versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.91 no.1 Porto Alegre jan./fev. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2014.06.006
A fenilcetonúria (PKU), erro inato do metabolismo de aminoácidos caracterizado pela perda ou diminuição da atividade da enzima fenilalanina hidroxilase, tem como consequência a elevação das concentrações sanguíneas de fenilalanina e de seus metabólitos. Daí resultam lesões neurológicas que culminam em retardo mental irreversível.1 and 2 O controle da doença é feito pela prescrição de dieta isenta em proteínas de origem animal e restrita em proteínas vegetais. Em razão da qualidade da alimentação, alguns estudiosos têm relacionado a fenilcetonúria à tendência de ganho excessivo de peso e à síndrome metabólica (SM).3 , 4 , 5 and 6 Por outro lado, o excesso de peso e as alterações metabólicas a ele associadas têm sido relacionados a risco cardiovascular elevado, o que tem alertado pesquisadores em todo o mundo para a importância da identificação precoce e da prevenção de danos entre as populações de risco.7 , 8 , 9 , 10 and 11
Pelas particularidades da alimentação, os fenilcetonúricos podem ser considerados como grupo vulnerável a alterações metabólicas e ao excesso de peso. A restrição proteica favorece - e até mesmo estimula - o consumo de alimentos ricos em carboidratos (especialmente os simples) e em lipídios, em particular, e aumenta o risco de ganho de peso.
A síndrome metabólica estaria presente nessa população em decorrência tanto da própria doença quanto da alimentação. A detecção de parâmetros que identificam a presença da SM pode prevenir o aparecimento nesses pacientes de outras doenças, como, por exemplo, a diabete e as doenças cardiovasculares. A International Diabetes Federation (IDF) considera que a medida da circunferência da cintura (CC), associada às determinações das concentrações do HDL colesterol (HDLc), dos triglicérides (TG) e da glicose, constitui parâmetro para a identificação da síndrome metabólica. Essa seria definida por medidas da CC acima do percentil 90 associadas a, pelo menos, dois dos seguintes achados: concentrações elevadas de TG, redução do HDLc, aumentos da pressão arterial e da glicemia de jejum.11
O estudo em tela buscou determinar alguns marcadores da SM nos pacientes com fenilcetonúria atendidos no Serviço Especial de Genética do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (SEG-HC-UFMG), com vistas a identificar riscos e a promover melhor controle clínico-laboratorial e à adoção de protocolos especiais para prevenção de danos cardiovasculares.
Foi desenvolvido um estudo de série de casos que envolveu 58 crianças e adolescentes de quatro a 15 anos com fenilcetonúria. A coleta de dados foi feita entre outubro/2008 e novembro/2009. Os pacientes foram selecionados, agendados e submetidos as avaliações clínicas e laboratoriais.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP-UFMG). O termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por um dos pais, responsável legal e/ou pelos fenilcetonúricos maiores de seis anos, após os devidos esclarecimentos.
Os grupos foram definidos de acordo com o Índice de Massa Corporal (IMC) calculado de acordo com a fórmula: IMC = peso (Kg) / altura2 (m). O valor obtido foi avaliado mediante o uso das curvas de crescimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) para crianças até cinco anos (2006) e de cinco a 19 anos (2007), considerando-se como pontos de corte para sobrepeso e obesidade IMC > 85 e p > 97, respectivamente. Os grupos foram assim constituídos: 29 pacientes eutróficos e 29 com excesso de peso.
