versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 18-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0246
Síndrome hemofagocítica (SHF), linfo-histiocitose hemofagocítica ou síndrome de ativação macrofágica é uma condição infrequente, subdiagnosticada e grave, que tem por base a ativação excessiva da resposta imune, resultando em fagocitose das células sanguíneas. As manifestações clínicas incluem febre, hepatoesplenomegalia, citopenias, hiperferritinemia, hipertrigliceridemia e hipofibrinogenemia.1,2,3,4 Após o transplante renal (TxR), a SHF está geralmente associada a processos infecciosos (76%) e neoplásicos (27%), sendo a imunossupressão excessiva um fator contributivo para a sua gênese.7,8,9 Há descrições na literatura acerca do uso de imunoglobulina humana (IVIG), corticoesteroides em altas doses e plasmaférese como terapia complementar na busca do controle da resposta inflamatória. Este relato apresenta dois casos de SHF reativa pós-TxR, os quais receberam IVIG como terapia adjuvante, obtendo boa resposta clínica.
EGNB, masculino, 41 anos, portador de doença renal crônica (DRC) terminal de causa indeterminada, foi submetido a TxR com doador falecido em 2010. Recebeu como imunossupressão de indução globulina antitimócito na dose de 6 mg por kg de peso e manutenção com tacrolimo e micofenolato sódico, evoluindo sem intercorrências até a alta hospitalar. Seguia em acompanhamento ambulatorial, evoluindo após 6 anos com linfopenia (1.018 células/mm3), que perdurou em progressiva piora (682 células/mm3), ocasião em que foi admitido com queixa de febre diária havia 2 semanas (38-39ºC), acompanhada de diarreia aquosa de padrão não inflamatório. Negou perda ponderal. Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, com palidez cutâneo-mucosa, ausculta cardiopulmonar sem alterações e hepatoesplenomegalia palpável.
A investigação laboratorial evidenciou pancitopenia, alteração dos marcadores inflamatórios e disfunção renal (Tabela 1). As sorologias para HIV, hepatites virais B e C, Epstein-Barr vírus, parvovírus B19 e sífilis foram negativas. A tomografia de abdome confirmou hepatoesplenomegalia homogênea. Pela persistência de febre sem etiologia definida e piora do quadro clínico-laboratorial, foi iniciada empiricamente antibioticoterapia com piperacilina-tazobactam. As culturas colhidas na admissão resultaram negativas.
Tabela 1 Exames laboratoriais
Caso 1: EGNB | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Variável | Valor de Referência | Admissão | Pré-IVIG (8° DIH*) | Fim da IVIG (11° DIH*) | 72h pós IVIG (14° DIH*) | 23° DIH | Alta (30º DIH*) |
Hemoglobina (g/dL) | 12 - 13 | 8,4 | 6,7 | 6,9 | 7,9 | 6,2 | 9,8 |
Leucócitos (por mm3) | 4500 - 11000 | 3515 | 2005 | 3557 | 8263 | 3274 | 4877 |
Plaquetas (por mm3) | 150000-450000 | 109200 | 46500 | 22860 | 35210 | 161200 | 158400 |
Creatinina (mg/dL) | 0,6 - 1,2 | 2,2 | 3,3 | 4,1 | 3,6 | 2,7 | 1,6 |
Ferritina (ng/mL) | 16 - 300 | 25754 | 48666 | 4476 | |||
Fibrinogênio (mg/dL) | 180 - 350 | 146 | |||||
Triglicerídeos (mg/dl) | < 150 | 447 | |||||
TGO (U / L) | 13 - 39 | 67 | 623 | 302 | 251 | 68 | 31 |
TGP (U / L) | 7 - 52 | 92 | 472 | 314 | 173 | 91 | 52 |
Caso 2: GBSA | |||||||
Variável | Valor de Referência | Admissão | Pré-IVIG (12° DIH*) | Fim da IVIG (19° DOH*) | 72h pós IVIG (14° DOH*) | 36° DIH* | Óbito (47º DIH*) |
Hemoglobina (g/dL) | 12 - 13 | 7,3 | 7,7 | 7,4 | 7,1 | 9,1 | 11,9 |
Leucócitos (por mm3) | 4500-11000 | 7085 | 11980 | 9944 | 8067 | 9200 | 20600 |
Plaquetas (por mm3) | 150000-450000 | 108400 | 126400 | 51670 | 45550 | 88160 | 16000 |
Creatinina (mg/dL) | 0,6 - 1,2 | 0,9 | 0,8 | 1,2 | 1,2 | 0,9 | 1,3 |
Ferritina (ng/mL) | 16 - 300 | 4405 | 7157 | 4256 | |||
Fibrinogênio (mg/dL) | 180 - 350 | 530 | 631 | ||||
Triglicerídeos (mg/dl) | < 150 | 518 | 349 | 312 | |||
TGO (U / L) | 13 - 39 | 234 | 101 | 75 | 44 | 18 | 204 |
TGP (U / L) | 7 - 52 | 168 | 49 | 9 | 10 | 19 | 39 |
*DIH: dia de internamento hospitalar.
