versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2019 Epub 02-Set-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190038
A síndrome de Evans (SE), descrita pela primeira vez em 1951, é uma anemia hemolítica definida pela combinação, simultânea ou sequencial, de anemia hemolítica autoimune (AHAI) e trombocitopenia, cursando ou não com neutropenia imune na ausência de etiologia subjacente(1).
Embora a síndrome tenha sido primeiramente considerada uma doença “idiopática” e, portanto, vista como um diagnóstico de exclusão, cerca de metade dos casos estão associados a outras patologias ou condições, incluindo infecções [por exemplo, vírus da hepatite C (HCV) e vírus da imunodeficiência humana (HIV)], lúpus eritematoso sistêmico (LES), imunodeficiência comum variável, síndrome linfoproliferativa autoimune e outras doenças linfoproliferativas(2).
Sua fisiopatologia tem origem desconhecida, porém, sabe-se que ocorre após uma desordem profunda do sistema imunológico, em oposição a uma combinação coincidente de citopenias imunológicas com surgimento de anticorpos contra glóbulos vermelhos, plaquetas e neutrófilos(3).
A SE enquadra-se em um tipo variável especial da AHAI a quente. Sua patogênese ainda é complexa e pode incluir o papel dos próprios antígenos eritrocitários e do sistema complemento, a perda da efetividade da apresentação dos antígenos e as anormalidades funcionais das células B e T. Em 98% dos casos, os anticorpos a quente são da subclasse da imunoglobulina da classe G1 (IgG1) e reagem contra antígenos do sistema Rh. A destruição eritrocitária geralmente é mediada por células do sistema macrófagos-monócitos(3).
A anemia normalmente é severa e caracterizada pela presença de esferócitos no esfregaço de sangue. Há evidência de produção aumentada de hemácias com hiperplasia eritroide na medula óssea e hemácias nucleadas no sangue periférico. O número de reticulócitos é acentuadamente elevado e, quase sempre, há leucocitose. Em geral, o número de plaquetas na AHAI é normal ou elevado, porém, na SE, há presença de trombocitopenia imune(4). O Coombs direto é positivo em 98% dos casos de AHAI por anticorpo quente (Figura 1)(3). A bilirrubina sérica fica elevada, geralmente no intervalo de 2 a 4 mg/dl devido ao aumento da bilirrubina indireta. A desidrogenase láctica (DHL) aumenta e a haptoglobina apresenta-se normal, pois a hemólise é extravascular(4).
FIGURA 1 Fluxograma do tratamento da AHAI a quenteAHAI: anemia hemolítica autoimune; IVGV: imunoglobulinas por via intravenosa; Ac: anticorpo.
A SE cursa com cronicidade e recidivas mesmo com controle rigoroso, tendo um prognóstico ruim. Seu manejo ainda é um desafio(5,6). Os corticosteroides são a primeira linha terapêutica, podendo, ocasionalmente, causar remissão da doença, porém podem ocorrer exacerbações e recorrências. Outras linhas de tratamento incluem imunoglobulinas por via intravenosa (IVIG), rituximabe, esplenectomia, ciclosporina ou azatioprina (Figura 2)(6,7).
Fonte: Zago MA, Pasquini R, Falcão RP (2013)(3). O teste de Coombs direto, realizado para detectar a presença de anticorpos IgG na superfície das hemácias, utiliza soro de Coombs obtido pela sensibilização de coelhos com imunoglobulina humana (anti-IgG humana). A fixação de complemento nas hemácias é detectada com soro de Coombs com especificidade de anticomplemento.
FIGURA 2 Teste de Coombs diretoIgG: imunoglobulina da classe G.
Paciente do sexo masculino, 45 anos de idade, pardo, residente em São Paulo, Brasil, foi admitido no pronto-socorro com anemia sintomática grave, onde permaneceu internado por 36 dias. Negava comorbidades prévias e tinha histórico familiar de LES (irmã). Queixava-se de parestesia em membros superiores e inferiores, com início há um dia, e dispneia. Referia perda ponderal de 5 kg em dois meses e adinamia; febre não aferida associada à sudorese à noite. Presença de tosse seca há aproximadamente três anos.
Na triagem, foi evidenciada anemia macrocítica (Tabela 1), sem sinais de sangramento ativo. Ao exame físico, apresentava-se normotenso, taquicárdico (134 bpm), afebril, com saturação de oxigênio de 95% em máscara de oxigênio, taquipneico e índice de massa corporal (IMC) de 19 kg/m2. Estava lúcido, orientado em tempo e espaço, em estado geral regular, descorado (3+/4+), desidratado (2+/4+), acianótico, anictérico, sem sinais meníngeos ou sinais focais, com sensibilidade e força motora preservadas; linfonodomegalias axilar esquerda e inguinal bilateral. Ritmo cardíaco regular, presença de sopro mitral e aórtico. Ausência de hepatomegalia ou esplenomegalia.