As medidas da circunferência da cintura foram analisadas de acordo com o percentil sugerido por MacCarthy et al.7
Para feitura dos exames laboratoriais, os pacientes foram submetidos a 10 horas de jejum que não podia ultrapassar 14 horas. Foram determinadas as concentrações séricas de fenilalanina (phe-jejum), colesterol total, HDL-c, triglicérides, glicose e insulina basal. Os lípides e a glicose foram analisados por método enzimático, por meio da técnica de química seca. A resistência à insulina foi calculada pelo modelo matemático de Matthews et al.12 As dosagens dos lipídios foram avaliadas de acordo com a I Diretriz de aterosclerose na infância e adolescência.13 A média de fenilalanina (phe-controle) foi determinada pela média aritmética das 12 últimas dosagens e foi considerada inadequada quando superior ao valor máximo de referência para a faixa etária.14 As dosagens de fenilalanina foram obtidas por ultramicrofluorimetria, pelo método UMTEST PKU.15
Os resultados obtidos foram armazenados, tabulados em planilha de dados eletrônicos e analisados por meio do programa estatístico SPSS versão 15.0. A distribuição da amostra foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk. Para as variáveis com distribuição normal, foi usado o teste t de Student e para aquelas sem distribuição normal foi usado o teste não paramétrico de Mann-Whitney. A análise de associação foi feita com uso do teste qui-quadrado de Pearson e a análise de correlação pelo teste de Spearman.
As características antropométricas e a distribuição por sexo e por estágio puberal de cada grupo estão descritos na tabela 1.
Tabela 1 Caracterização dos dois grupos de pacientes com fenilcetonúria, entre quatro e 15 anos, participantes do estudo
Variáveis | Grupos do estudo | ||
---|---|---|---|
Excesso de peso (n = 29) | Eutróficos (n = 29) | p | |
Idade (anos) | 9,3 (±3,1) | 9 (±2,4) | 0,66a |
Peso (Kg) | 35,8 (±24,0) | 28,0 (±10,6) | 0,01b |
Altura (cm) | 134,7 (±20,2) | 132,1 (±13,3) | 0,67a |
| |||
Sexo n (%) | |||
Feminino | 18 (62,1) | 10 (34,5) | 0,04c |
Masculino | 11 (37,9) | 19 (65,5) | |
| |||
Estágio puberal n (%) | |||
Pré-púbere | 17 (58,6) | 21 (72,4) | 0,27c |
Púbere | 12 (42,8) | 8 (28,5) |
aTeste t de Student (média ± DP).
bTeste de Mann-Whitney [mediana (± Q3-Q1)].
cTeste qui-quadrado de Pearson assintótico.
Os grupos se comportam da mesma maneira em relação ao controle de phe sanguínea. Não houve diferença significativa (p = 1) nas médias de phe do indivíduo, 50% de exames estavam adequados nos dois grupos. E nos níveis de phe coletados em jejum (p = 0,14), 58,6% de exames estavam adequados no grupo excesso de peso e 41,4% nos eutróficos.
Os pacientes do grupo excesso de peso apresentaram maiores concentrações de triglicérides e de insulina basal, mas menores concentrações de HDL colesterol, quando comparados com os pacientes eutróficos (tabela 2).
Tabela 2 Níveis sanguíneos de colesterol total e HDL-c, triglicérides, glicemia e insulina basal de pacientes com fenilcetonúria com excesso de peso e eutróficos
Variáveis | Grupos do estudo | ||
---|---|---|---|
Excesso de peso (n = 29) | Eutróficos (n = 29) | p | |
Colesterol (mg/dL) | |||
Total | 136,2 (± 22,2) | 130,7 (± 20,2) | 0,32a |
HDL-c | 34 (± 7,5) | 37 (± 8) | 0b |
Triglicérides (mg/dL) | 109 (± 43) | 74 (± 40,5) | 0b |
Glicemia (mg/dL) | 73,8 (± 6,4) | 76,3 (± 6,3) | 0,13a |
Insulina basal (uUI/mL) | 8,4 (± 8,95) | 3,8 (± 5,15) | 0,02b |
aTeste t de Student (média ± DP).
bTeste de Mann-Whitney [mediana (± Q3-Q1)].
O perfil lipídico dos pacientes, quando analisado de acordo com o estágio puberal, evidenciou dosagens de triglicérides mais elevadas e de HDL-c mais baixas no grupo de pacientes pré-púberes e com excesso de peso. Não foram encontradas diferenças, com significância estatística, entre os dois grupos de pacientes na puberdade (tabela 3).
