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Síndrome TINU: revisão de literatura à propósito de um caso

Síndrome TINU: revisão de literatura à propósito de um caso

Autores:

Marcelo A. Pinheiro,
Matheus B. C. Rocha,
Beatriz Oliveira Neri,
Isabelle Oliveira Parahyba,
Luis A.R. Moura,
Claudia Maria Costa de Oliveira,
Marcos Kubrusly

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.38 no.1 São Paulo jan./mar. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160019

Introdução

A nefrite tubulointersticial (NTI) é uma significante causa de insuficiência renal entre crianças e adultos, e caracteriza-se por anormalidades histopatológicas e funcionais renais.1

Em raros casos, a NTI é acompanhada de inflamação uveal, uma entidade clínica incomum,2-5 primeiramente descrita em 1975 por Dobrin et al.,6 sendo atribuído o nome de síndrome nefrite tubulointersticial e uveíte (síndrome TINU).7 A síndrome TINU é caracterizada por uma nefrite tubulointersticial aguda de curso favorável e uveíte crônica recorrente.8

Cerca de 200 casos foram reportados pela literatura,9 sendo a maioria dos pacientes com síndrome TINU adolescentes e mulheres jovens.10 Sua etiologia é desconhecida, sendo vários os possíveis gatilhos que podem desencadeá-la, como infecções e uso de drogas.2,11

O diagnóstico é principalmente clínico, com comprovação da presença de NTI e uveíte, na ausência de evidências de outras doenças sistêmicas ou infecciosas. Os sintomas, na maioria das vezes, são inespecíficos, incluindo febre, cefaleia, fadiga e anorexia,1,12,13 fazendo com que o diagnóstico clínico seja difícil e muitas vezes atrase o início do tratamento.1

O caso relatado a seguir foi identificado em uma idosa com manifestações oftalmológicas pré-nefrite e parece ser a primeira descrição do tipo no Brasil.

Relato de caso

Paciente feminina, 60 anos, com antecedentes de hipertensão arterial sistêmica, procurou atendimento médico em setembro de 2010 por queixa de "olhos vermelhos" (Figura 1), de início súbito, com dor à palpação e movimentação ocular, associada a leve edema palpebral bilateral, sendo diagnosticada conjuntivite não bacteriana. Foi prescrito colírio a base de corticosteroide por sete dias, com regressão do quadro. Após sete dias da interrupção do colírio, a paciente evoluiu com nova crise oftalmológica, sendo mantida a conduta prévia, com remissão do quadro.

Figura 1 Uveíte anterior em paciente com síndrome TINU. 

Trinta dias após o início das manifestações, a paciente cursou com dor de fraca intensidade em hipocôndrio esquerdo, contínua, não ventilatório dependente, durante 15 dias, progredindo para dor de forte intensidade. Realizou radiografia de tórax, que evidenciou discreto infiltrado pulmonar em base esquerda. Foram aventadas as possibilidades de atelectasia secundária à dor ou quadro pneumônico, tratada durante 7 dias com claritromicina e 2 dias com dexametasona/indometacina evoluindo com melhora clínica e radiológica. Trinta dias após resolução do quadro álgico, a paciente apresentou episódio semelhante ao quadro oftalmológico inicial. Três meses após o primeiro episódio do quadro ocular, a paciente cursou com sintomas sistêmicos e perda de 5 kg (7% do peso corporal) em 1 mês, sem alteração da pressão arterial.

