versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160075
Mulher de 83 anos com histórico de hipertensão arterial, insuficiência cardíaca diastólica, doença renal crônica sem diálise (CKD-EPI e-GFR = 52,2 ml/min/1,73 m2, fibrilação atrial paroxística em tratamento anticoagulante com rivaroxabana e Acidente vascular cerebral há 2 anos, que foi recentemente hospitalizada devido à cardiomiopatia descompensada, tendo recebido alta com perda prévia de funcionalidade.
A paciente foi encaminhada ao um serviço de urgência em um hospital terciário com história de fezes escuras e fétidas na fralda, associada à prostração. Melena não foi detectada através de exame retal e a endoscopia gastrointestinal alta não revelou sinais de hemorragia. A paciente evoluiu com um nível de consciência decrescente, sendo intubada para proteção das vias aéreas, e posteriormente apresentou choque séptico, sendo transferida para a UTI.
Durante a inserção do cateter urinário permanente, a paciente exteriorizou piúria. Foi submetida a uma cultura de urina e iniciou antibioticoterapia com piperacilina-tazobactam, devido à hospitalização recente. No dia 2 de internação hospitalar, a doente evoluiu com choque refratário e a sua urina foi notada como de cor roxa na bolsa coletora (Figura 1), sendo ampliada a terapia com antibióticos através de meropenem empiricamente. A cultura urinária realizada quando da admissão da paciente apresentou crescimento de Streptoccocus agalactiae. Apesar do uso de vancomicina após o resultado da cultura, a paciente evoluiu para óbito.
A síndrome da urina roxa foi observada pela primeira vez por Barlow e Dickson em uma carta à The Lancet em 1978, tendo identificado a presença do índigo através da espectrometria e levantando a hipótese de ser resultado da excreção de sulfato de indoxil, gerado pela degradação do triptofano intestinal.1
Posteriormente, outros autores questionaram a cor da urina, pois o índigo estaria relacionado à coloração azul, formulando a hipótese de que a urina se tornaria roxa somente quando em contato com a bolsa coletora; eles também associaram a cor à presença de bactérias como Pseudomonas aeruginosa e Proteus spp.2
Em relatos prévios, autores já associaram a síndrome a mulheres idosas com história de demência e constipação. McSherry3 também corroborou a ideia da bolsa de urina roxa atribuída à presença de índigo como um produto do metabolismo do sulfato de indoxil a partir da degradação do triptofano intestinal, mas estudos posteriores apontaram indicanúria como causa da coloração roxa.4,5
Dealler et al.6 estudaram seis casos da síndrome e a associaram à infecção urinária por Providencia suartii e Klebsiella pneumonia com presença de índigo e indirrubina na urina; Eles também descobriram, no laboratório, que apenas estas espécies e Enterobacter agglomerans eram capazes de produzir índigo in vitro.
Na década de 90, Umeki7 observou que a habilidade do sulfato de indoxil de se transformar em índigo (azul) e indirrubina (vermelho) era mediada por enzimas bacterianas chamadas indoxil fosfatase e sulfatase, produzidas por Proteus mirabilis e Klebisiella Pneumoniae, sendo catalisadas em urina alcalina. Quase uma década mais tarde, a síndrome urina roxa na bolsa coletora foi associada a mulheres e urina alcalina, sendo a infecção urinária o fator de risco mais importante para sua ocorrência.8
A literatura mostra que a ocorrência da síndrome da urina roxa na bolsa coletora é mais comum em mulheres idosas, usuárias de cateter urinário permanente, constipadas e apresentando urina alcalina.8-12 A presença de urina alcalina foi relatada posteriormente em um estudo caso-controle.13
Recentemente, uma coorte demonstrou a incidência da síndrome da urina roxa em 16,7% dos pacientes institucionalizados, relacionando-a com mulheres com presença de gram-negativos em sua cultura de urina (Pseudomonas aeruginosa, Citrobacter koseri, Providencia rettgeri, Morganella morganii e Escherichia coli), questionando a necessidade de pH alcalino na urina para sua ocorrência.14
Revisões recentes da literatura estabeleceram que a constipação associada à hiperproliferação bacteriana leva à perda do radical amino triptofano e formação de indol, conjugado em sulfato de indoxil no fígado; a ação de enzimas bacterianas na urina, sulfatase e fosfatase produzem índigo (azul) e/ou sua oxidação em indirrubina (vermelho), que ocorre quando em contato com a bolsa de urina.15,16
Bar-Or et al.17 relataram há alguns anos a ocorrência da síndrome da urina roxa em ambiente não alcalino, também associada à presença de índigo. Chung et al.18 registraram a síndrome em urina ácida com desenvolvimento de bactérias gram-negativas em cultura. Em 2007, a síndrome foi relacionada primeiramente à morte.19 Mais recentemente, a incerteza a cerca da benignidade da síndrome aumentou devido a outro caso de morte. Nessa ocasião, a cultura de urina revelou a presença de Pseudomonas aeruginosa e Enterococcus resistentes à vancomicina.20
O paciente relatado havia sido hospitalizado recentemente devido à insuficiência cardíaca descompensada e, revendo seu prontuário, vimos que não havia registro do uso de antibióticos à ocasião. Apesar da suspeita da ocorrência de hemorragia digestiva alta, a endoscopia feita no pronto atendimento não revelou sangramentos.
Em rápida evolução, o paciente apresentou um nível de consciência decrescente e hipotensão, sendo transferido para nossa UTI. No cateter urinário residente, o paciente exteriorizou pirúria de cor escura. Os exames laboratoriais realizados à admissão revelaram lesão renal aguda (KDIGO estágio 3) e contagem de leucócitos de 62.000/mL na urina, com bacteriúria e pH = 5,0; o hemograma não mostrou sinais de leucocitose.
O paciente recebeu piperacilina-tazobactam de forma empírica imediatamente após a coleta de culturas e suporte intensivo para choque séptico, seguindo protocolos institucionais e internacionais. A escolha empírica da terapia com antibióticos de amplo espectro deveu-se à hospitalização recente. No dia 2 de internação, observou-se a presença de urina roxa na bolsa coletora.
Em uma rápida revisão da literatura, ampliamos o espectro da terapia com antibióticos para meropenem, para cobrir germes produtores de BLAE (beta-lactamase de amplo espectro), comuns em nossos serviços. As hemoculturas coletadas à admissão do paciente não apresentaram desenvolvimento bacteriano, porém a cultura de urina revelou a presença de Streptococcus agalactiae (superior a 1.000.000 UFC/mL). Apesar dos esforços e de todo o apoio, talvez devido a várias comorbidades e idade avançada, a paciente evoluiu para óbito no terceiro dia de internação.
Neste relato, observou-se a ocorrência da síndrome da urina roxa na bolsa coletora em ambiente não-alcalino, que poderia estar relacionada a um erro laboratorial - uma vez que apenas tínhamos uma única amostra, e associada à infecção urinária por um germe incomum ligado à síndrome. Apesar de muitos relatos de caso associarem a síndrome à benignidade, advertimos os leitores quanto à sua possível mortalidade, como outros autores já relataram.