Dado o quadro de pancitopenia febril, foi realizado um mielograma, que evidenciou aspirado medular levemente hiperplásico, com leves dispoeses bilinhagem e hemofagocitose, levando ao diagnóstico de síndrome hemofagocítica secundária ao quadro infeccioso ainda de foco indeterminado.
Apesar da antibioticoterapia instituída, o paciente evoluiu com insuficiência respiratória hipoxêmica e grave disfunção do enxerto pela septicemia, sendo necessário suporte ventilatório invasivo e terapia hemodialítica, respectivamente. Diante da gravidade clínica, foi instituída terapia adjuvante com IVIG endovenosa (2 gramas por kg de peso, dividida em 3 tomadas), além de redução da imunossupressão de manutenção (suspensão do micofenolato) e ampliação da terapêutica antimicrobiana empírica por meio da suspensão da piperacilina-tazobactam e início de meropenem, vancomicina e anfotericina B lipossomal. Após as medidas instituídas, houve melhora clínica e laboratorial progressiva (Tabela 1), havendo, inclusive, suspensão da terapia hemodialítica. Recebeu alta hospitalar após um mês de internamento, estável clinicamente, seguindo em acompanhamento ambulatorial sem novas intercorrências.
GBSA, feminino, 61 anos, DRC terminal por nefroesclerose hipertensiva, foi submetida a TxR com doador falecido em dezembro de 2015. Recebeu como imunossupressão de indução globulina antitimócito na dose total de 6 mg por kg de peso, 3 sessões de plasmaférese e IVIG na dose total de 2 gramas por kg de peso, assim como manutenção com tacrolimo, everolimo e prednisona, evoluindo sem intercorrências até a alta hospitalar.
Cerca de 1 ano após o TxR, foi admitida com tosse seca, febre baixa, hiporexia, astenia e poliartralgia havia 1 mês. Notava-se ainda perda ponderal de aproximadamente 6 quilos nesse período. Os exames prévios revelavam anemia e plaquetopenia (Tabela 1). Foi então internada para investigação, suporte clínico e elucidação diagnóstica.
À admissão, a paciente se apresentava febril, taquipneica, taquicárdica e hipocorada, ausculta pulmonar com crepitações em terço inferior do hemitórax direito e abdome com espaço de Traube maciço à percussão. Foi então iniciada antibioticoterapia com levofloxacino por suspeita diagnóstica de pneumonia adquirida na comunidade e procedida à investigação diagnóstica. Os exames admissionais revelaram persistência da bicitopenia descrita, além de hiperferritinemia e hipertrigliceridemia. A função renal até então permanecia preservada. Ultrassonografia abdominal total realizada confirmou a presença de esplenomegalia homogênea. A paciente evoluiu com piora clínica progressiva (persistência da febre, taquicardia e hipotensão), sendo escalonado esquema antimicrobiano para piperacilina-tazobactam e posteriormente para meropenem devido à manutenção da resposta clínica insatisfatória. Dado o quadro de citopenias, procedeu-se à realização de mielograma duas semanas após o internamento, que revelou material hipercelular com representação típica das séries da hematopoese, atividade macrofágica aumentada e medula com características reacionais (Figura 1), sendo diagnosticada SHF secundária a um processo infeccioso até então não elucidado. A mielocultura foi negativa. Concomitantemente, as dosagens de galactomanana que resultaram em positividade ascendente motivaram o início de terapia antifúngica específica para aspergilose com voriconazol. Diante do quadro descrito, foi optado por início de IVIG, 2 gramas por kg de peso, dividida em 3 tomadas, em associação à terapia específica, bem como redução da imunossupressão (suspensão do uso de everolimo e manutenção do tacrolimo e prednisona).
