versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015 Epub 01-Maio-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2990
A síndrome de Ochoa(1) é uma condição rara caracterizada pela uropatia obstrutiva funcional e por anormalidades faciais incomuns, com padrão de herança autossômica recessiva. Essa síndrome resulta em deterioração do trato urinário superior e em eventual insuficiência renal, se não diagnosticada precocemente.(2,3) A síndrome de Ochoa é também conhecida como síndrome urofacial e afeta ambos os sexos, porém ocorre com maior frequência quando os pais são consanguíneos.(4) Relata-se retrospectivamente experiência com seis pacientes encaminhados a nossa instituição. O exame físico revelou expressão facial peculiar em todos os pacientes (Figuras 1 e 2) e anormalidade da mímica facial na tentativa de sorrir, no momento em que os sintomas iniciam.
Figura 1 Imagens dos pacientes 1, 2 e 3, mostrando expressão facial incomum de careta quando na tentativa de sorrir. Note que, nas imagens superiores, os pacientes estão com expressão facial neutra, enquanto nas imagens inferiores foram solicitados a sorrir
Paciente 1, de 15 anos, sexo feminino, apresentava frequentes infecções do trato urinário (ITUs) desde os 12 anos de idade (Figura 1). Além disso, não possuía histórico de outros sintomas no trato urinário e nem sinais de disrafismo espinhal oculto. A radiografia da região lombossacral era normal; a ultrassonografia revelou hidronefrose bilateral; o exame urodinâmico mostrou resíduo miccional elevado e ácido mercaptosuccinico (DMSA); o renograma apresentou cicatrizes renais bilaterais graves. O tratamento inicial consistiu em cateterização intermitente limpa (CIL) e no uso de anticolinérgicos. Apesar de a paciente não apresentar outra ITU após o tratamento, uma piora na função renal foi notada durante seguimento e, no momento deste estudo, ela se preparava para transplante renal.
A tabela 1 resume as informações clínicas de todos os pacientes.
Tabela 1 Características de seis pacientes
Paciente | Seguimento (meses) | Idade no tratamento inicial (anos) | Idade no momento do estudo (anos) | Gênero | Pais consanguíneos | Sintomas iniciais | Lesão renal | ITU | Cirurgia |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | 12 | 14 | 15 | F | Primos | ITU | Sim | Sim | Espera por transplante renal |
2 | 24 | 4 | 32 | M | Não | ITU | Não | Sim | Ureterostomia bilateral |
Aumento da bexiga | |||||||||
3 | 60 | 11 | 16 | M | Não | ITU | Não | Sim | Aumento da bexiga |
Incontinência | |||||||||
Enurese | |||||||||
Urgência | |||||||||
4 | 60 | 8 | 13 | F | Não | Urgência | Não | Não | |
Enurese | |||||||||
5 | 32 | 9 | 12 | M | Não | ITU | Rim esquerdo | Sim | Nefrectomia esquerda + aumento da bexiga |
Incontinência | Rim | ||||||||
6 | 24 | 7 | 16 | M | Não | Incontinência | Sim | Não | Mitrofanoff |
Enurese | Aumento da bexiga | ||||||||
Transplante renal |
F: feminino; ITU: infecção do trato urinário; M: masculino.
O paciente 2, de 32 anos, sexo masculino, tinha histórico de ITUs recorrentes na infância (Figura 1). Foi realizada investigação do trato urinário enquanto o paciente foi assistido em outro centro, que mostrou micção disfuncional e diagnóstico inicial de bexiga não neurogênica. Apesar da conduta inicial, o paciente foi submetido a ureterostomia bilateral aos 4 anos de idade, que o manteve sem infecção com sucesso. Aos 9 anos de idade, as ureterostomias foram fechadas e a CIL foi iniciada, porém foi necessário o aumento da bexiga utilizando o cólon transverso.
O histórico familiar do paciente 2 foi negativo para síndrome de Ochoa, e seus pais não eram consanguíneos. Aos 32 anos, o paciente continuava em terapia com anticolinérgicos e CIL a cada 4 horas, o que o mantém livre de infecção. Além disso, ele não possuía cicatrizes no trato urinário superior, apesar do histórico de ITUs.
Os pacientes 3 e 4 eram irmãos, com 16 e 13 anos, respectivamente. Seus pais não eram consanguíneos e não possuíam histórico anterior de síndrome urofacial na família. Paciente 3 de 16 anos, do sexo masculino, foi encaminhado a nossa clínica devido a ITUs recorrentes, micção disfuncional, incontinência urinária pela manhã, enurese e urgência (Figura 1). Os resultados da ultrassonografia revelaram hidronefrose esquerda, bexiga trabeculada e divertículo. O exame urodinâmico mostrou bexiga com baixa complacência, volume residual pós-miccional (RPM e volume miccional elevados, e dissinergia detrusor-esfincteriana. O paciente apresentava bexiga trabeculada com pequena capacidade e refluxo vesicureteral (RVU) de alto grau em cisturetrografia miccional (CUGM). A conduta inicial foi CIL e oxibutinina. Devido aos efeitos colaterais anticolinérgicos, a tolterodina foi introduzida com sucesso parcial. O intervalo de continência foi de apenas 1 hora e 30 minutos. Subsequentemente, o paciente foi submetido ao aumento da bexiga com alça ileal, e a CIL foi mantida a cada 5 horas sem extravasamento.