Tabela 3 Comparação entre a média ou a mediana dos níveis séricos de triglicérides, colesterol total e HDL-c em fenilcetonúricos eutróficos e com excesso de peso, de acordo com estágio puberal
Estágiopuberal | Variável | Estado nutricional | Valores mg/Dl | p |
---|---|---|---|---|
Pré-púbere (n = 38) | Trig |
Excesso de peso Eutrófico |
33,7 ± 6,4 40,1 ± 8,1 |
0a |
CT |
Excesso de peso Eutrófico |
140,1 ± 23,5 131,1 ± 22,9 |
0,24b |
|
HDL-c | Excesso de peso Eutrófico |
33,7 ± 6,4 40,1 ± 8,1 |
0,01b | |
Púbere (n = 20) |
Trig |
Excesso de peso Eutrófico |
105,5 ± 57,7 83 ± 53,7 |
0,4a |
CT |
Excesso de peso Eutrófico |
131 ± 36,2 132 ± 4,7 |
0,9a |
|
HDL-c | Excesso de peso Eutrófico |
36,5 ± 10,7 37 ± 4 |
0,52a |
Trig, triglicérides; CT, colesterol total.
aTeste de Mann-Whitney [mediana (± Q3-Q1)].
bTeste t de Student (média ± DP).
O grupo excesso de peso apresentou valores significativamente mais elevados da relação do colesterol total/HDL-c, das concentrações sanguíneas de insulina basal e da determinação do Homa (tabela 4).
Tabela 4 Comparação entre a relação colesterol total/HDL-c, os níveis sanguíneos de insulina basal e de Homa em pacientes fenilcetonúricos com excesso de peso e eutróficos
Grupos | pa | ||
---|---|---|---|
Excesso de peso | Eutróficos | ||
Colesterol total/HDL-c | 4 (± 0,84) | 3,33 (± 0,81) | 0 |
Insulina (uUI/mL) | 8,40 (± 8,95) | 3,8 (± 5,15) | 0,01 |
Homa | 1,64 (± 1,59) | 0,70 (± 1,10) | 0,03 |
aTeste de Mann-Whitney [mediana (± Q3-Q1)].
Houve correlação positiva entre a dosagem de insulina basal (p = 0) e o Homa (p = 0,08) com a circunferência da cintura, apenas nos pacientes do grupo com excesso de peso.
O excesso de peso é, na atualidade, problema de saúde pública em grande parte do mundo. No Brasil, a despeito de programas de prevenção empreendidos por gestores e profissionais de saúde, as taxas de prevalência têm aumentado em todas as faixas etárias.16
O interesse pelo tema obesidade em fenilcetonúricos resultou da observação rotineira do atendimento clínico aos pacientes no SEG-HC/UFMG, confirmada por avaliações feitas em 2007 e 2009. Por meio de investigações transversais, foram identificadas taxas de prevalência de sobrepeso e de obesidade em elevação, que saltaram de 16,8% e 8,8%, respectivamente, em 2007 para 19,8% e 9,6% em 2009.
A ocorrência de excesso de peso em uma população de fenilcetonúricos, cuja dieta é periodicamente acompanhada por nutricionistas, tem uma de suas possíveis justificativas no caráter restritivo e monótono do cardápio, especialmente para crianças maiores e adolescentes, que gozam de autonomia para as escolhas alimentares. As transgressões dietéticas ocasionam, de um lado, variações nos controles laboratoriais da doença a partir dessa faixa etária e, de outro, anormalidades metabólicas que, no médio prazo, podem se traduzir em ganho excessivo de peso e risco cardiovascular aumentado. Estudos diversos confirmam essas dificuldades de controle em pacientes que adquirem autonomia.17 , 18 , 19 and 20 Era de se esperar que, também neste estudo, o grupo de pacientes com excesso de peso apresentasse maiores concentrações de phe no sangue - por transgressão dietética - assim como relatado por Mcburnie et al., 3 que poderia justificar o excesso de peso nestes pacientes. Entretanto, verificou-se que a maioria dos exames médios de phe sanguínea estava elevada nos dois grupos de participantes e na variável phe-jejum o grupo excesso de peso apresentou maior número de exames adequados. Belanger-Quintan et al. 5 e Rocha et al. 20 sugeriram que o excesso de peso dos fenilcetonúricos estava relacionado à gravidade da doença. Como no presente estudo a maioria dos indivíduos participantes nos dois grupos tem a forma grave da doença, não foi possível relacionar o excesso de peso com a gravidade. Portanto, parece que o excesso de peso detectado nesses pacientes não está relacionado necessariamente a transgressão alimentar ou a gravidade da doença.
