizadores de medicamentos poderiam explicar a propensão para neurotoxicidade. O tacrolimus é um substrato para a bomba de efluxo da P-glicoproteína codificada pelo gene-1 da multirresistência a medicamentos. Embora seja lipofílico, o tacrolimus não atravessa a barreira hematoencefálica pela ação da bomba de efluxo da P-glicoproteína. Entretanto, os polimorfismos que prejudicam a função adequada das bombas de efluxo podem permitir que o tacrolimus penetre a barreira hematoencefálica para, assim, causar toxicidade.7,19
Dano neurológico persistente é relatado em 10-20% dos pacientes e, embora a PRES não seja uma complicação frequente após o transplante, seu reconhecimento precoce e a retirada do agente imunossupressor ofensivo são cruciais, pois atrasos nas medidas podem levar a morbidade e mortalidade significativas, enquanto o reconhecimento e a intervenção em tempo hábil geralmente levam à recuperação total.6,7,8
Em conclusão, nossa paciente apresentou PRES relacionada a tacrolimus. O diagnóstico precoce e a suspensão do tacrolimus permitiram a sua recuperação completa. A PRES deve ser considerada no diagnóstico diferencial de receptores de transplante de órgãos sólidos com sintomas neurológicos de modo a identificar a síndrome e fornecer suporte e tratamento adequados.