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Síndrome de Kasabach-Merritt: tratamento clínico versus cirúrgico

Síndrome de Kasabach-Merritt: tratamento clínico versus cirúrgico

Autores:

Regina Moura,
Marcone Lima Sobreira,
Matheus Bertanha,
Rodrigo Gibin Jaldin,
Maria Madalena Silva,
Lied Pereira,
Bonifacio Katsunori Takegawa,
Winston Bonetti Yoshida

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Vascular Brasileiro

versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301

J. vasc. bras. vol.13 no.4 Porto Alegre out./dez. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.0102

INTRODUÇÃO

Hemangiomas são lesões congénitas comuns em recém-nascidos e nas crianças. São geralmente benignos e frequentemente regridem espontaneamente. No entanto, em 3 a 5% dos casos, podem ter complicações inerentes ao tamanho, ao envolvimento de órgãos vitais e à coagulopatia concomitante1. A síndrome de Kassabach-Merritt é uma associação de hemangioma capilar e trombocitopenia, sendo composta por tumoração endurecida, que promove sangramentos associados a petéquias, equimoses e hematomas espontâneos2. Esse quadro é composto de grandes hemangiomas, ou hemangioendoteliomas, que precisam ser tratados devido a plaquetopenias associadas e quadros de sangramento, que cursam com anemias graves e, por vezes, óbito3. As plaquetas são ativadas, com consumo secundário de fatores da coagulação. Este consumo contínuo de plaquetas e de fatores de coagulação, assim como o desencadeamento de fibrinólise, resulta em sangramentos intratumorais com consequente grande crescimento dos mesmos e persistência deste ciclo vicioso. A eventual formação de coágulos intratumorais explica, em parte, as remissões de sangramentod ocasionais que ocorrem3.

O objetivo deste DESAFIO é mostrar evolução de um caso em que os tratamentos clínicos convencionais não resultaram na melhora do paciente, sendo necessário buscar alternativas.

PARTE I – A SITUAÇÃO

Criança recém-nascida apresentava hemangioma gigante desde a raiz da coxa até altura do joelho (Figura 1), associado com plaquetopenia (58.000/mm3). Foi inicialmente tratada com corticoterapia (prednisona 4mg/Kg/dia), havendo normalização da contagem de plaquetas (100.000 mm3). Recebeu alta em boas condições clínicas e manteve o corticoide por quatro meses. Durante este período, apresentou várias infecções de vias respiratórias e o hemangioma começou apresentar sinais de regressão, com áreas esbranquiçadas na região central. Devido aos quadros repetidos de infecção, houve necessidade de suspender a corticoterapia e o hemangioma começou apresentar piora, com sangramentos no interior da lesão e queda das plaquetas. Neste momento, foi realizada avaliação cardiológica e introduzido o propranolol (2 mg/kg).

Figura 1 Lesão hemangiomatosa em coxa direita. 

A criança apresentou, durante o tratamento com propranolol, quadros de hipotensão e hipoglicemia, sendo necessária a retirada deste medicamento.

Foi indicada a contenção elástica na região da lesão e exame ultrassonográfico, que mostrou um sistema vascular profundo normal, aumento dos trajetos venosos infiltrados na região da musculatura, tecido celular subcutâneo e ausência de fístulas artério-venosas no hemangioma (Figura 2). Neste período, realizaram-se exames de ressonância nuclear magnética, que mostraram a invasão dos tecidos musculares e a extensão da lesão na coxa (Figura 3).

Figura 2 Exame de Duplex mostrando fluxo venoso dentro da lesão. 

Figura 3 Exame de ressonância magnética mostrando áreas de lesão. 

Com um ano e nove meses de idade, a criança apresentou aumento da lesão e queda de plaquetas entre 38.000 e 58.000/mm3, e neste momento ocorreram sangramentos nas lesões cutâneas, sendo estes intermitentes e em pouca quantidade. Foram colhidos exames laboratoriais, apresentando D - dímero de 5000 ug/L, fibrinogênio de 30 mg/dL e discreta anemia associada (Hb=29,5%; Hb=9,6 g/dL e glóbulos vermelhos de 2,81 milhões/mm3).

