versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.5 São Paulo set./out. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.03.009
Síndrome de Lemierre consiste em infecção orofaríngea associada à septicemia e trombose jugular interna com êmbolos sépticos. Foi descrita em 1936 por Andre Lemierre.1 2 Foi nomeada inicialmente como septicemia pós-angina e, depois, "doença esquecida", por tornar-se rara após o advento dos antibióticos, com menos de 100 casos reportados desde 1974.2 Também foi denominada necrobacilose, devido à presença de Fusobacterium necrophorum, bactéria comensal da cavidade oral, considerada o agente mais comum da doença. Bacterioides, Streptococcus dos grupos B e C, Streptococcus oralis, Staphylococcus epidermitis, Enterococcus e Proteus mirabilis também podem estar envolvidas.3
O objetivo deste relato foi apresentar um caso de Síndrome de Lemierre atendido em um Pronto-socorro de Otorrinolaringologia.
Homem, 18 anos, iniciou quadro de dor de garganta e dor cervical à esquerda, evoluindo com febre aferida (37,8 °C), procurando atendimento e sendo medicado com penicilina benzatina e sintomáticos. No 4º dia, passou a apresentar também dor nos joelhos e tornozelos, quando procurou nosso serviço.
Na admissão, encontrava-se em regular estado geral, descorado, desidratado, taquicárdico (116 bpm), saturando 95% em ar ambiente, hipotenso (108 × 57 mmHg) e afebril (36,6 °C). Apresentava hiperemia em orofaringe, abaulamento cervical à esquerda, hepatomegalia e edema com hiperemia de tornozelos bilateralmente. Investigação inicial mostrou plaquetopenia (28.000 mm3), leucocitose com desvio à esquerda (16.100 mm3), aumento de creatinina (3,5 mg/dL) e ureia (243 mg/dL). Iniciado protocolo de sepse grave com coleta de hemoculturas, hidratação vigorosa, ceftriaxone 2 g e internação hospitalar.
Na investigação de outros focos sépticos, a ultrassonografia cervical mostrou múltiplos linfonodos de aspecto reacional e trombose dos terços superior e médio da veia jugular interna esquerda (fig. 1 A e B). Ultrassonografia de membros inferiores mostrou pequeno derrame articular em tornozelos.
Ainda no 1º dia de internação, apresentou dispneia progressiva, com taquipneia, tiragem e estertores em bases pulmonares, sendo a sepse grave considerada de foco pulmonar, com necessidade de intubação orotraqueal. Tomografia computadorizada de tórax evidenciou derrame pleural e múltiplos nódulos pelo parênquima pulmonar com áreas de vidro fosco, correspondendo a êmbolos sépticos (fig. 1 C e D). Após adição de piperacilina tazobactam, o paciente evoluiu bem, com melhora da sepse, recebendo alta após 14 dias de antibioticoterapia intravenosa. Hemocultura não evidenciou crescimento bacteriano.
O achado inicial de infecção orofaríngea com sepse, associado à confirmação de trombose de veia jugular e êmbolos sépticos pulmonares, confirmou a hipótese de síndrome de Lemierre.
Síndrome de Lemierre ocorre predominantemente em adultos jovens,1 sendo que um estudo relata predominância em homens,4 assim como o presente caso. A maioria dos casos da síndrome apresenta faringite prévia às complicações sistêmicas, semelhantemente ao relatado, mas a trombose jugular interna pode ocorrer devido a outras infecções de cabeça e pescoço.5 6 Sua incidência está estimada em 3,6 casos por milhão de habitantes.2
Os êmbolos sépticos da trombose jugular atingem principalmente pulmões e articulações,3 exatamente os focos acometidos no presente relato. O quadro pulmonar pode envolver dor torácica intensa, dispneia e hemoptise, devido a abscessos pulmonares. Já as articulações podem desenvolver artrite séptica e osteomielite.3
O tratamento consiste no suporte à sepse e antibioticoterapia, como realizado no caso descrito. Antibioticoterapia deve ser direcionada para anaeróbios, estafilococos e estreptococos. O principal agente etiológico, Fusarium necrophorum, é sensível a penicilina, clindamicina e metronidazol.6 Hemocultura do paciente relatado não apresentou crescimento bacteriano, porém, questiona-se se o uso prévio de antibióticos ou falha na coleta pra anaeróbios possa ter influenciado no resultado.
Síndrome de Lemierre é uma doença rara secundária a infecções otorrinolaringológicas comuns. O otorrinolaringologista deve estar atento aos sinais de sepse em seus quadros infecciosos habituais. A correta abordagem da sepse é fundamental para a obtenção de bons resultados nesta síndrome.