A não observância ou a inadequação das orientações nutricionais, no tratamento da fenilcetonúria, pode causar anormalidades decorrentes da carência ou do excesso de nutrientes.21 , 22 , 23 and 24 É mais frequente o excesso de peso (e suas consequências). Assim, como demonstrado por Freedman et al.,25 os pacientes com excesso de peso, avaliados nesse estudo, apresentaram correlação positiva entre as medidas da CC e as concentrações de insulina basal e determinações do Homa. As baixas concentrações de colesterol encontradas podem ser explicadas por fatores genéticos, pela inibição da biossíntese de colesterol e ainda pelo uso de dieta vegetariana exclusiva.10 , 26 , 27 , 28 and 29 Os fenilcetonúricos com excesso de peso, além da obesidade central expressa pela CC, apresentaram concentrações sanguíneas elevadas de triglicérides e reduzidas de HDL-c. Isso sugere a existência da síndrome metabólica.11 Baixas concentrações de HDL-c e altas concentrações de LDL, mesmo isoladas, têm sido consideradas boas preditoras de risco cardiovascular.29 and 30
Segundo Burrows et al., 8 crianças e adolescentes têm um risco triplicado de desenvolver SM quando a insulina basal e o Homa são > percentil 75. Nesse estudo, maior percentual de pacientes com valores elevados de insulina basal e Homa foi identificado entre aqueles com excesso de peso e púberes (31% x 14%). As características alimentares dos fenilcetonúricos associadas às mudanças fisiológicas da puberdade podem explicar esses achados, que devem se constituir em fatores de alerta para o diagnóstico de síndrome metabólica. A OMS (Organização Mundial da Saúde) 31 e o Egir (Grupo Europeu para o Estudo da Resistência à Insulina) 32 consideram a resistência à insulina como um dos marcadores da SM. Nos pacientes com fenilcetonúria e excesso de peso foram encontrados, também, valores elevados de Homa.
Assim como Rocha et al.,20 nossos resultados demonstram que os pacientes com PKU e excesso de peso se comportam da mesma maneira que pessoas obesas sem a doença genética. Entretanto, fenilcetonúricos com excesso de peso podem ser mais suscetíveis à síndrome metabólica (SM) em razão de fatores inerentes a doença. Assim, cabe uma revisão do protocolo de atendimento desses pacientes, caracterizada pela introdução de procedimentos simples, factíveis em qualquer atendimento ambulatorial. Orientações gerais devem enfatizar a necessidade de manutenção da alimentação isenta em fenilalanina, com controle do consumo exagerado de açúcar, e, ainda, a importância da incorporação da atividade física na vida cotidiana, da forma mais adequada a cada indivíduo. O controle clínico deve incluir a medida regular da circunferência da cintura e, quando necessário, o monitoramento das concentrações sanguíneas de colesterol, triglicérides, glicose e insulina basal.
Os pacientes com excesso de peso apresentaram maiores concentrações sanguíneos de triglicérides e insulina basal, maiores valores da relação colesterol total/ HDL-c e de Homa e menores concentrações de HDL-c. Os resultados deste estudo sugerem que pacientes com fenilcetonúria e excesso de peso são potencialmente vulneráveis ao desenvolvimento da síndrome metabólica. Há, portanto, necessidade de acompanhamento clínico-laboratorial que previna as alterações metabólicas, o ganho excessivo de peso e as suas consequências, em especial o risco cardiovascular. Além disso, orientações alimentares específicas devem ser enfatizadas nas consultas de rotina, especialmente para os pacientes que têm excesso de peso, no intuito de prevenir inadequações metabólicas.