TABELA 1 Exames laboratoriais (05/09/2018)
Exames laboratoriais | Valores | Valor de referência |
---|---|---|
Hemácias | 0,95 106/pl | 4,4-5,9 106/pl |
Hb | 3,7 mil/mm3 | 13-18 mil/mm3 |
Ht | 10,8 g/dl | 40-52 g/dl |
VCM | 113,7 fl | 80-100 fl |
HCM | 38,9 pg | 27-32 pg |
CHCM | 34,3 g/dl | 32-37 g/dl |
RDW | 11,4% | Até 15% |
Leucócitos | 17,4/pl | 3.500-11.000/pl |
Bastões | 1% | 1%-4% |
Segmentados | 76% | 48%-66% |
Eosinófilos | 1% | 1%-6% |
Linfócitos | 16% | 20%-30% |
Plaquetas | 157.000/pl | 150.000-450.000/pl |
PCR | 1,62 mg/dl | < 0,3 mg/dl |
TGO | 105 U/l | 15-37 U/l |
TGP | 30 U/l | 6-45 U/l |
Sódio | 137 mEq/l | 136-145 mEq/l |
Potássio | 3,9 mEq/l | 3,5-5,1 mEq/l |
Ureia | 34 mEq/l | 15-40 mEq/l |
Creatinina | 0,96 mg/dl | 0,5-1,3 mg/dl |
Bb: hemoglobina; Bt: hematócrito; VCM: volume corpuscular médio; BCM: hemoglobina corpuscular média; CBCM: concentração da hemoglobina corpuscular média; RDW: amplitude de distribuição dos glóbulos vermelhos; PCR:proteína C reativa; TGO: enzima transaminase glutâmico oxalacética; TGP: enzima transaminase glutâmicopirúvica.
Nos primeiros dias, foram transfundidos seis concentrados de hemácias. Realizou-se tomografia computadorizada (TC) de tórax, que evidenciou fibrose pulmonar; a endoscopia digestiva alta (EDA) mostrou distensão hidroaérea do esôfago distal. Foram solicitados marcadores para hemólise (Tabela 2), que vieram aumentados, e Coombs direto positivo, indicando AHAI. Sorologias virais (Tabela 3), três amostras de escarro e culturas coletadas foram negativas, descartando infecção vigente. Posteriormente, foi realizado mielograma que se apresentou normal e ecocardiograma transtorácico, notando-se derrame pericárdio difuso de grau discreto. Além da AHAI, houve surgimento de plaquetopenia, sendo diagnosticada SE.
TABELA 2 Marcadores de hemólise
06/09/2018 | 07/09/2018 | Valor de referência | |
---|---|---|---|
BT/BI | 1,73/0,95 | 1,65/0,99 | 1,2/< 0,9 mg/dl |
Reticulócitos | - | 3,2% | 0,5%-20% |
Haptoglobina | - | 30 | 44-125 mg/dl |
Eletroforese de Hb | - | Normal | 0,1-2 |
DHL | 1069 | - | 125-220 U/l |
Coombs direto | - | Positive |
BT: bilirrubina total; BI: bilirrubina indireta; Hb: hemoglobina; DHL: desidrogenase láctica.
TABELA 3 Sorologias virais
06/09/18 | 07/09/18 | 12/09/18 | 18/09/18 | |
---|---|---|---|---|
Teste rápido HIV1 e 2 | Negativo | |||
VDRL | Negativo | |||
Hepatite A IgG/IgM | Reagente/ NR | |||
HbsAg | Negativo | |||
Anti-HBs | Positivo | |||
Anti-HBV IgG/IgM | NR | |||
Anti-HCV | Negativo | |||
Sorologia para leptospiroses | Negativa | |||
Sorologia para paracoco | Negativa | |||
Sorologia para histoplasma | Negativa | |||
Varicela IgG/IgM | NR/NR | |||
Adenovírus IgG/IgM | NR/NR | |||
ASLO | Negativo | |||
Epstein-Barr vírus IgG/ | Reagente/NR | |||
IgM | ||||
HTLV 1/2 | NR |
VDRL: Venereal Disease Research Laboratory (Laboratório de Pesquisa de Doenças Venéreas); IgG: imunoglobulina da classe G; IgM: imunoglobulina da classe M; HbsAg: antígeno de superfície da hepatite B; anti-HBs: anticorpo antiantígeno de superfície da hepatite B; HCV: vírus da hepatite C; ASLO: antiestreptolisina O; HTLV: vírus T-linfotrópico humano; NR: não reagente.
Durante a internação, o paciente apresentou fenômeno de Raynaud em mãos e houve aparecimento de úlceras orais. Foram solicitados marcadores reumatológicos, os quais evidenciaram fator antinuclear (FAN) positivo (Tabela 4). Com a presença de critérios clínicos (anemia hemolítica, trombocitopenia, pericardite e úlceras orais) foi possível também diagnosticar LES ativo.
