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Síndrome de Heyde e Implante de Válvula Aórtica por Cateter

Síndrome de Heyde e Implante de Válvula Aórtica por Cateter

Autores:

Conrado Pedroso Balbo,
Luciana Paula Seabra,
Victor Gualda Galoro,
Guido Caputi,
José Honório Palma,
Ênio Buffolo

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.4 São Paulo abr. 2017

https://doi.org/10.5935/abc.20160193

Introdução

A Estenose aórtica (EAo) é a patologia valvular adquirida mais frequente em países desenvolvidos, presente em 4% das pessoas com mais de 85 anos. Pacientes com EAo grave podem ter comorbidades, apresentando maior risco para eventos trombóticos e de sangramento.

A Síndrome de Heyde foi descrita em 1958 por E.C. Heyde1 observando a relação entre a estenose da valva aórtica e sangramento gastrointestinal. Em 1992, Warkentin et al.2 observaram a perda do multímero de mais alto peso molecular entre os multímeros do Fator de Von Willebrand (vWF), caracterizando a síndrome de Von Willebrand adquirida tipo 2A.3,4 O vWF é uma proteína multimérica, secretada pelas células endoteliais e plaquetas.5 Ela promove a adesão das plaquetas a locais de lesão vascular por meio das interações de glicoproteínas Ib-vWF. Na EAo ocorre uma alteração na forma do vWF, tornando tal proteína adesiva mais susceptível à clivagem proteolítica. Em consequência, o vWF é degradado especificamente pela protease ADAMTS13, prejudicando a adesão plaquetária mediada pelo vWF, gerando, assim, a falta desses grandes multímeros e causando sangramento especialmente em lesões pré-existentes como nas angiodisplasia gastrointestinais.6-8

O tratamento dessa síndrome pode ser conseguido com a troca cirúrgica da valva aórtica, e ainda em investigação o efeito da implantação percutânea de valva aórtica (TAVI).9

Relado do Caso

Paciente MNS, masculino, 81 anos procurou atendimento médico devido a quadro de cansaço, fezes escurecidas, edema de membros inferiores e piora da classe funcional (CF) para NYHA III há 1 mês.

Apresenta antecedente de hipertensão arterial sistêmica, insuficiência cardíaca, EAo grave, dislipidemia, diabetes mellitus, insuficiência renal crônica não dialítica, duas cirurgias de revascularização miocárdica, angioplastia com stent e anemia.

Ao exame físico: descorado 3+/4+, eupneico, acianótico. Pulso de 66bpm, PA: 100x60 mmHg, ritmo cardíaco regular em 2 tempos com sopro sistólico 4+/6+ em foco aórtico com irradiação para fúrcula. Ausculta pulmonar com estertores crepitantes bibasais e edema de membros inferiores 2+/4+ com perfusão periférica reduzida.

Exames laboratoriais: intensa anemia com hemoglobina de 6,4 g/dL. Inicialmente, o quadro anêmico foi relacionado ao sangramento pelo trato digestivo, devido à presença de fezes escurecidas - melena. Devido ao quadro de "cor anêmico" com IC NYHAIII foi solicitada a transfusão de hemácias.

A ecocardiografia transtorácica confirmou uma dupla lesão aórtica com estenose importante, com área valvar de 0,9 cm2 e gradiente máximo subestimado de 35 mmHg e médio de 22 mmHg. Fração de ejeção de 32%. Ventrículo esquerdo com diâmetro diastólico 63 mm e sistólico de 53 mm.

Colonoscopia evidenciou a presença de divertículos de sigmoide, pólipo de cólon descendente e transverso, e angiodisplasia de cólon ascendente. Assim a presença de sangramento por angiodisplasia associada à EAo sugeriu o diagnóstico de Síndrome de Heyde (Figura 1).

Figura 1 Angiodisplasia de cólon. 

Devido às comorbidades do paciente, a intervenção cirúrgica convencional foi descartada devido ao alto risco. Optou-se pela TAVI, sendo implantada, com sucesso, uma válvula transcateter INOVARE® por via transapical (Figura 2).

Figura 2 A) ECO pré TAVI (modo M); B) ECO pós TAVI (modo M); C) ECO pré TAVI (modo 2D); D) ECO pós TAVI (modo 2D). AO: aorta; AE: átrio esquerdo; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo. 

No 4˚ dia após a TAVI, o paciente apresentou episódio de enterorragia após grande esforço para evacuar, sendo necessária a transfusão sanguínea. Realizou em seguida colonoscopia e endoscopia digestiva alta, sem evidências de sangramento ativo. Após esse quadro, o paciente foi seguido no ambulatório, com retorno após 3 e 6 meses da cirurgia não apresentando mais episódios de sangramento.