Optou-se por novo tratamento com corticoterapia, mas não houve melhora do quadro. O tumor hemangiomatoso começou a se tornar endurecido, com nova queda de plaquetas (32.000/mm3) associada e piora da anemia. Além disso, alguns pontos mais frágeis da pele começaram a romper espontaneamente, com sangramento contínuo na pele, sendo a criança internada com quadro de hipovolemia e indicação de reposição de sangue. Neste período, foi tratada também com plasminogênio, sem obter melhora. Manteve sucessivos sangramentos espontâneos pela lesão tumoral e a contagem de plaquetas ficou em torno de 38000/mm3, o hematócrito de 31,6% e o fibrinogênio de 39,4 mg/dL.

As alternativas terapêuticas nesta situação seriam: manter terapia compressiva, prednisolona, alfa-interferon, vincristina, ciclofosfamida, drogas antifibrinolíticas ou antiplaquetárias, radioterapia localizada e embolizações, ou cirurgia de ressecção tumoral.

PARTE II - O QUE FOI FEITO

Durante a internação, a criança apresentou um quadro de varicela que dificultou o tratamento com todas estas drogas, incluindo as drogas quimioterápicas (interferon-alfa e vincristina, ou outros). Para coibir os focos de sangramento, foram feitas tentativas de hemostasia com vários pontos cirúrgicos no hemangioma, mas sem resolução, pois o sangramento se apresentava em jato e em grande quantidade, caracterizando um regime de hipertensão local muito grande. A cada ponto, novos focos de sangramento surgiam, sem ter solução definitiva com este método.

Foram ministrados plasma fresco, crioprecipitados, plaquetas, antifibrinolítico (ácido tranexâmicotransamin) e concentrado de hemáceas, sem sucesso.

Após estas tentativas de diminuir o consumo das plaquetas e o sangramento sem sucesso, e em razão da gravidade da situação, optou-se pela ressecção tumoral de urgência, em situação extrema de plaquetopenia (23.000/mm3) e sangramento.

A ressecção foi ampla, pois abrangeu pele, subcutâneo e boa parte da musculatura, ficando pouco tecido com má formação vascular visível. Não foi possível fechar primariamente a pele. Tentouse, por quatro dias, realizar curativos nos tecidos expostos, mas a criança começou desenvolver um quadro séptico com hipotensão e isquemia dos tecidos residuais. Diante da gravidade do quadro clínico, optou-se por amputação do membro com desarticulação no nível da virilha.

Os resultados do exame anátomo-patológico mostraram um quadro compatível com hemangioma cavernoso gigante, com área de trombose recente, e associado linfangioma, os quais, associados aos dados clínicos, foram compatíveis com a Síndrome de Kasabach Merritt. No seguimento imediato, a criança evoluiu bem, com cicatrização da ferida cirúrgica (Figura 4). As plaquetas se normalizaram e restabeleceram-se os níveis de hematócrito. Em longo prazo, após um ano, a criança permaneceu com boa evolução clínica, com protetização e fazendo programa de reabilitação (Figura 5). Recentemente, apresentou recidiva da lesão na cicatriz da amputação e está realizando tratamento com laser com sucesso. Houve, portanto, regressão das lesões das incisões e está se adaptando à prótese.

Figura 4 Pós-amputação, já em fase de cicatrização. 

Figura 5 Em fase de reabilitação com prótese. 

DISCUSSÃO

A síndrome de Kasabach-Merrit (SKM) não é uma complicação frequente das hemangiomatoses e, assim, são poucos os artigos sobre o tratamento desta síndrome, cujas recomendações são baseadas em relatos de casos ou de pequenas séries de casos4.