Os exames laboratoriais mostraram azotemia - creatinina: 2,5 mg/dl e ureia: 75 mg/dl, enquanto o nível basal de creatinina era de 0,9 mg/dl. Sumário de urina com glicosúria ++, sem outras alterações; proteinúria de 24 horas: 1,65g; ultrassonografia renal: rins com tamanho normal, discreto aumento de ecogenicidade cortical e boa diferenciação córtico-medular. Os demais exames realizados encontram-se na Tabela 1. Após internamento, foi feita pulsoterapia com metilprednisolona 500 mg por 3 dias seguido por prednisona 1 mg/kg/dia por 1 mês e posterior desmame por 4 meses, com melhora progressiva dos exames. Em janeiro de 2011 (pós-pulsoterapia), foi realizada a biópsia renal, que evidenciou glomérulos dentro do limite da normalidade (esclerose global: 2/30), alterações degenerativas epiteliais tubulares com focos de atrofia e fibrose intersticial discreta difusa e nefrite tubulointersticial com sinais de atividade inflamatória. A imunofluorescência direta revelou ausência de depósitos glomerulares e presença de cilindros tubulares com IgA e IgM (Figura 2).

Tabela 1 Evolução dos exames laboratoriais da paciente do caso clínico relatado 

23/12/10 29/12/10 24/01/11 30/05/11 28/10/11
Hb (g/dl)/Ht (%) 10/29,3 10,4/30,1 10,8/33,6 13,6/40,3 12,5/36,9
VHS (mm) 71 64 8
PCR (mg/dL) 0,28 1,60 0,10
Ur (mg/dl) 75 71 63 40 35
Cr (mg/dl) 2,5 2,6 1,2 1,2 1,1
Proteinúria 24h 1,65 g 103,53 mg

Figura 2 Biópsia renal. A. Infiltrado inflamatório intersticial constituído por células linfoides que dissociam o epitélio tubular. (PAS - 400x); Biópsia Renal B. Alargamento intersticial por fibrose e infiltrado inflamatório linfocitário (Tricrômio de Masson - 400x). 

Três meses após a interrupção da medicação imunossupressora, cursou com novo episódio de uveíte anterior, tendo iniciado tratamento com corticoide colírio e cetorolaco. Apresentou como efeito colateral aumento da pressão intraocular, sendo instituído brinzolamida/timolol e tartarato de brimonidina. Foi tentado o desmame do corticoide colírio em algumas ocasiões, mas sempre com piora da uveíte.

Atualmente, após seguimento de 52 meses, a paciente encontra-se em uso de ciclosporina emulsão oftálmica devido ao insucesso da descontinuidade do medicamento. A análise da urina encontra-se dentro da normalidade, e ureia e creatinina com valores de 36 mg/dL e 1,0 mg/dL, respectivamente.

Discussão

A síndrome TINU apresenta prevalência aproximada de 3,5 casos/milhão de pessoas e incidência de 0,2 casos/milhão/ano,3,7 sendo provavelmente subdiagnosticada;14,15 sem predominância racial ou étnica entre os casos demonstrados.16

Existe maior incidência em mulheres,2,9 na proporção de 3:1 e, segundo estudos mais recentes, a prevalência em homens tem aumentado.3

O início da apresentação é mais precoce em homens, variando entre 9-52 anos; enquanto nas mulheres varia entre 10-74 anos.2,7,10 Há poucos casos descritos na literatura em idosos.7,9

As principais manifestações são inespecíficas e relacionadas à doença renal, incluindo, de forma decrescente, febre, perda de peso, fadiga e mal-estar, anorexia, dor abdominal, dentre outras.1,2,7,9,15-17

A uveíte pode preceder (21%), ser concorrente (15%) ou suceder (65%) a nefrite,9,16,18 com média de início das queixas oculares um mês após o início das sistêmicas. O principal acometimento ocular é a uveíte anterior, que ocorre em 80% dos pacientes e os sintomas mais comuns são dor e vermelhidão.2

No caso em questão, a doença se manifestou inicialmente por uveíte anterior que precedeu em 3 meses o acometimento renal. Após o quadro de nefrite, houve novos episódios de uveíte, mostrando falta de temporalidade entre as duas manifestações.