Discussão

A Síndrome de Heyde foi descrita em 1958 por Edward C. Heyde como uma combinação de EAo e sangramento por angiodisplasia gastrointestinal.

A fisiopatologia do quadro se explica pela passagem do vWF pela valva estenótica, ocorrendo proteólise de multímeros pela enzima ADAMTS13, uma proteinase que age preferencialmente sob situações de alta tensão de cisalhamento.3-5,7,8 O vWF é secretado por células endoteliais do sangue, contribuindo para a formação de trombos plaquetários e age como mediador da adesão plaquetária no sítio de lesão vascular.5

A relação entre a EAo e a angiodisplasia gastrointestinal ainda não foi estabelecida. A hipótese é de que a EAo esteja relacionada a um grau de hipóxia crônica, estimulando a vasodilatação e o relaxamento da musculatura lisa progredindo para a ectasia da parede dos vasos.10 Pacientes com Síndrome de Heyde tratados com ressecções intestinais geralmente continuam a sangrar em outros sítios, enquanto a abordagem da valva cura o distúrbio da coagulação e a anemia.10

Os pacientes idosos podem apresentar muitos riscos para a substituição cirúrgica da valva ou recusar a cirurgia. Os idosos, muitas vezes, têm comorbidades que requerem o uso de anticoagulantes ou antiplaquetários, mas esses devem ser evitados, principalmente nos casos graves. Uma opção para o tratamento dos pacientes com alto risco cirúrgico é a TAVI.

Recentemente demonstrou-se que a presença de insuficiência aórtica após a TAVI pode gerar a proteólise de multímeros ocorrendo em alguns casos a persistência da Síndrome de Heyde, estando associado a uma maior mortalidade em 1 ano.11

Conclusão

É bem demonstrada, na literatura, a eliminação do risco de hemorragias gastrointestinais após a substituição da válvula aórtica calcificada e o implante da prótese valvular.3-5

Todavia, não há evidências de que essa nova abordagem pela TAVI, sem remover o bloco de cálcio, resolva a ocorrência de novos sangramentos digestivos. É necessária, em longo prazo, a observação para verificar se o implante de válvula por cateter corrige as hemorragias digestivas como acontece nos casos de substituição valvar convencional.

REFERÊNCIAS

1 Heyde EC. Gastrointestinal bleeding in aortic stenosis. N Engl J Med. 1958;259(4):196.
2 Warkentin TE, Moore JC, Morgan DG. Aortic stenosis and bleeding gastrointestinal angiodysplasia: is acquired von Willebrand syndrome the link? Lancet. 1992;240(8810):35-7.
3 Warkentin TE, Moore JC, Anand SS, Lonn EM, Morgan DG. Gastro- intestinal bleeding, angiodysplasia, cardiovascular disease, and acquired von Willebrand syndrome. Transfus Med Rev. 2003;17(4):272-86.
4 Spangenberg T, Budde U, Schewel D, Freker C, Thielsen T, Kuck KH, et al. Treatment of acquired von Willebrand syndrome in Aortic stenosis with transcatheter aortic valve replacement. JACC Cardiovasc Interv. 2015;8(5):692-700.
5 Figuinha FC, Spina GS, Tarasoutchi F. Heyde's syndrome: case report and literature review. Arq Bras Cardiol. 2011;96(3):e42-5.
6 Pate GE, Chandavimol M, Naiman SC, Webb JG. Heyde's syndrome: a review. J Heart Valve Dis. 2004;13(5):701-12.
7 Valle FH, Junior FP, Bergoli LC, Wainstein RV, Wainstein MV. Sangramento gastrointestinal por angiodisplasia e estenose aortica: síndrome de Heyde. Rev Bras Cardiol Invasiva. 2013;21(3):288-90.
8 Loscalzo J. From clinical observation to mechanism: Heyde's syndrome. N Engl J Med. 2012;367(20):1954-6.
9 Pozzi M, Hanss M, Petrosyan A, Vedrinne C, Green L, Dementhon J, et al. Resolution of acquired von Willebrand syndrome after transcatheter aortic valve implantation through a left transcarotid approach. Int J Cardiol. 2014;176(3):1350-1.
10 Warkentin TE, Moore JC, Morgan DG. Aortic stenosis and bleeding gastrointestinal angiodisplasia: is acquire von Willebrand's disease the link? Lancet. 1992;340(8810):35-7.
11 Van Belle E, Rauch A, Vincent F, Robin E, Kibler M, Labrauche J, et al. Von Willebrand factor multimers during transcatheter aortic-valve replacement. N Engl J Med. 2016;375(4):335-44.