Após tais medidas, a paciente evoluiu com melhora expressiva do quadro clínico, redução dos valores laboratoriais de marcadores inflamatórios e melhora gradual da disfunção hematológica (Tabela 1).
Em vigência da melhora clínico-laboratorial descrita, a paciente intercorreu, após 40 dias de internamento, com quadro de broncoaspiração maciça, evoluindo com nova piora clínica e óbito uma semana após o evento.
A SHF é uma desordem de elevada mortalidade (50% na primária, 10-15% na secundária), caracterizada pela resposta imune exacerbada pela liberação de citocinas pró-inflamatórias, com hiperativação macrofágica no sistema retículo-endotelial (fígado, baço e medula óssea), findando em incontrolável hemofagocitose.1,2,4 A SHF foi descrita pela primeira vez em 1952 por Farquhar e Claireaux como uma reticulose medular hereditária, sendo denominada de linfo-histiocitose hemofagocítica.5 Os primeiros 19 casos foram publicados em 1979 por Risdall et al., dos quais 13 surgiram em contexto de pós-transplante renal, 1 por LES e 5 idiopáticos.4,5,10,12,14 Em 1985, surgiu a primeira descrição da doença associada a patologias reumatológicas por Hadchouel, sendo denominada de síndrome de ativação macrofágica.3,5 É uma condição subdiagnosticada, que deve sempre ser investigada em casos de citopenia febril com hepatoesplenomegalia. O retardo no diagnóstico leva à disfunção crítica multiorgânica e reduzida taxa de sobrevida (34% em 42 meses).7
A SHF pode ser de origem genética (primária), com herança autossômica ligada ao X, mais comum na infância, com incidência bastante variável na literatura (1 a 1,2 a cada 50.000 a 1.000.000 nascidos vivos) e sem predominância de sexo.1,2,5 Pode ser associada a imunodeficiências, como as síndromes de Chédiak-Higashi e Gricelli, bem como à doença linfoproliferativa ligada ao X. Os genes envolvidos estão relacionados a defeitos na ativação ou no efeito citotóxico das células NK.1,2,3,7,8,9,11
As formas secundárias podem ocorrer em qualquer idade, sendo mais comum nos adultos. A média de idade descrita é de 50 anos, com proporção dos sexos variando entre 1,5 e 3,0 casos masculinos para 1 caso feminino. Associam-se a infecções (virais, fúngicas, bacterianas e parasitárias), drogas (metotrexato, anti-inflamatórios não hormonais, anticonvulsivantes, anti-TNF-α, anti-CD52), doenças autoimunes (lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, esclerose sistêmica e doença de Kawasaki), neoplasias (linfomas) e estado de imunossupressão (transplante de órgãos sólidos).1,2,5,9,10,12,13,14,16
Em 1991, a Sociedade Internacional de Histiocitose propôs critérios diagnósticos, revisados em 2004, que compõem 8 itens, dos quais pelo menos 5 devem estar presentes (Quadro 1).1,2,6,8
Quadro 1 Critérios da síndrome hemofagocítica
Febre (> 38ºC por pelo menos 7 dias) |
Citopenias afetando 2 ou 3 linhagens (hemoglobina < 9,0g/dl; neutrófilos < 1.000/mm3; plaquetas < 100.000/mm3) |
Esplenomegalia |
Aumento dos triglicerídeos (> 265mg/dL) e/ou hipofibrinogenemia (< 150 mg/dL) |
Aumento dos níveis de CD25 solúvel (> 2.400 U/mL) |
Redução ou ausência da atividade das células natural killer |
Evidência de hemofagocitose (medula, baço ou linfonodo) |
Este estudo relata dois casos de SHF pós-TxR secundária a processos infecciosos com manifestação de, no mínimo, 6 critérios para ambos. Digno de nota, em ambos há indícios de intensa imunossupressão. O primeiro paciente evoluía durante o seguimento ambulatorial com linfopenia em piora progressiva até o internamento, que flagrou a SHF. A segunda paciente era de alto risco imunológico e havia recebido como profilaxia para rejeição mediada por anticorpos terapia de indução com globulina antitimócito, além de plasmaférese e IVIG.