TABELA 4 Marcadores reumatológicos
20/09/18 | 22/09/18 | Valor de referência | |
---|---|---|---|
FR | 51,6 | < 30 UI/ml | |
Anti-RNP | O | Reagente: > 10 | |
VHS | 153 | Até 10 mm/h | |
FAN | Padrão nuclear pontilhado 1/640 |
||
C3 | 68 | 82-185 mg/dl | |
C4 | 11 | 15-56 mg/dl | |
IgM | 570 | 22-240 mg/dl |
FR: fator reumatoide; Anti-RNP: anticorpos antirribonucleoproteínas; VHS: velocidade de hemossedimentação; FAN: fator antinuclear; IgM: imunoglobulina da classe M.
Optou-se por administrar prednisona 40 mg/dia como prova terapêutica. Após cinco dias de medicação, não houve resposta satisfatória, sendo iniciada metilprednisolona 1 mg/kg/dia por três dias. Após pulsoterapia, houve melhora clínica, porém a trombocitopenia persistia (Tabela 5).
TABELA 5 Exames laboratoriais (06/09/2018 a 10/10/2018)
06/09 | 07/09 | 22/09 | 26/09 | 02/10 | 10/10 | Valor de referência | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Hb | 3,8 | 6,2 | 7 | 9,1 | 11,4 | 12,9 | 12-15 g/dl |
Ht | 16,6 | 15,2 | 18,1 | 25,1 | 36,1 | 38,2 | 37%-47% |
Leucócitos | 24.000 | 19.200 | 5.400 | 6.000 | 7.300 | 8.100 | 5-10 mil/mm3 |
Bastões | 3 | 10 | 4 | 4 | 4 | 3 | 2%-4% |
Plaquetas | 132.000 | 95.000 | 18.000 | 11.000 | 31.000 | 90.000 | 130-450 mil/mm3 |
PCR | 58,3 | 41,5 | 1,1 | 8 | < 5 mg/l | ||
CPK | 1481 | 886 | 30-200 | ||||
TGO | 95 | 46 | 5-34 U/l | ||||
TGP | 35 | 28 | Até 55 U/l | ||||
Sódio | 138 | 140 | 136 | 139 | 136-146 mEq/l | ||
Potássio | 4,4 | 4,1 | 4,2 | 3,5 | 3,5-5,3 mEq/l | ||
Cálcio iônico | 1,16 | 1,14 | 1,12-1,32 mEq/l | ||||
Magnésio | 2 | 1,9 | 1,6-2,6 mg/dl | ||||
Fósforo | 2 | 2,6 | 2,3-4,7 mg/dl | ||||
Ureia | 21 | 17 | 25 | 19-44 mg/dl | |||
Creatinina | 0,8 | 0,8 | 0,6 | 0,7-1,3 mg/dl | |||
FA | 47 | 46 | 40-150 U/l | ||||
Gama-GT | 20 | 20 | 12-6,4 U/l | ||||
PT | 8,58 | 6,4-8,3 g/dl | |||||
Albumina | 2,8 | 3,5-5,2 g/dl |
Hb: hemoglobina; Ht: hematócrito; PCR: proteína C reativa; CPK: creatinofosfoquinase, TGO: enzima transaminase glutâmico oxalacética; TGP: enzima transaminase glutâmico pirúvica; FA: fosfatase alcalina; Gama-GT: gamaglutamiltransferase; PT:proteínas totais.
O paciente recebeu alta e manteve acompanhamento ambulatorial reumatológico. Iniciou o uso de azatioprina em fevereiro de 2019, obtendo estabilização dos níveis plaquetários e mantendo-se sem anemia.
A SE é diagnosticada apenas em 0,8%-3,7% de todos os pacientes com púrpura trombocitopênica idiopática e AHAI. Poucos dados estão disponíveis na literatura; a maioria é de casos pediátricos. Portanto, as características e o tratamento da SE no adulto são pouco conhecidas(2).
Sabe-se que a SE é uma manifestação rara no LES, identificada em 2,7% dos casos; geralmente, ocorre em pacientes com manifestações multissistêmicas graves(1). Estratégias de tratamento frequentemente utilizadas para o LES contribuem para maior remissão da doença e menor frequência de exacerbação do que o observado na população geral com SE(8).
Não há ainda um consenso sobre quais exames laboratoriais e procedimentos radiológicos devem ser realizados para procurar uma doença subjacente. Sugere-se uma investigação mínima com os seguintes exames complementares, incluindo TC de tórax, abdômen e pelve: hemograma completo, esfregaço de sangue periférico, eletroforese de proteínas séricas, imunoeletroforese de soro (imunofixação), média das concentrações de imunoglobulinas no soro, imunofenotipagem de linfócitos B circulantes, título de anticorpo antinuclear, antiácido desoxirriblonucleico (anti-DNA), anticardiolipina, anticoagulante lúpico, testes de HIV, HCV e vírus da hepatite B (HBV) e aspirado de medula óssea/biópsia(9).
Não há estudos sistêmicos ou randomizados sobre o tratamento da SE, que continua a ser um desafio. Os métodos terapêuticos (além de glicocorticoides, IVIG e esplenectomia) relatados como bem-sucedidos em alguns pacientes foram: rituximab, ciclofosfamida, micofenolato de mofetil, ciclosporina, vincristina, danazol, transplante de células hematopoéticas e azatioprina(6,8).