Paciente 4, de 13 anos (Figura 2), sexo feminino, apresentava urgência e enurese, mas com ausência de episódios de ITU. Os resultados da ultrassonografia demostraram trato urinário normal; CUGM não mostrou refluxo, bexiga normal com grande capacidade e volume RPM de 80mL. Além disso, o exame urodinâmico mostrou bexiga com baixa complacência, atividade excessiva do detrusor e micção disfuncional com dissinergia do esfíncter.
Para essa paciente, foi proposta conduta prévia para evitar deterioração do trato urinário superior. Ela realizou CIL com sucesso e terapia com anticolinérgicos. A paciente permaneceu bem adaptada à CIL, apresentando intervalo de continência de 6 horas e com trato urinário superior preservado.
Paciente 5, de 12 anos, sexo masculino, apresentava incontinência urinária durante o dia, ITUs recorrentes, dor lombar e episódios de retenção urinária (Figura 2). Em exame físico não foram encontrados sinais de disrafismo espinhal oculto. A ultrassonografia revelou sinais de ureterohidronefrose esquerda e bexiga apresentando parede espessa. Além disso, o paciente possuía bexiga trabeculada com divertículo e RVU à esquerda de alto grau encontrada em CUGM. O exame urodinâmico mostrou bexiga com baixa complacência, dissinergia detrusor-esfincteriana e volume de RPM elevado. DMSA mostrou cicatrização grave no rim esquerdo.
A abordagem inicial consistiu de CIL e anticolinérgicos, porém, devido ao desconforto durante CIL uretral, a adesão ao tratamento foi comprometida. O paciente teve febre devido às ITUs e piora da função do rim esquerdo. Além disso, realizou nefrectomia esquerda e apresentou aumento da bexiga com alça ileal; CIL continuou a cada 4 horas, sem que fosse observado extravasamento. O rim esquerdo desse paciente estava preservado.
O paciente 6, de 16 anos de idade (Figura 2), possuía 7 irmãos sadios. O histórico de ITU recorrente e micção disfuncional foi notado com volume de RPM elevado. O exame urodinâmico mostrou bexiga com baixa complacência, volume de RPM elevado e dissinergia detrusor-esfincteriana. O paciente foi acompanhado em outro centro e realizou apendicovesicostomia aos 7 anos de idade. CIL e terapia com anticolinérgico foram administradas, reduzindo, assim, os episódios de ITUs.
Após 6 anos, o paciente teve hipertensão e foi encaminhado a clínica de nefrologia para avaliação. Ele também teve insuficiência renal moderada com resposta inadequada a drogas anti-hipertensivas. Os resultados da ultrassonografia revelaram ureterohidronefrose bilateral, espessamento da parede da bexiga e rim esquerdo reduzido. CUGM mostrou RVU e bexiga trabeculada e reduzida. O DMSA mostrou cicatrização renal bilateral com lesão no rim direito. O paciente realizou aumento da bexiga com alça ileal e foi mantido em CIL. Após 3 anos de seguimento, apresentou lesão renal grave e foi submetido a transplante renal de doador cadáver. Além disso, realizou aumento da bexiga com alça ileal e foi mantido em CIL.
Bernaro Ochoa descreveu um grupo de crianças com sintomas de bexiga neurogênica (enurese, incontinência, ITUs, constipação, bexiga trabeculada e RVU), porém sem condição neurológica aparente e nem anormalidades de obstrução mecânica que poderiam justificar o achado urológico.(1)
Esses casos seriam classificados como bexiga não neurogênica como descrito anteriormente por Hinman,(5) no caso de ausência de achado peculiar na expressão facial desses pacientes. Ochoa notou que as crianças que participaram no estudo mostraram uma inversão patognomônica da expressão facial, tal como careta ou choro, quando tentavam sorrir. Por esse motivo, o nome “síndrome orofacial” foi proposto.
Estudos recentes têm localizado o gene defeituoso para síndrome urofacial na região no cromossomo 10q23-q24, com evidência de mutações na Heparanase 2 (HPSE2); o gene que seria responsável por essa síndrome.(6-9) Apesar de a função biológica exata ainda não estar estabelecida, a perda completa da função do HPSE2 em pacientes com síndrome urofacial sugere que pode implicar na gênesis da síndrome.(6) O gene parece ser transmitido em padrão de herança autossômica recessiva.
Nas protuberâncias superiores do mesencéfalo estão localizados os centros de choro e riso, muito próximos do centro da micção. Portanto, essa proximidade pode explicar como a lesão neurológica pode afetar ambas as regiões simultaneamente,(4) mas essa teoria ainda não foi comprovada. Muitos desses pacientes não são diagnosticados, além da falta de resultados e tratamento apropriados na lesão do trato urinário superior e insuficiência renal.(3)
O diagnóstico precoce é essencial para atingir um melhor prognóstico. Tratamento urológico agressivo é necessário para melhorar o esvaziamento da bexiga e evitar infecções. As suspeitas devem ser levantadas quando observada a combinação entre problemas urológicos e a expressão facial invertida quando da tentativa de sorrir.(10)
Essa experiência justifica a necessidade de informar e educar profissionais de saúde em relação a essa síndrome. A imagem do sorriso dos pacientes é autoexplicativa. Pediatras, nefrologistas e urologistas devem conhecer o relacionamento entre sintomas miccionais e sinal facial peculiar.