O diagnóstico da SHF pós-TxR representa um desafio, pois esses pacientes frequentemente apresentam fatores confundidores. Como exemplos, a pancitopenia e hipertrigliceridemia podem estar presentes como eventos adversos associados aos fármacos imunossupressores.10 Outra dificuldade é o diagnóstico diferencial com a sepse, levando ao atraso na descoberta da SHF e consequente piora do desfecho. Marcadores de pior prognóstico incluem idade superior a 30 anos, ausência de linfadenopatia, pancitopenia marcante, fosfatase alcalina, β2-microglobulina e bilirrubinas elevados, bem como CIVD e hiperferritinemia acentuados.5
Na SHF pós-TxR, o objetivo geral do tratamento é controlar a reação excessiva do sistema imunológico e prevenir o dano multiorgânico, contexto no qual se torna imperativo tratar a condição clínica desencadeante.7 No entanto, a grave e rápida progressão da doença muitas vezes exige um tratamento adjuvante para conter a resposta inflamatória. Ainda não há consenso na literatura acerca da melhor terapia de suporte para SHF. Emmenegger e colaboradores relataram uma resposta de 59% com uso de IVIG, na dose de 1,6 g/kg por 3 dias, em pacientes com diferentes condições subjacentes (infecção, malignidade e lúpus eritematoso sistêmico), afirmando o potencial global dessa estratégia terapêutica, apesar do melhor perfil de ação no componente infeccioso (78% versus 39%).5,10,12,15,17 O principal fator preditivo descrito de boa resposta clínica foi a administração da terapia em até 2 dias do pico de ferritinemia.5,15 Outro estudo, realizado por Asci et al., relatou que, dos 13 pacientes com SHF pós-TxR analisados em seu estudo, 6 evoluíram com recuperação e receberam terapia com IVIG.10,13 Para ambos os casos descritos em nosso estudo, a IVIG foi utilizada como tratamento adjuvante à antibioticoterapia de largo espectro e redução da imunossupressão de manutenção, sem doses adicionais de esteroides, obtendo bom controle da SHF. Como limitação deste estudo, não foi possível avaliar os níveis de CD25 solúvel, bem como a atividade das células natural killer, os quais são ferramentas úteis para avaliação dos pacientes sob suspeita de SHF, já que traduzem de forma direta o desbalanço entre a ativação e o autocontrole do sistema imunológico. A primeira reflete os elevados níveis do receptor da interleucina 2 (pró-inflamatória) que, por sua vez, tem impacto na proliferação das células apresentadoras de antígenos, linfócitos e histiócitos.8 A segunda denota a redução da capacidade citotóxica imune e consequente perda do controle proliferativo das células descritas, podendo esta ser também influenciada pelo estado de imunossupressão presente nos casos.2,10
A SHF reativa pós-TxR é uma condição de elevada morbimortalidade, porém a instituição de terapia adjuvante com IVIG vem se mostrando uma estratégia eficaz. O diagnóstico rápido constitui aspecto fundamental para o adequado controle da SHF. Em alguns casos, é difícil afirmar se a própria imunossupressão levou ao desenvolvimento de SHF ou se a terapia imunossupressora favoreceu o surgimento de processos secundários que culminaram com a desordem inflamatória. Em nossos relatos, devido ao surgimento mais tardio da síndrome em relação ao TxR, fica mais plausível que as infecções tenham sido o cerne do problema.