A fisiopatologia da síndrome TINU permanece pouco entendida, mas relatos sugerem que seja o resultado de um processo autoimune que envolve imunidade celular e humoral.8 A existência de um dano renal e ocular no curso clínico da TINU pode sugerir a existência de um antígeno comum a essas duas estruturas que poderia ser o alvo da reação autoimune cruzada.19

Essa síndrome pode ser diferenciada de condições sistêmicas associadas à uveíte e à nefrite. A NTI tem uma variedade de etiologias e não seria diferente com a síndrome TINU. Especula-se o papel de infecções e causas não infecciosas na resposta imune levando ao desenvolvimento da síndrome.1,2,8,9,11,20,21

Kim et al. consideram que as principais causas de nefrite e uveíte concomitantes e que podem ser confundidas com síndrome TINU são: sarcoidose, síndrome de Sjogren,21 lúpus, granulomatose de Wegener, doença de Behcet,22 sendo imperativa a solicitação de exames para excluí-las.

Em 2001, Mandeville et al.2 publicaram critérios diagnósticos da síndrome TINU, sendo necessária a presença de nefrite intersticial aguda e uveíte, sem outra doença sistêmica como causa, além do preenchimento dos 3 critérios que se seguem: 1. Função renal anormal; 2. Urinálise anormal; e 3. Doença sistêmica com duração de ≥ 2 semanas.

Exames laboratoriais na avaliação da síndrome TINU não são típicos. Além disso, o ANCA, anticorpo antinuclear, anticorpos anticardiolipina, anticorpo anti-DNA e o fator reumatoide podem ser positivos e pode haver hipocomplementenemia, além de hipergamaglobulinemia policlonal e presença de imunocomplexos circulantes.2,23,24

A paciente em questão apresentou leve anemia, elevação de marcadores inflamatórios, azotemia e elevação da proteinúria. O complemento C4 encontrava-se elevado (60,8 mg/dL) e a dosagem de C3 normal (154 mg/dL). Os exames C-ANCA, P-ANCA e FAN tiveram resultados negativos.

Evidência histológica de NTI deve ser procurada para o diagnóstico definitivo da síndrome. No entanto, um procedimento invasivo como biópsia renal pode não ser adequado para todos os pacientes e deve ser julgado individualmente.3

A NTI pode se resolver espontaneamente, mas o tratamento de pacientes com insuficiência renal progressiva inclui o uso corticoterapia. A nefropatia se torna crônica em 11% dos casos e em apenas 5% dos pacientes houve a necessidade de diálise.18 No presente caso, após pulsoterapia, a paciente apresentou redução dos níveis de ureia e creatinina.

Esteroides tópicos associados a agentes cicloplégicos são comumente recomendados como opção de tratamento para a uveíte anterior.16,25 Se refratário, deve-se considerar o uso de corticoide oral15 ou agentes imunossupressores.5,9,15,25 Relatos indicam que em 14% dos casos os sintomas persistem por mais de 3 meses5,9 e que a recorrência da uveíte ocorre em cerca de 50% dos pacientes.7,26 Em uma série de 33 casos, a mediana da persistência foi de 7 meses, variando de 1 a 147 meses.27

Embora a paciente em questão tenha apresentado a síndrome TINU aos 60 anos de idade, evoluiu com desfecho favorável da função renal, apresentando valores azotêmicos dentro da normalidade mesmo após 52 meses de seguimento. Em decorrência do aumento da pressão intraocular com uso de corticoide tópico, foi decidido por utilizar ciclosporina colírio, fazendo uso contínuo sem possibilidades de retirada, pois sempre culminou em recidiva da uveíte anterior.

Conclusão

O caso apresentado de nefrite tubulointersticial e uveíte nos faz sugerir que essa doença rara deva ser considerada no diagnóstico diferencial de nefrite tubulointersticial não explicada, especialmente na presença de manifestações oculares, mesmo em pacientes mais idosos. Existem evidências sugerindo que a TINU seja subdiagnosticada, principalmente em pacientes jovens que apresentem doença renal leve assintomática. Difundir essa patologia entre nefrologistas, internistas e oftalmologistas faz-se necessário, pois a interação entre esses especialistas é mandatória no tratamento do paciente com síndrome TINU.

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