O diagnóstico deve ser baseado em manifestação clínica, com presença de hemangiomatose, e associação com trombocitopenia profunda e coagulopatia de consumo. A trombocitopenia costuma chegar a valores muito baixos (< 20 × 109 plaquetas por litro). A coagulopatia de consumo pode ser confirmada por presença de hipofibrinogenemia e aparecimento de produtos de degradação da fibrina(dímero-D). Por este motivo, optou-se, neste caso, por acompanhamento das variações dos valores do dímero-D, para se acompanhar a gravidade deste processo ao longo do tratamento clínico. Após a remoção tumoral, não foi mais necessário tal acompanhamento. A confirmação diagnóstica deve ser feita por exames de imagem e histologia da lesão hemangiomatosa3. Os exames de ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética e angiografia digital são ferramentas importantes de diagnóstico3.

A terapia compressiva com bandagens ou compressão pneumática intermitente tem sido preconizada como coadjuvante5,6, em especial nas lesões localizadas em extremidades, mas na situação de SKM, a lesão hemangiomatosa pode estar dolorosa, tensa ou não ser passível de compressão. A radioterapia coadjuvante pode ser eficiente, mas pode levar a encurtamento de extremidades em longo prazo7.

Para compensar a perda sanguínea e de fatores da coagulação, preconiza-se equilibrar esta situação com plasma fresco (15 mL/kg), crioprecipitado (5-10 mL/kg) e concentrado de plaquetas (10-15 mL/kg). A reposição de sangue deve ser cuidadosa, para se evitar a sobrecarga cardíaca3.

Como abordagem primária, seria recomendada, desde que possível e factível, a ressecção do hemangioma ou sua embolização3,8. Mas como, em geral, as lesões hemangiomatosas são muito extensas ou difusas, estas opções não são sempre possíveis. A embolização ou escleroterapia se tornou procedimento de risco, neste caso, uma vez que houve ampliação da abertura da pele e piora do sangramento em algumas tentativas feitas sem sucesso.

A primeira linha de tratamento clínico é com corticoides (esteroides). Recomenda-se uso de prednisolona na dose de 2-3 mg/kg/dia8. Cerca de um terço dos pacientes não responde a esta primeira dosagem e, a critério do oncopediatra, doses maiores podem ser ministradas3,8.

O alfa-interferon atua como agente antiangiogênico e antiproliferativo9. Cerca de metade dos pacientes costuma responder bem a este tratamento10. Devido ao risco de diplegia espástica em tratamentos de longo prazo, deve ser indicado somente por curtos períodos e em casos de risco de vida3.

Em casos extremos, a quimioterapia com vincristina1115, ciclofosfamida e/ou actinomicina pode ser uma opção, devendo ser acompanhada por especialista em oncopediatria.

O uso de anticoagulantes é controverso e o uso de antiplaquetários, menos incerto. No presente caso, o uso de anticoagulantes de qualquer tipo não seria apropriado, porque a paciente tinha plaquetopenia grave e estava recebendo reposição sanguínea constante, devido a sangramento contínuo pela lesão. Em situações diferentes de SKM, a ticlopidina e a pentoxifilina foram usadas com sucesso, mas sem a presença de sangramentos8. Quando a hipofibrinogenemia é o componente mais importante da coagulopatia associada, pode ser indicado o uso de antifibrinolíticos, como ácido tranexâmico e ácido epson amino caproico16,17.

No presente caso, várias tentativas de conter o quadro de coagulopatia, sangramento e anemia foram infrutíferas e não restou outra opção senão a ressecção do hemangioma, seguida de amputação da extremidade como alternativa final de salvamento da criança.

Apesar da mutilação, evoluiu bem ao longo do tempo e teve processo de reabilitação bem sucedido, com integração social e afetiva.

CONCLUSÃO

Não é sempre que o tratamento clínico destas anomalias apresenta resposta satisfatória e, por vezes, medidas agressivas e invasivas de ressecção do tumor hemangiomatoso podem representar a única solução, buscando-se, assim, o salvamento destes pacientes.

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